PREFÁCIO

139 6 1
                                    


Eu só descobri que era negro aos vinte e poucos anos. Parece brincadeira, mas não é. Também não é exagero.

Até então, ainda que não desconhecendo que branco definitivamente eu não era, mesmo porque minha escolha pelo curso de História na faculdade tinha tudo que ver com o meu inconformismo com relação ao papel destinado ao negro nos livros de História de minha infância e adolescência, eu não aceitava nem a palavra nem a minha própria negritude. Soava estranho. Soava forte. Eu vivia confortavelmente instalado dentro de palavras falsamente carinhosas do tipo “moreno” e “mulato” ou em termos simplesmente alienígenas, como “cidadão de cor” ou o famigerado “pardo” de minha
certidão de nascimento. Meus sentimentos em relação a minha cor ou a minha etnia eram simplesmente embranquecidos. Aliás, o embranquecimento é algo consensual na maioria das vezes e inconsciente noutras tantas.

Descobrir-me negro já é outra história. Não foi nem bom nem mau paramim. Nenhuma panacéia. Até porque, como grande parte do povo brasileiro, não sou um negro com raízes imaculadas vindas unicamente da África. Tenho o sangue da diversidade que fez do Brasil esse gigante cheio de complexos ede complexados. Os meus pés estão firmemente apoiados em vários territórios e culturas. Gosto disso. Por outro lado, também me agrada e muito fazer parte dessa etnia que, apesar de ainda estar relegada a um segundo plano na sociedade, teve e tem, nela, um papel preponderante a desempenhar, inclusive resgatando-lhe o prazer, a satisfação e principalmente a alegria de, além de ser negro, ser gente. Gente que contribuiu com a língua, com os costumes, com a maneira de ser generosa, alegre e trabalhadora desse povo brasileiro. Há muito a ser contado sobre nós — no passado, no presente e no futuro —, e como
escritor e como negro, em meus livros, gosto de fazer isso.

Pretinha, eu?, antes de ser um livro ou uma pergunta, traz em suas páginas muitas das dúvidas, dos temores e dos falsos conceitos que nortearam minha própria existência até os vinte anos. Não é autobiográfico, mas em algumas partes, podem acreditar, tem a minha cara. Nele eu sou a Vânia e também a Bel, a determinação soldadesca de uma e a inquietação de outra me pertenceram durante bastante tempo e, pior, devem pertencer a muitas outras pessoas.

Júlio Emílio Braz

Pretinha, eu? (Júlio Emílio Braz) (1997)Onde histórias criam vida. Descubra agora