A vida faz uso de subterfúgios muitas vezes engraçados para nos fazer passar por certas experiências. Naquela tarde Alma se assustou consigo mesma. Viu-se tendo seus pensamentos a todo momento voltando-se para Álvaro. Eram pensamentos soltos, não direcionados, mas se encontravam perambulando pela ideia dele. De súbito uma ideia que lhe pareceu louca porém inevitável brotou na jovem. Queria andar, ver as ruas, as pessoas, sentir o cheiro forte da grama recém cortada.
E queria ter como destino aquela papelaria. Como se chamava mesmo? Império do Papel ou algo assim... ah! Empório do Papel, ela sorriu consigo mesma ao se lembrar do nome. Compraria algo para suas pinturas. Era verdade que não precisava de nada no momento, mas quem sabe precisasse em algum futuro próximo...
E o cheiro da grama estava mais fresco que nunca. O sol queimava a pele, mas era dosado pelo vento que soprava forte. Os olhos fechados maximizavam cada sensação quando Alma ouviu uma voz conhecida e arfante vindo de trás de si.
"Olhem só, se não é a pintora! Eu esperava vê-la de novo, confesso, mas na loja, não em uma caminhada em um dia quente."
Alma reconheceu o homem que agora a acompanhava. Com um sorriso tão sincero que transparecia quase uma infantilidade, ele vestia uma roupa em muito diferente daquela que usava no primeiro encontro despretensioso entre ele e Alma. Uma camisa regata grudava em seu corpo ligeiramente robusto devido ao suor causado por sua andança.
"Ah, olá... desculpe-me, mas como se chama, mesmo?"
"Leon. Leon Hipólito. A seu dispor, principalmente se tiver a sorte de ser seu atendente mais uma vez na papelaria." Ele riu, divertindo-se consigo mesmo.
"Ah, mas veja só que interessante, chama-se Hipólito assim como meu gato."
"E devo considerar isso uma vantagem, senhorita?"
"Mas é claro! 'Sem você as emoções do amanhã serão apenas pele morta das emoções do passado'."
"O Fabuloso Destino de Amélie Poulain!" Leon levantou os braços alongados e fortes para o ar, como quem não acreditasse no fato de ambos terem conhecimento a respeito do filme francês.
Um momento de silêncio se seguiu, até que Leon olhou para Alma, um sorriso expresso em seu rosto.
"Posso fazer uma pergunta? O que fez com que você quisesse virar uma pintora? Como você percebeu que se interessava por arte?"
"Bem, não me recordo ao certo quando descobri minha paixão. Meu pai costuma me contar que aos três anos eu tinha o hábito de usar tudo que estivesse ao meu alcance para desenhar - até cinzas de fósforos, acredite ou não. Minha mãe ficava carrancuda quando se deparava com minhas travessuras impressas nas paredes brancas de casa." Alma riu ao se lembrar das narrativas contadas por seu pai a ela. Leon a fitava com devota atenção. "Lembro-me muito bem o quanto precisei resistir à ideia de cursar uma faculdade. Meus pais haviam mantido uma poupança por anos para bancar meu curso superior. Mas simplesmente não era aquilo o que eu queria para mim, você me entende?"
"Uau!" Foi toda a resposta que obteve de Leon, as sobrancelhas do jovem surpresas e erguidas.
"O que foi?" Ela franziu a testa, sem entender a reação do vendedor.
"É que eu daria tudo para ter cursado uma faculdade. Mas meus pais nunca puderam bancar minha entrada em nenhuma delas, e nunca se importaram muito com educação. Bem, agora preciso trabalhar que nem um condenado para conseguir pagar por meus estudos."
"Uau!" Ela replicou a resposta de Leon após um tempo de silêncio constrangedor - ao menos para ela. Sentiu como se estivesse rejeitando um prato de comida que parecia em extremo apetitoso para outro. Leon soltou uma risada ao notar a expressão de Alma.
"Que foi?" O jovem pôs-se a caminhar de costas, a fim de encará-la.
"É que agora sinto-me uma egoísta irreparável, narrando como neguei as economias de meus pais para alguém que faria delas o bom uso que não pude."
"Ora, mas não se sinta assim, pintora! O que aconteceu foi que a vida deu uma coisa a você que me teria bem mais utilidade, e vice-versa. Eu teria tido uma liberdade de escolha sem fim, caso não estivesse amarrado a essa ideia de cursar o Ensino Superior, que teria sido bem mais aproveitada no seu caso. Alguma coisa também faltou a você. Às vezes o universo prega essas peças na gente - muito mais vezes que eu queria admitir. Mas é só isso, nada mais."
Alma nada disse. Apenas sorriu em um singelo sinal de compreensão. Aquela conversa sobre as suas vidas a fez recordar-se de sua mãe. Suas memórias eram decerto escassas, porém intensas, coloridas. Ela se lembrava de seus cabelos acastanhados, lisos e compridos; de seu vestido azul floral. E, como seria impossível evitar ao lembrar-se de sua mãe, lembrou-se de seu pai. Deus, como Benjamin sentia a falta de Isa, por mais que buscasse por algum motivo incompreensível não demonstrá-lo na presença das filhas. Pensar em seu pai a fez rememorar a noite em que serviu o jantar para Benjamin e sua irmã. Não havia falado com ele desde então. Seu pensamento logo foi interrompido pelo jovem vendedor da papelaria.
"Não precisa de mais tinta? Ou pincéis, talvez. A loja está lá, naquele mesmo lugar."
"Não por enquanto, tenho tudo de sobra. Mas em breve, quem sabe, eu não precise?"
Leon deu um sorriso esperançoso. Acompanhou-a por parte do trajeto aquela tarde. Como era divertido aquele rapaz, ela pensou consigo aquela noite ao deitar a cabeça no travesseiro.
YOU ARE READING
O verde nos teus olhos
General FictionAlma é uma jovem pintora repleta de amor por sua arte, capaz de enfrentar a todos para seguir seu sonho profissional. Todavia, a descoberta de uma doença a fará temer não mais poder pintar os seus quadros. Ao descobrir com quem pode de fato contar...