ALVOROÇO

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Nossa!

Foi um grande alvoroço, uma confusão, um zunzunzum pra lá e pra cá que só vendo!

Todo mundo foi pego de surpresa. Houve gente que não acreditou nem depois que viu. Olhava e se entreolhava, o queixo caído, os olhos arregalados, como se sentindo enganada ou vítima de alguma brincadeira sem graça dos próprios olhos, ou como se estivesse vendo alma do outro mundo.

Não era pra menos. Aquilo jamais havia acontecido no Colégio Harmonia.

Nunca.

Nunquinha, nunquinha.

Foi ela aparecer no portão, com o uniforme do colégio, pra começar o olha-pra-ela, olha-pros-lados. Bom, na verdade, não era pra ela propriamente. Era pra pele dela.

Ninguém entendeu. Ninguém engoliu.

Aquilo não podia estar acontecendo no Colégio Harmonia.

Por quê?

Porque, em cem anos de tradição, jamais alguém como Vânia entrara lá. Pelo menos, não como aluna.

Por quê?

Porque ela era... era... era... era preta, pretinha, pretinha, pretinha de parecer azul.

O impacto foi tão grande que a primeira reação das pessoas — alunos, pais e alguns professores — foi de espanto. E dos grandes. Era algo surpreendente.

Em seguida vieram os risinho debochados. As brincadeiras sem graça. A implicância.

— Olha, o Ciep* — é mais lá pra baixo, queridinha — mexeu uma das meninas, logo depois que ela entrou.

Vânia nem olhou pra ela.

Puxa...

Vânia parecia saber muito bem o que queria e era durona. Estava na cara dela. Até quando a brincadeira começou a passar dos limites, continuou andando, olhando pra frente, como se nem fosse com ela. Vânia parecia saber exatamente o que a esperava quando pôs os pés no
Colégio Harmonia.

Senti uma inveja danada de toda aquela coragem. Não sei bem por quê. Quando vi, já estava sentindo aquilo. Na hora, achei muitoesquisito.

É, ela parecia preparada pra enfrentar qualquer coisa.

Tinha cara de teimosa.

Era bem pretinha, mas tão pretinha que do lado dela eu me sentia mais branca do que a Carmita, com sua cara cheia de sardas e os longos cabelos vermelhos. Vânia tinha o cabelo duro preso num monte de trancinhas como aqueles cantores de reggae que a gente vê na televisão. Os lábios eram grossos e vermelhos. Nariz de batata. Os olhos, grandes e brancos. Os dentes iluminavam um sorriso enorme e brilhante como o sol.

Mesmo depois da surpresa e apesar de mostrar que era uma aluna superinteligente — acho que era por causa disso —, volta e meia tinha
alguém implicando, mexendo com ela...

— Pretinha, pretinha — repetiam as meninas.

Pior do que aquela implicância, só o jeito de pôr defeito em tudo, principalmente nas pessoas de quem não gostava. E Carmita tinha um
talento todo especial para encontrar um defeito novo nas pessoas, principalmente quando se tratava da Vânia.

Eram os sapatos mais pobrezinhos da Vânia. Era o jeitão metido da Vânia, que não falava com ninguém e vivia agarrada à professora, que, por sua vez, não parava de elogiá-la.

— Uma puxando o saco da outra! — resmungava.

Era o fato de Vânia ir e voltar de ônibus para casa.

— Nooossa, Vânia, que carrão!... Tô morrendo de inveja...

Era principalmente o fato de Vânia ser pretinha, pretinha, como repetia naquelas horas em que ficava com muita raiva de Vânia, as boas notas de Vânia, seus belos trabalhos, seu interesse sincero por tudo e qualquer coisa que os professores falavam ou tentavam ensinar. Tudo isso servia para deixar a Carmita morrendo de raiva.

Algumas vezes, eu até concordava com ela.

A Vânia não era real...

Por que ela tinha de ser daquele jeito? Por que tanto interesse? Por que tanta vontade de aprender? Por que tinha de ser sempre tão boa em tudo!...

Ninguém consegue ser bom em tudo o tempo todo a não ser que esteja fingindo... e fingindo muito bem!

Sabíamos que muito daquilo que Carmita fazia era somente inveja. Medo, talvez. Antes de Vânia chegar, Carmita era o centro das atenções da sala. Todos tentavam se vestir tão bem como ela. Todos precisavam ir a uma das festas na casa  ou ser seu amigo. A concorrência tomara Carmita invejosa e aborrecida. Acabávamos contaminadas por aquela contrariedade e inveja. Muitas vezes, sem notar, repetíamos suas palavras, engrossando o coro de pequenas maldades que Vânia ouvia ou sentia quase todo dia, sem dar um pio, sem reclamar ou xingar. Não dizia nada. Ia e vinha sem dizer nada. Nem olhava pra gente.

Bem, quase.

Ela olhava pra mim.

Querendo mostrar que não era tão durona assim?

Cheia de raiva?

Querendo chorar?

Na verdade, acho que ela se sentia confusa diante de mim. Eu, mais do que qualquer outro, a deixava muito confusa.

Claro, Carmita tinha os cabelos vermelhos, os olhos azuis e a pele branca, o que tomava suas muitas sardas ainda mais visíveis. Bárbara era loura de olhos verdes. Os cabelos de Vivi eram negros, mas a pele dela também era branca. Tatiana ganhou o apelido de Gringa por seus cabelos cor de palha e a pele avermelhada, as bochechas — ela era gordinha — vermelhas, vermelhas. Herança dos avós holandeses, dos quais se orgulhava muito.

Mas eu... eu...

Eu era morena. Não tão preta quanto a Vânia, ou com o cabelo “ruim” e os lábios grossos, mas eu era morena. Tinha os olhos negros. Os cabelos curtos, também pretos, também menos lisos do que gostaria que fossem, mas bem melhores do que os dela.

Sei lá, Vânia me assustava. Eu nem sequer gostava de ficar muito perto dela. Era medo de que notassem a semelhança há tanto tempo ignorada ou simplesmente despercebida. Talvez fosse por causa desse medo que eu mexia com ela como as outras meninas gostavam de mexer. Era assustador admitir que nós duas possuíamos alguma coisa em comum. Apesar de Vânia ser mais pretinha do que eu.

Pretinha, eu?

Não, eu não.

Eu era morena.

Era o que mamãe dizia e papai repetia.

Pretinha... pretinha... pretinha... pretinha era a Vânia com seus cabelos em tranças e seus sapatos pobres. Pretinha era a Vânia, de quem todos zombavam e sobre quem contavam piadas na maioria das vezes bastante maldosas.

Pretinha era a Vânia, que se calava quando alguém a chamava de “pretinha”, pouco ligando, nem se importando que zombassem dela de um jeito ou de outro. Ou fingindo que não se importava.

Não, ninguém podia ser tão durona assim...




*Ciep - sigla para Centro de integração da escola pública. Tipo de
organização escolar introduzida no Rio de Janeiro pelo Governo de Leonel Brizola.

Pretinha, eu? (Júlio Emílio Braz) (1997)Onde histórias criam vida. Descubra agora