Capítulo X - O relógio

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Jonathan Swift uma vez escreveu: "ouvi um barulho confuso ao meu redor, mas na postura que eu estava, não podia ver nada, exceto o céu." Naquela ocasião, sei que Gulliver estava preso em uma terra desconhecida com pessoas tão minúsculas que lhe restringiam com cordas contra a areia.

Não há cordas na minha cama.

Tampouco, pessoas que me ofendem, assustadas.

Não há nada, ali, além de pensamentos distantes e uma força avassaladora que recai na minha mente. Não quero fazer coisa alguma, pois sinto que, seja lá qual seja a tarefa que eu venha a exercer, não teria grande significado.

Eu não tenho significado, melhor dizendo. Bom... ao menos não um que eu consiga enxergar.

Gosto de considerar que minha devoção à leitura e às palavras que tanto me encantam e me fazem navegar para longe nasce de um profundo desejo de conhecimento. Contudo, nesta manhã, considero que talvez isso o venha de algo muito mais covarde.

Quiçá aprecio a viagem de um livro porque ele me leva, justamente, para longe de mim. O livro me faz viver vidas das quais nunca teria a chance, e torna a pergunta; o que fará de seus dias, Levi?, apenas um sussurro displicente no fundo de um pensamento sombrio.

Não espero que pense, também, que minha mente é detentora de tamanha vastidão opressiva a todo tempo. Na verdade, ela se ocupa, na maior parte, com tudo que eu não entendo.

Ouço demais.

Percebo demais.

E não consigo assimilar tudo ao meu arredor.

Sei o quanto as cores vibram, o quão distante um pássaro pode piar e ainda ser ouvido, sei que a luz do sol pode ofender aos olhos e que conversas, murmúrios e sussurros chegam a ser gritos a um coração em silêncio.

E tudo isso me faz gritar contra o travesseiro.

Grito a plenos pulmões, pois sei que não serei ouvido daqui de cima. Os garotos estão em suas aulas, as tarefas acontecem normalmente, e a vida segue sem que eu precise intervir.

Talvez... essa seja a verdade mais difícil de se aceitar, e é ela que nos esmaga nos dias que nem conseguimos sair da cama:

A vida seguirá, os dias passarão, e nenhum segundo ficará para trás para esperar por você.

É tudo uma questão de escolha.

É tudo uma questão de desejo.

Eu desejo viver, e conseguir entender aquilo que sou à parte do que todos parecem dizer a meu respeito. Não lhes cabe este papel, ainda que o performem em grande regozijo.

Tick tack. Tick tack.

O relógio de chão estala a cada segundo que passa e eu não consigo sair da cama.

Tick tack. Tick tack.

Ainda que eu escolha e queira viver... simplesmente... não dá.

Tick. Tick tack.

Hoje não.

Tick tack.

Tudo bem. O amanhã pode ser melhor.

Tick.

E talvez a vida tenha que passar por cima de mim, vez ou outra. 

As palavras não ditas (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora