O pudim de caçarola já assava no forno e a muçarela estava ralada para o preparo dos tacos quando Alma ouviu um entusiasmado bater à sua porta. Era seu pai, carregando uma sacola de plástico que continha duas garrafas de vinho Mioranza. Nada mais prazeroso que beber uma taça de um bom vinho barato, pensou Alma consigo mesma. E que sorriso estava impresso no rosto de Benjamin, tão rejuvenescido naquele início de noite.
"Trouxe o nosso favorito para noites frias como essa, minha querida. E posso sentir o cheiro do meu favorito sendo assado, estou certo?" Ele farejou o recinto com a maior expressão de satisfação.
"Sim, papai, preparei aquele com coco e queijo ralado."
Durante a mais tenra infância das meninas ambas se regalavam com as caçarolas preparadas por Isa, sua mãe. Aquele doce tinha para todos eles cheiro de saudades, de tempestade, de gargalhada. Remetia sempre à risada acalorada de Isa Moretti.
Quanto a Amália, logo havia enviado um SMS à irmã. 'Desculpe-me, terminando de atender paciente com Cefaleia Tensional. Vinte minutos de atraso, nada mais. Peça desculpas ao papai.' Alma já havia previsto os vinte minutos de demora - ou melhor, uma hora, sequer um segundo a mais ou a menos. Nunca havia sido diferente, e nunca haveria de ser.
Já estavam na terceira taça de vinho quando uma Amália afobada e arquejante embrenhou pela porta de madeira, carregando duas garrafas de espumante de Medonza. Vestia uma camiseta social branca e tinha um sorriso hesitante no rosto ao receber ajuda do pai.
"Sei que havia prometido não me atrasar mais para nossos compromissos, mas infelizmente não tenho qualquer controle sobre as súbitas necessidades de meus pacientes, tampouco sobre a sempre iminente mudança de humor de meu chefe." Ela disse, a testa larga franzida devido a um cansaço evidente. "E olhem só, sinto que devo ser perdoada desta vez, porque ainda precisei passar rapidamente em meu apartamento para buscar esses presentinhos." Ela cantarolou fazendo uma dancinha desengonçada e sacudindo animada uma das garrafas de bebida.
O cheiro dos tacos prontos e do pudim de caçarola já envolvia todo o ambiente. E tudo estava singular aquela noite. Cada pequeno pedaço de caçarola envolto em uma caramelada cauda causava um imediato e inevitável conforto na alma de quem o comia. A noite não tardaria muito a findar quando Amália, terminando de mastigar com gosto um generoso pedaço de pudim, esticou uma de suas mãos em direção à irmã, um panfleto azulado e amarrotado preso entre seus dedos descarnados.
"Sempre me sinto constrangida quando passo por um entregador dessas propagandas. Costumam ser tão básicas. É que normalmente não me interessam em nada mas, pobres coitados, sei que precisam entregá-las." Ela sacudiu então o papel enrugado em direção a Alma, tomando um prolongado gole de espumante com o auxílio de sua mão livre. "Essa pode ter maior utilidade. É da Universidade de Vila Nasuéis, tão boa! Dê uma olhadinha, vamos. Pode te interessar."
Alma puxou com força o máximo de ar que pôde para seus pulmões. Queria gritar contra Amália. Queria arremessar em direção ao assoalho o restante de taco que ainda tinha nos cantos de seu prato, queria entornar por inteiro a taça de vinho. Olhou para seu pai. Os olhos pregueados de Benjamin exprimiam uma desolação já vista por Alma, em outras ocasiões muito semelhantes àquela. Ela não faria isso a ele, não daquela vez. Mas não mais ficaria ali, sentada de frente para sua irmã. A verdade era que Amália nunca havia respeitado por completo qualquer decisão de Alma. Sempre se empenhava em encontrar algo para expressar sua incredulidade em relação a qualquer coisa que a irmã caçula fizesse.
Alma não proferiu uma palavra sequer. Ergueu-se, olhando para o pai em um silencioso pedido de desculpas. Caminhou serena em direção ao seu quarto, cerrando a porta sem fazer qualquer barulho. Ouvia um silêncio carregado e embaraçado vindo de sua sala de jantar. Alguns passos desconcertados soaram então pelo assoalho, e a porta da sala foi fechada sem muito alarde. Uma vergonha incômoda e quase opressiva de repente tomou conta de Alma. Pensou em seu pai. Ele não merecia nada daquilo. Sentiu uma lágrima quente ardendo em sua pele. Como podia sentir-se tão sufocada?
Pensou então na única pessoa que poderia retirá-la daquela apatia repentina. Apalpou os cantos de seu quarto em busca de seu celular, que se encontrava repousado em seu criado-mudo, e enviou uma mensagem para ela, recebendo logo uma resposta: Ananda já estava a caminho.
Ananda e Alma eram tão inexplicavelmente diferentes que muitas vezes Alma se flagrava refletindo a respeito do que as teria aproximado uma da outra. E então ela ria sozinha daquela amizade burlesca. Mas Ananda sempre havia sido para Alma, em todos os momentos, como uma inesgotável fonte de ar fresco, daqueles que deixam a gente mais feliz.
Logo a porta da sala se abriu em um rompante. Alma lançou-se a curtos passos em direção à sala, um par de meias cinzas protegendo seus pés conta o frio do assoalho de madeira.
Ananda tinha um formidável sorriso em seu rosto, daqueles que expunham cada um dos seus dentes translúcidos. Tinha em mão uma sacola onde carregava dois pacotes de pipoca de micro-ondas sabor manteiga, uma garrafa de refrigerante barato e ingredientes para o preparo de uma receita de brigadeiro.
"Ora, vamos lá, Alma! Ponha agora um sorriso nesse rosto tão bonito." Ananda repousou cuidadosamente a sacola em cima do balcão e rapidamente deslizou para o lado da amiga. "Sua irmã sempre foi essa mulher estrambólica, e nem por isso já deixei alguma vez você se portar desse jeito tão borocoxô. Agora não será em nada diferente."
Alma não pôde resistir a uma risada bem-humorada. Sempre se divertia ao ouvir a forma como Ananda pronunciava a palavra 'borocoxô.' E 'estrambólica', essa era novidade.
Escolheram para assistir algum filme provavelmente inspirado em alguma chick-lit barata: Alma porque, apesar de apreciar um bom filme que insuflasse nela alguma reflexão crítica, queria naquela noite se deixar envolver em algo mais leve, menos complicado; Ananda porque era das comédias românticas sem grandes desenvolvimentos que ela gostava.
O que Alma não faria por uma leveza de espírito!
YOU ARE READING
O verde nos teus olhos
General FictionAlma é uma jovem pintora repleta de amor por sua arte, capaz de enfrentar a todos para seguir seu sonho profissional. Todavia, a descoberta de uma doença a fará temer não mais poder pintar os seus quadros. Ao descobrir com quem pode de fato contar...