Capítulo XXIII

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"E qual é o seu nome, senhorita?" O porteiro perguntou atrás do vidro, os dedos enrugados prontos para discar o número do apartamento.

"Alma Moretti, senhor. Sou irmã de Amália." Alma respondeu, apoiando-se no balcão de mármore. É nisso que dá quase não visitar a própria irmã, ela pensou consigo. Após interfonar para Amália, o porteiro olhou para eles com um sorriso.

"Podem subir, senhorita Moretti e acompanhante. Apartamento 1001, bloco G – fica logo à esquerda da piscina." Ele indicou a direção com uma das mãos.

Tão logo chegaram à porta Alma tratou de bater sem qualquer demora. Ela carregava quibes assados de lentilha (obviamente comprados em algum restaurante qualquer); ele carregava bolinhos integrais de arroz com brócolis (obviamente preparados em casa e feitos por causa dela).

Ananda foi quem os recepcionou. Ao ver a amiga acompanhada, Ananda olhou-o de cima abaixo e torceu a boca num sorriso sugestivo, fazendo um joinha animado e sacudindo a cabeça em sinal de plena aprovação para Alma assim que viu uma oportunidade.

"Bom dia, amiga. E esse é...?" Ela apontou para Leon com o queixo, o sorriso sugestivo ainda em seus lábios e as sobrancelhas erguidas para Alma.

"Leon. Leon Hipólito." Ele falou ao esticar a mão para Ananda, um tom em extremo simpático em sua voz. Ananda balançava a mão de Leon, um sorriso bobo e uma cara de apaixonada em seu rosto.

"É um grande prazer conhecê-lo. Agora entrem, por favor. Amália está na cozinha, seu sogro está logo ali, sentado naquele sofá, e eu preciso arrastar discretamente minha amiga para aquele canto, para parabenizá-la pelo bom gosto." Ela soltou uma gargalhada e deu uma piscadela para Leon, puxando Alma pelo braço para uma das arestas do apartamento.

"Ananda, é em momentos como esse que eu me pergunto por que nós somos amigas." Alma soltou uma risada baixa, a mão perplexa sobre a testa. Ananda dava saltinhos animados, segurando a amiga pelos braços.

"Ai, Alma, você arrasou mais que nunca, porque se aquele Álvaro era um baita homem, esse Leon é um baita homem e meio." Alma, que antes fixava os olhos descrentes em algum lugar ao longe, voltou-os para Ananda, um sorriso desajeitado e repleto dos sentimentos mais intensos e verdadeiros se abrindo em seu rosto vermelho.

"Ele é mesmo, Ananda. Ele é."

De repente uma feição mais séria - o que era mais raro que qualquer outra coisa - tomou conta da expressão de Ananda, e as mãos nos braços de Alma se tornaram mais suaves.

"Você está mais serena, amiga. Isso me deixa feliz. Você sabe que eu sempre quis te ver bem assim, não é? Eu até enchia seu saco além do aturável." As duas riram juntas, em um uníssono.

Alma envolveu Ananda em um abraço forte e prolongado; em um abraço que parecia envolver ela própria em um sentimento de aconchego. Sussurrou um eu te amo contra os cabelos encaracolados da amiga, e então a afastou a fim de olhá-la naqueles olhos tão radiantes, de cor avelã.

"Obrigada por sempre me empurrar para cima, e nunca, jamais para baixo. Isso é exatamente o que acho mais especial em você."

A mesa de vidro de Amália tinha um vaso abarrotado de begônias no centro, e um cheiro saboroso de omelete de forno vinha da cozinha. Vinda de uma pequena caixa de som preta, I won't dance, na voz deleitável e forte de Frank Sinatra, tomava conta de todo o ambiente.

Ao chegarem à sala, Alma e Ananda notaram que Benjamin e Leon já se encontravam sentados em um dos três sofás estofados, imersos em uma conversa, parecendo dois velhos amigos se reencontrando após muito tempo distantes. Ao ver Alma, Benjamin se ergueu de seu assento, apoiando-se em seu joelho e dando um gemido baixo, dando logo em seguida um abraço apertado e um beijo na têmpora da filha.

"Minha filha querida, olhe só o que está acontecendo. Nós dois no apartamento da sua irmã para um almoço em família, da qual claramente Ananda faz parte. Ah, e que agora também conta com Leon, não é mesmo?" Benjamin sorriu ao dar um tapinha amistoso no ombro largo do rapaz. Leon desviou os olhos para Alma, uma expressão banhada em promessas em seu rosto.

"Sim, papai." Ela assegurou, sua voz em um timbre convicto. Isso já estava acordado entre os dois - um acordo silencioso, daqueles que não se firmam com o uso palavras. Mas declarar em voz alta, proferir aquele sim – havia outro peso nisso tudo.

"Olhem só que avanço, Alma não nos apresentava nenhum rapaz desde aquele Ismael da oitava série!" Amália entrou na sala vestindo luvas espessas para ajudá-la a carregar uma travessa fumegante, um tom de voz zombeteiro, piscando jocosamente para Ananda.

"Ah, sim, aquele jovem das pernas de cambito e espinhas na cara." Ananda ergueu um dedo indicador, rindo alto ao se lembrar do pobre Ismael.

"Tendo uma irmã e uma amiga como vocês, quem precisaria de inimigos?" Alma revirou os olhos, não conseguindo evitar uma risada.

"Deixe de ser dramática, Alma, e venha até a cozinha me ajudar a pegar as panelas e as travessas." Amália acariciou brevemente as costas de sua irmã, acenando com a cabeça para que a seguisse.

Havia uma panela contendo nhoque de batata-doce com molho de castanha e cogumelo, outra comportando um risoto de tomate e uma travessa repleta de pedaços de um lombo recheado de brócolis e bacon. Amália revezou seu olhar entre a travessa e Alma, mostrando os dentes e erguendo as mãos em sinal de rendição.

"Era para ser um almoço livre de presenças animais, mas Ananda não pôde se segurar."

"Terei uma conversa com Ananda sobre o pobre porco." As duas riram enquanto Amália terminava de secar cinco pratos para levá-los à mesa.

"Amália..." Alma murmurou o nome da irmã. "Sei que disse isso a você poucas vezes, mas obrigada." Ela segurou o braço de Amália, um sorriso se delineando em seus lábios. O rosto da médica se iluminou ao entender o que Alma dizia.

"Como foi a exposição?" Ela indagou, um tom animado soando em sua voz.

"Foi um verdadeiro sonho! Três quadros meus foram expostos, Amália. Mas acredito que disso você já saiba, já que você auxiliou Leon a selecionar obras minhas. Conversei com muitas pessoas artisticamente inteligentes, com o próprio Charles Drummond, e ainda vendi uma pintura minha a um casal - por dois mil reais, você acredita nisso? É inacreditável o que uma exposição pode fazer." Alma disparou cada palavra com um sorriso bobo.

"Isso me deixa feliz, Alma. Talvez você não acredite nisso, mas te ver assim me faz muito feliz." Amália disse ao empilhar os pratos e organizar os talheres.

"A Alma de alguns meses atrás talvez não acreditasse. Mas a cada dia eu tenho acredito mais e mais." Elas se entreolharam sem dizer qualquer outra palavra. Não era mais necessário.

Cada prato estava delicioso enquanto todos se reuniam em torno da mesa. Ananda contou que não poderia ser responsabilizar pelo pobre porco. Afinal, ela não havia feito nada além de comprar a carne em um restaurante - o que ela teria mantido em segredo se ninguém houvesse falado nada a respeito.

"Ia deixar nas cabeças de vocês a imagem de uma Ananda vestindo um avental florido, cantarolando músicas e salpicando algum tempero em cima da carne. Ah, mas vocês já sabem que essa cena seria improvável, ao menos neste mundo." Ela deu de ombros enquanto levava um pedaço de carne suculenta à boca.

"Aliás" Ela ergueu um dedo de supetão. "Quero deixar bem claro que se alguém tem responsabilidade quanto ao pobre porco, esse alguém é ninguém mais ninguém menos que Seu Benjamin. Ele me telefonou pedindo que eu o salvasse da triste perspectiva de não comer qualquer carne." Ananda gargalhou ao apontar para o pai de Alma, que havia erguido os braços em sinal de entrega.

"Eu não sabia mais a quem recorrer." Benjamin ria, as bochechas enrugadas vermelhas de vergonha.

Naquela tarde Alma sentiu uma felicidade verdadeira preenchê-la por dentro. Durante todo o almoço sentiu a mão quente de Leon - ora segurando a sua, ora passeando suave por seu joelho - e seus olhos e sorrisos sobre ela. Gargalhou ao ouvir as muitas graças de Ananda, conversou bem mais que o usual com Amália, recebeu um cafuné especial e demorado de seu pai - e uma recomendação para que tomasse bastante chá de moringa.

Ela reviveria aquelas horas de uma tarde ensolarada de domingo para sempre, em um looping eterno - se ao menos isso lhe fosse possível.

O verde nos teus olhosWhere stories live. Discover now