Capítulo V - Entre teias, lágrimas e estrelas

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Há grande vantagem de ter um quarto só para mim.

Na verdade, inúmeras vantagens, especialmente se considerar que meu quarto se resguarda na parte mais alta do prédio principal, de frente para os poderosos jardins da The Gentleman's Patch, com vista ao prédio secundário onde se pratica esgrima, boas condutas e as aulas especiais, que preparam os jovens para serem exemplos de porte físico e disciplina na sociedade.

Talvez participassem de campeonatos de velejar no Tâmisa. Já ouvi a respeito, outra vez, pelas frestas da sala de banho, quando quase cometi o deslize de ser visto.

Não sei o que o diretor faria comigo se isso acontecesse, no entanto compreendo plenamente a minha necessidade de ter um lugar para ficar e ser quem eu sou.

Então, um quarto só meu, ainda que seja via de regra no internato o completo oposto, é muito vantajoso. Há uma cama com edredom azul e preto, lençóis macios em tom pastel, que combinam com os travesseiros de pena de ganso, duas mesas de cabeceira — que tomei liberdade de ocupar em sua íntegra — e algumas teias de aranha que preciso tirar constantemente.

Costumo o fazer depois de chorar, de madrugada, quando acordo sem entender porque estava chovendo dentro do quarto, até que o sonho se afasta em detrimento da lucidez, permitindo que eu perceba que a chuva vem dos meus olhos, tempestuosos e perdidos.

Tenho lamparinas, aqui, então acendo uma vela e procuro pelos cantos do quarto as teias de aranha. Elas brilham, entende? Tem um silvo prateado perfeito quando em contato com a luz.

E elas queimam tanto quanto brilham.

São fáceis de encontrar e ainda mais de destruir. Isso faz com que minhas lágrimas não me preocupem tanto, porque brilham da mesma forma e desaparecem tão rápido quanto, assim que as enxugo com a manga do sobretudo.

Não sei o que me faz chorar, mas sei que há algo dentro de mim que dói mais do que as palavras de Jane Eyre: "não há felicidade como a que se sente por ser amada por seus companheiros, e sentir que sua presença é uma adição ao seu conforto."

Quando não entendo o que sinto, tampouco quem sou e o que me move, nesses dias, é aos livros que eu recorro. Sei que o sr. Westons tem razão, e jamais poderia passar a vida através das palavras desses autores.

Preciso encontrar a minha voz.

Mas para encontrar algo é preciso, primeiro, saber por qual caminho seguir, então que essas páginas me guiem seja lá para onde preciso chegar. Que os livros possam ser uma trilha em um caminho que acredito ter perdido desde que nasci.

Perdi a noção do tempo entre as paredes da biblioteca e as inúmeras vezes que li e reli a missiva roubada, assim como capítulos da obra da sra. Brontë, tal que, agora, pela janela, o sol já está se pondo, tons de laranja que antecedem a imensidão azul, salpicada de estrelas.

Engraçado...

Elas brilham entre a escuridão, como as teias de aranha nos cantos das vigas do meu quarto e as lágrimas que vertem pelo meu rosto.

E nós três queimamos, cada qual a sua maneira.

Talvez haja respostas demais a perguntas demais, só que eu ainda não sei ao certo o que perguntar, o que me leva a crer que todos esses pensamentos sejam só uma tentativa de compreender o vazio que há dentro do meu coração.

Mas, como sempre, não consigo.

Olho para a lamparina que ainda não acendi e pressinto um tremor dentro do meu peito que sobe até os meus lábios, fazendo-os tremer antes de os apertar e cerrar os punhos.

Hoje, não quero queimar.

Assim, acendo a lamparina, mas ao invés de permitir que meus pés guiem meu corpo até os cantos do cômodo, me entrego à escuridão do corredor.

Sou a única estrela em todo aquele mar de sombras. Sei até onde quero ir. 

As palavras não ditas (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora