UMA AULA DIFERENTE

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O professor de história foi o primeiro a entrar. Depois veio a professora de português. A de matemática sorria muito, enquanto o professor de biologia conversava animadamente com o de inglês. 

— Tá faltando um professor negro... — observou Vânia

Ultimamente ela andava se soltando de verdade. Já se fora o tempo em que entrava muda e saía calada, que aceitava tudo docilmente. Questionava os professores a todo instante. Discutia quando tinha de discutir. Finalmente estava sendo a verdadeira Vânia. Até uma nota ruim ela andou tirando, pra espanto de todos. A sua última implicância era com o fato de o Colégio Harmonia jamais ter tido um professor negro.

— Aqui nunca teve um... — lembrei.

— Tô vendo.

— Será que o professor Epaminondas é racista?

— Sei lá!. Pode ser que, com a fama do Harmonia, colégio de elite e coisa e tal, nenhum professor negro tenha tido a coragem de dar as caras por aqui com um currículo. De qualquer forma, está faltando um professor negro...

— Psst! — disse alguém atrás de nós.

O diretor do colégio foi o último a entrar. Parecia conselho de classe.

Todos perfilaram-se à nossa frente.

Entreolhamo-nos, preocupadas. A preocupação aumentou a palidez no rosto de Carmita. Bárbara e as outras tinham apreensão e medo nos olhos arregalados, em grande mas silenciosa expectativa.

—Lá vem coisa...—disse alguém atrás de mim. Pude notar que não tiravam os olhos de Carmita.

Silêncio.

Nem o sorriso amistoso do diretor e dos professores serviu pra tranqüilizar a turma.

— Olha a suspensão aí, gente!...

Ficamos esperando. Depois de uns instantes, o diretor adiantou-se e ficou nos observando em silêncio por mais algum tempo. Sorriu.

— Iiii... — A voz com preocupação mais uma vez soou em meus ouvidos.

Outro sorriso e finalmente ele disse:

— Nós temos um problema.

Um instante de silêncio e tensão, os olhares indo pra lá e pra cá, interminavelmente.

Ele fez um gesto tranqüilizador.

— Não, não. Quando digo que temos um problema, não estou dizendo que não podemos resolvê-lo... isto é, se quisermos. Estou dizendo apenas que podemos resolvê-lo se decidirmos tomá-lo nosso. Não, não é o problema deste ou daquele. É um problema nosso e, lamento dizer, um problema muito antigo, que começou com outras pessoas e que eu e pessoas como eu preferimos eternizar—olhou pra Carmita e depois pra Vânia, e mais uma vez pra Carmita. — Precisou que alguém nos acordasse para ele.

Sorri pra Vânia. Ela sorriu de volta.

— Lamentavelmente, não é um problema tão pequeno que possamos resolver e eliminar aqui. Não, ele não existe apenas aqui. Existe em muitos lugares e de muitas formas diferentes. Existe até em quem, muitas vezes, se acha imune a ele.

— Nós — apontou para os professores — andamos conversando. Conversamos, discutimos, brigamos. Sabe, seria fácil deixar que as coisas se resolvessem por si só, que ficasse o dito pelo não dito a que costumeiramente gostamos de relegar nossas dificuldades. É fácil. Fecham-se os olhos e pronto! Não existe o problema. E se ele existe — que beleza! —, nós não o vemos. Podíamos ter feito isso. Não era com a gente. Não nos dizia respeito. Quem tivesse o problema, que cuidasse dele. Não é assim que costumamos fazer?

Silêncio.

— Bom, mas não é assim que se resolvem os problemas. Talvez seja assim que os escondamos, mas não é assim que os resolvemos. Por isso, decidimos tomá-lo nosso. Meu. Dos professores. Dos alunos. De todo o Colégio Harmonia.

Silêncio.

Subitamente, um dos alunos no fundo da sala perguntou:

— Que problema é esse, diretor?

O diretor voltou-se para os professores e apontou-os para todos nós, informando:

—A aula de hoje será exatamente sobre isso e todos nós vamos falar sobre esse problema... sobre discriminação...—inesperadamente, virou- se para Vânia e perguntou: — Por que você não começa, querida?

Pretinha, eu? (Júlio Emílio Braz) (1997)Onde histórias criam vida. Descubra agora