Ainda que, certamente, não fosse a tarefa mais fácil — ou simples, ou tolerável ou sequer executável —, estou determinado a enfrentar a própria vida. É curioso de se pensar que alguém, em algum momento, tenha conseguido enfrentar o sr. Destino, como se ele fosse um ser materializável com o qual se pudesse conversar.
Mas, se eu o restrinjo a um pensamento, posso aprisioná-lo dentro de mim.
Posso confrontá-lo.
Posso fazer.... tudo mudar!
É com um espírito renovado, e o exemplar de Jane Eyre debaixo do braço direito, um pergaminho com meu relatório a respeito da obra no esquerdo, e passos firmes com meus sapatos lustrados à excelência — tão brilhantes quanto os botões de meu colete cinza, de brocados escuros e bainha de veludo — que caminho na direção da sala de aula do sr. Westons.
Ele me encontra na soleira da porta com um sorriso brilhante, que noto estar levemente torto, como se sentisse algum tipo de dor.
— Levi, chegou tão cedo — cumprimenta.
— Não é meu desejo me atrasar, senhor.
— Sabiamente, mas... — Ele apanha seu relógio de bolso, escondido sob a casaca verde-musgo. — Está quase uma hora adiantado.
Não consigo conter o que escapa pelos meus lábios:
— Creio que isso faça dois de nós.
Seus lábios se comprimem, apertam-se em uma expressão nova, que eu ainda não havia visto em seu rosto; olha por sobre o ombro, encarando algo que não enxergo, e a postura avança de tal forma que recuo um passo.
— A excelência de um cavalheiro é a pontualidade, sr. Proofwell — recomeça em um tom menos amigável. — Chegar a um compromisso demasiadamente cedo é quase tão desonrado quanto o fazer tardiamente.
As dúvidas me golpeiam de uma só vez. Pensei que... bem, se eu..., mas nada consegue se alinhar dentro do pensamento que me domina: mesmo tentando ser melhor, não fui o suficiente.
Apenas um instante ali, naquela manhã, e todo o peso volta a surgir em meu peito, baixando meus ombros, fazendo-me encarar o carpete do largo corredor, porque não poderia me permitir olhar ao rosto dele.
Nem mesmo isso.
— Aprecio a dedicação — segue o professor. — Mas terei de mandá-lo de volta ao seu dormitório.
Franzo o cenho.
— Mas, professor...
— Volte, sr. Proofwell, e esteja aqui pontualmente, no horário combinado. Nem antes ou depois. Deseja me impressionar? Consiga tal feito.
O tom seco faz com que eu mova meu rosto ligeiramente para cima e para baixo, apenas alguns centímetros, sem desviar o olhar dos meus sapatos que, olhe só, já estão voltando pelo caminho em que vieram.
Jane Eyre e o relatório seguem debaixo de meus braços, mas pesam muito mais do que antes.
A luz ainda transpassa, fraca, as janelas do chão ao teto de afrescos, alongando minhas sombras, as quais sei que o sr. Westons ainda observa, sem voltar a me redigir a palavra.
Afinal, ouço que sussurra algo a mais alguém, que estava dentro da sala.
Alguém que não era eu...
Mas, no horário combinado, aquela preocupação já havia se desfeito, desintegrando-se como sabão em pequenas bolhas assim que toca a superfície da água.
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As palavras não ditas (Degustação)
Novela JuvenilELEITA MELHOR HISTÓRIA DE 2020 PELOS EMBAIXADORESBR!!! Em uma época que o espectro autista ainda não é conhecido, Levi Proofwell não consegue deixar de sentir-se diferente. Ele sabe que sua percepção sobre o mundo, vista do topo do telhado de uma r...