AMIGAS

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Fiquei meio sem jeito de tomar a iniciativa. Afinal de contas, depois daquele primeiro "oi", a gente nunca mais se falou. 

Quer dizer, falou sim, mas ali, aqui, nada de muito, nada de interessante, nada como se fôssemos amigas.

Bem que eu queria. De vez em quando, puxava papo, mas aí apareciam Carmita e as outras e era um tal de "Bel, o que você está fazendo?", "Ia falar com ela, Bel?", que eu acabava ficando sem graça e desistindo. Esquecia.

Mesmo depois que briguei com Carmita, ficamos cada uma de um lado e só nos encontrávamos quando entrávamos na sala de aula ou saíamos dela. Chegava a ser estranho.

Durante os ensaios da quadrilha, chegamos a nos falar e, depois do que aconteceu, falávamos quase todo dia. Passei a ir de ônibus com ela. Minha mãe se chateou, dizendo que não ficava bem, que a gente tinha um carro com motorista pra me levar e me buscar. Bati pé. Resmunguei muito. Fiz até birra. Ela acabou aceitando. Quer dizer, concordou, mas mesmo assim ficou um tempão reclamando, apelando pra eu tomar cuidado.

Puxa, quem visse a mamãe, certamente pensaria que eu estava indo pra guerra.

Mãe é mãe, né?

Sabe, andando de ônibus com Vânia, descobri que realmente não a conhecia.

Claro, tinha a Vânia da minha sala, que era esperta e inteligente, que só recebia elogios e irritava meio mundo com seu jeitão de CDF. Havia a Vânia santinha, que não cometia um só erro e que era paparicada por professores e colegas. Havia a Vânia que escondia seus sentimentos por trás de sorrisos e de gestos de indiferença. Havia também a Vânia calada, mas teimosa, que dançou na quadrilha.

No entanto, encontrei mais uma Vânia, que eu não conhecia direito, uma menina que era obrigada a não ser menina, que falava com muito orgulho dos pais que tinha, mas que muitas vezes se sentia sufocada por eles e por seus sonhos.

Muitas Vânias.

Aquela que vivia fazendo planos para muitos e muitos futuros.

Uma outra que se equilibrava sobre a corda bamba de sonhos sempre grandiosos, que dizia que queria ser advogada, mas apenas porque os pais desejavam. Na realidade, ela ainda não pensara em nada daquilo. Queria era viver bem sua vida.

É, aquela Vânia eu não conhecia.

Tinha também outra Vânia, que estufou o peito cheia de satisfação quando contou que ainda ajudava a mãe, que era lavadeira.

Uma outra Vânia tinha os olhos sempre brilhantes de entusiasmo quando falava do pouco que tinha como se fosse um tesouro grandioso.

Ah, é... e tinha, claro, a Vânia que reunia todas as outras numa só. Foi a essa que um dia eu acabei chamando de amiga.

Eu não sabia que ela era assim.

No quarto dela não tem lugar pra mais nada a não ser livros. Livros. Livros. Livros.

É bem verdade que nem todos ela leu...

— Meu pai diz que a gente tem de ler livros, que pobre e preto tem de ser inteligente e não dar bandeira se quiser vencer na vida, mas eu gosto mesmo é de ler os gibis da Mônica e do Tio Patinhas. Tem alguns livros que já li e gostei pra caramba. Outros são muito grossos e difíceis de entender. Mas se eu não aceitar os livros ou disser que não gosto da maioria deles, acho que ia chatear o meu pai. Por isso, aceito tudo. Qualquer hora dessas, talvez até leia todos eles ou, pelo menos, a maior parte.

Não quis dizer nada, mas a Vânia já tinha lido mais livros do que qualquer uma de nós na sala... e sem ser obrigada.

Digam o que disserem, ela é realmente uma fera. Só que não gosta disso.

— É chato você ter de passar o tempo todo fazendo papel de boazinha, não se metendo em confusão, não reagindo às provocações de gente como a Carmita, apenas porque o pai da gente diz que pessoas como nós não devem se comportar mal, que é feio brigar e que vão falar mal da gente se brigarmos, xingarmos ou não concordarmos com o que nos dizem. Eu já não estava mais agüentando ter de engolir tudo o que Carmita dizia ou de ser sempre a sabe-tudo da sala. Eu quero apenas ser igual a todo mundo.

— Já disse isso pro seu pai?

— Já...

— E ele?

— Morre de medo de eu perder a bolsa de estudos no colégio. Mas eu já disse pra ele que se não for no Colégio Harmonia, pode ser em qualquer outra escola. Uma escola pública como a que eu estava. Lá eu não era tratada como animal raro, lá eu era gente e...

— Ah, esquece isso, Vânia, agora tudo vai ser diferente.

— Vai?

— Quer saber a verdade?

— Quero!

— A gente é que vai fazer ficar diferente.

Ela me emprestou um de seus livros. Um dos que ela já tinha lido. "A cor da ternura". Depois que devolvi, peguei mais dois. "A história de uma folha". "As viagens de Gulliver" . Passei a levar pra ela os que encontrava lá em casa. Ah, é, e os gibis...

Somos amigas de verdade.

É claro que Carmita não gostou nem um pouco e voltou a implicar com Vânia e ainda mais comigo.

Ela não muda.

Põe defeito em tudo. Arremeda a gente, o meu jeito e o jeito de Vânia andar. Me chama de "gansa gorda". Maldade. Vânia é sempre a "bonequinha de piche". Ou "picolé de asfalto". Toda hora me para e puxa conversa, mexe mais um pouco. Quando não respondo, me empurra. Diz bobagem...

Carmita continua com raiva. Ela ainda não conseguiu tirar a grande máscara de bruxa má que colocou na cara.

—Não liga, não, Bel — pediu Vânia, segurando meu braço. — Ela é boba assim mesmo!

Ah, aí Carmita não agüentou e soltou uma gargalhada que fez todo mundo, inclusive o professor Genésio, virar e olhar pra ela.

— Pode contar a piada pra nós também, Carmita? — perguntou o professor. — Pelo visto, deve ser muito boa, não?

—Ahhh, não é nada, não, professor... bobagem, só bobagem... — Carmita, muito sem jeito, não deu mais nem um pio o resto da aula.

Não tinha acabado.

Dava pra ver pela cara feia que Carmita fez pra gente.

No recreio, veio atrás de nós. Ela, Tatiana e Bárbara. Quando Vânia viu que Carmita tinha um copo de iogurte na mão, disse:

— Se ela vier me sujar com aquele iogurte, vai levar um banho de guaraná!

Exibiu o copo cheinho que tinha na mão, arma poderosa contra as intenções das três, fossem lá quais fossem.

Mas Carmita só queria falar e implicar. E, como pensávamos, falou e implicou. A gente não deu a menor bola. Ficou olhando e ouvindo. Esperando que se cansasse.

— Você é tão boba, Carmita — disse Vânia, depois de ouvir tudinho com a maior calma do mundo.

Fomos saindo.

Virei pra trás e ri muito.

Bárbara olhou pra Tatiana, Tatiana olhou pra Bárbara e as duas olharam pra Carmita. Parecia ensaiado.

— E agora? — perguntou Tatiana.

— E eu sei lá! — respondeu Bárbara. Virando-se para Carmita, quis saber: — E então, Carmita? A gente...

Continuamos andando como se não fosse conosco, mas deu pra ouvir, e ouvir bem, quando Carmita começou a gritar com as duas. Ô, se deu!...

Alguém tinha de pagar o pato, não tinha?

Pretinha, eu? (Júlio Emílio Braz) (1997)Onde histórias criam vida. Descubra agora