É na biblioteca que ouço a movimentação que há pelo prédio principal. Percebo os passos rápidos, que nunca correm, mas carregam urgência, ouço as asas de pássaros que fogem dos topos das árvores quando garotos se sentam sobre as raízes e apreciam o sol, sinto o aroma de cada folha de papel e até mesmo da tinta que forma as palavras que ali narram vidas que existiram e outras, que jamais existirão a não ser na mente de quem as lê.
Não tenho autorização para caminhar pelos corredores, depois que eles despertam.
Não mais. Chego a pensar, em certa melancolia, que há, ao menos, um fator positivo em poder estar sozinho na biblioteca: ninguém realmente seria tentado a descobrir o que o jovem e estranho Proofwell estava lendo.
Checo rapidamente pelo canto dos olhos, e percebo que o sr. Futhermore, o bibliotecário, está eximiamente comprometido em organizar as devoluções da semana em seu carrinho de madeira, alinhando-os pela ordem de publicação e volumes, que se diferenciavam pela gráfica que as publicavam em Londres.
Também sinto o cheiro da viagem que fizeram até ali. Percebo a textura. É imaginativo, mas é como se a aura de Londres fosse palpável entre as folhas e a imaginação. Caso minha incapacidade de sair desses portões que cercam o internato não exercesse tamanha influência em meu julgamento do que era certo e errado, quiçá eu conhecesse a capital.
Quiçá participasse de alguma Temporada.
Quiçá parasse de roubar cartas endereçadas a outro garoto e recebesse as minhas próprias.
Minhas bochechas esquentam sem que eu entenda o motivo, mas uma urgência me acomete enquanto volto a atenção para a missiva que desdobrei e encobri com o exemplar de Jane Eyre.
As palavras ali não foram feitas em uma prensa, então sua cursiva as torna intimas, singelas, delicadas e únicas.
Palavras estas que não foram endereçadas a Levi Proofwell.
Barnaby. É esse o nome a quem o autor se refere, o mesmo que estava gravado em um pequeno adereço de metal na coluna de correspondências do salão principal, onde a surrupiei antes que todos despertassem.
Barnaby,
Espero que compreenda a extensão de meus sentimentos nestas cartas, mas não consigo sequer imaginar os horrores que lhe acometem, nesse instante, então temo que, de alguma forma, o que um dia foi amor se torne ressentimento.
Rogo-lhe para que não se permita levar pelo que eles dizem, mas... quem sou eu para lhe dizer quão forte seu coração tem de ser? Apenas escrevo na esperança de que essas palavras ajudem a enfrentar os tempos difíceis, pois, nem por um mero segundo, deixei de pensar em você.
Sua partida levou uma parte de minha alma, tal que, se de fato estas palavras se tornarem insidiosas e intoleráveis, suplico para que coloque um fim ao que sinto e responda-me pedindo para que eu não as escreva mais.
Na verdade... suplico para que escreva qualquer coisa.
O que for, seja capaz de me ferir ou não.
Apenas preciso saber que está bem, meu amor, é só o que importa.
Meus olhos correm ao canto da missiva, como sempre, tal que sem qualquer surpresa se frustram, pois não há um remetente a ser encontrado.
— Sem assinatura — sibilo tão baixo que o sr. Futhermore jamais ouviria na posição em que estava, curvado sobre o carrinho, checando se tudo estava devidamente em seu lugar.
Satisfeito, colocou-se a se mover, as rodinhas marcando seu ritmo no piso de madeira escura e estalando sobre uma tábua ou outra.
— Por que não assinaria uma declaração? — questiono como se a missiva pudesse me responder.
Quiçá, o autor misterioso também se perguntasse: por que não me responde, Barnaby?
Meu mais profundo desejo seria que a resposta pudesse ser tão simples quanto: um ladrão de palavras as tomou para si, tal que seus sentimentos nunca me alcançaram.
Porém, a verdade nunca é tão simples, e a respeito de Barnaby, era muito mais terrível.
Não. Eu nunca responderia uma missiva que lhe fora enviada, porque não me cabia dar palavras aos mortos.
Ainda mais quando nem ao menos descobri as minhas próprias.
VOCÊ ESTÁ LENDO
As palavras não ditas (Degustação)
Fiksi RemajaELEITA MELHOR HISTÓRIA DE 2020 PELOS EMBAIXADORESBR!!! Em uma época que o espectro autista ainda não é conhecido, Levi Proofwell não consegue deixar de sentir-se diferente. Ele sabe que sua percepção sobre o mundo, vista do topo do telhado de uma r...