As palavras não ditas (Degustação)

Capítulo II - Imagine um dia especial

Gosto do telhado daqui.

Gosto da forma como os ventos frios da região de Lake District sempre parecem trazer o frescor do lago Windermere, mesmo aqueles que enfrentaram as árduas colinas que escondem o internato, e como tem seu próprio som.

Sou, na verdade, da forte opinião de que, se tivermos tempo o bastante para ouvir, a natureza fala conosco.

Olho para baixo.

Meus pés estão na borda do telhado, e as ardósias negras são traiçoeiras, escorregadias, perigosas demais para quem não estivesse acostumado. Mas não é o meu caso, pois ali conheço como meu próprio corpo.

A The Gentleman's Patch é, na verdade, uma parte de mim, pois desde que me lembro estive aqui.

Ao menos, desde a noite em que...

Um pequeno pássaro arrulha e me distancia do pensamento. Isso é bom, suas asas de tordo afastam a dor e a solidão por um momento, guiando minha visão pelo seu próximo voo, que corta o pátio principal, onde os outros garotos estão.

Juntos.

Conversando.

Nossas rotinas não poderiam ser mais diferentes, e na palidez do céu inglês isso se torna de tamanha tristeza que tudo parece frio. Um pensamento tolo, devo admitir, pois me agasalhei muito bem essa manhã e me lembrei de colocar duas meias, o sobretudo, o pulôver, a camisa, o lenço e o colete.

Estou a perfeita descrição do que um cavalheiro deve ser.

Mas o reverendo John Trusler, certamente, não discorreu sobre as vantagens de não ser notado a ponto de que, se um grande pássaro me levasse para longe, ninguém talvez notasse.

Não.

Em suas palavras: Dizer que um homem corajoso não teme a morte é inútil; por uma boa causa, ele naturalmente irá arriscar sua vida, mas sem uma boa causa, ele tem todas as razões para temer a morte...

Sinto o trecho sibilar em meus lábios. Faz cócegas e é curioso, pois os termos ali me dizem tanto respeito que quase sinto como se fossem frutos de meu próprio coração.

É difícil de imaginar que apenas um pedaço de papel e tinta possa causar tamanho sentimento, porém um leitor de verdade sabe bem ao que eu me refiro, assim como sei ao que Trusler se referia...

Se eu caísse aqui e agora, e morresse, qual seria esta boa causa que me fez naturalmente arriscar a vida?

Estou aqui porque estou sozinho.

Estou aqui porque, ao mesmo tempo que me sinto em paz, quando olho aos rapazes lá embaixo, sinto a maior das batalhas dentro de mim.

E delas, só há um resultado...

Mas nem sempre foi assim.

Levanto-me e dobro a carta que trouxe comigo. Acabou de chegar, e ainda não a li, mas sinto-a tão próxima e segura que posso me dar ao luxo de esperar um pouco mais.

Caminho com cuidado pelas ardósias e alcanço o trecho de cimento batido, onde há uma porta no canto direito que dá vasão a uma escada em caracol. É o único acesso, ali, e é tão estreito que dois não poderiam passar.

Um caminho para quem está sozinho, pois então.

Um caminho que trilho quase todas as manhãs, para encarar um mundo do qual faço parte e, ao mesmo tempo, não.

Estou persuadido a pensar que esse sentimento, tão avassalador e confuso, um dia vai passar, pois não creio que nasceria de uma escolha própria. Se pudéssemos escolher nossos sentimentos, sei que o faríamos do temor de sermos excluídos.

Mas quando já se é excluído, só se pode desejar não o ser.

E eu realmente quero fazer parte desse mundo.

Quero fazer valer a pena, mesmo que, talvez, eu não tenha valor algum.

Preciso correr para a aula de literatura, mas não o posso fazer literalmente sem tomar uma punição por mal conduta, então apenas caminho até meu dormitório e apanho o exemplar de Dickens, o qual preciso devolver.

Checo no espelho se tudo está em ordem e noto que um dos botões do sobretudo está aberto, desalinhando o conjunto. Aprumo os ombros, abro todos os outros e deixo-o escorregar pelos braços.

Preciso vesti-lo do zero se pretendo estar perfeito.

Pronto, agora posso seguir! E é caminhando entre os largos corredores do internato, revestidos por madeira escura e adornada por quadros dos prévios diretores, que mantenho Dickens sob o braço, enquanto suas palavras escapam por meus lábios:

— Mas isso se dá com qualquer vida. Imagine um dia especial em sua vida e pense como teria sido seu percurso sem ele...

Bom, sr. Dickens, eu não consigo pensar nesse dia.

Ainda estou esperando que ele aconteça.