MAMÃE

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— Uma pretinha, você disse?

— Foi o apelido que a Carmita e as outras resolveram dar pra ela, mãe.

— E ela é?

— É o quê?

— Pretinha, ora... é?

— É.

— Muito?

— Muito, muito mesmo.

Mamãe parou e fez uma careta de aborrecimento.

— O que deu nessa gente? Ela...

— Ela é uma boa aluna, mãe. Das melhores. Melhor do que eu.

— Quem disse?

— Ah, todo mundo!...

Mamãe pareceu confusa. Ficou me olhando como se não fosse possível existir no mundo alguém mais inteligente do que a filha.

Coisa de mãe.

— E onde é que ela arranjou dinheiro pra pagar o colégio? O Harmonia é caro, muito caro...

— Ela ganhou uma bolsa.

— Verdade? E como?

Contei toda a história de Vânia. Falei também das implicâncias da Carmita e, principalmente, do que eu estava sentindo. Por fim, com uma dúvida muito forte em minha cabeça, perguntei:

— Eu também sou pretinha, mãe?

— Hem? —Acho que minha mãe se assustou quando perguntei.

— Pre...

— Mas é claro que não! De onde você tirou essa idéia, menina?

Fiquei olhando para mamãe. Seus cabelos dourados caíram no meu rosto quando se inclinou na minha direção.

— Você é moreninha... moreninha...

Uma resposta que eu conhecia e aceitava. Pelo menos até o aparecimento de Vânia.

Olhei e fiquei assim, não tirei mais os olhos do seu sorriso carinhoso. Ela realmente acreditava no que dizia. Devia ser fácil, com seus cabelos louros e os olhos verdes como os de Tatiana!

Minha mãe...

Naquele momento, quis ter a pele tão clara quanto a dela. Não precisaria ficar enchendo a cabeça com dúvidas daquele tipo nem ficaria repetindo o que ela dizia, como que procurando me convencer de que tinha razão.

MO-RE-NI-NHA!

Não adiantou nada.

As dúvidas continuaram ali, na minha cabeça; e, entre elas, o rosto de Vânia, pretinho, pretinho, sorrindo pra mim.

Mamãe notou. Até papai, invariavelmente distraído, sempre tão preocupado com seu escritório, envolvido com o trabalho de advogado, notou. E, ele também notou. Deu pra ver o olhar de censura que dirigiu a mamãe.

Ficou observando de longe e com certa contrariedade. Depois chegou mais perto e, certo de que meu silêncio escondia alguma coisa, perguntou:

— Tá tudo bem, filhinha?

Olhamos um para o outro.

Ele também era moreno, não tão moreno quanto eu, mas, mesmo assim, moreninho. Não gostava de ser chamado de "moreno". Preferia referir-se a si mesmo como mulato e, volta e meia, ainda acrescentava um "claro" ao mulato — "mulato claro". Papai simplesmente não discutia esse tipo de coisa com a gente. Era como se não tivesse importância.

Antes, quando não tinha o escritório e tantos clientes e não ia tanto a festas de gente importante nem aparecia nas colunas sociais, ele até costumava conversar sobre isso. Falava dos pais e do esforço que haviam feito para mandá-lo para a universidade. Falava de seus próprios esforços e dificuldades e contou uma ou outra história em que sempre havia gente como Carmita, implicando muito com sua cor. Naquela época, ser negro não o incomodava. Ele chegou a dizer uma vez que todos deveriam se orgulhar de ser o que eram. De uns tempos pra cá, papai mudou. Foi se preocupando mais em ganhar dinheiro e ganhou, ganhou muito. A gente mudou de casa. Trocou de amigos. Esqueceu o que era. Quando insisto nisso, ele fala como minha mãe. Que eu sou moreninha...

— Quem é a Vânia? — quis saber meu pai.

Repeti a história toda.

— Foi ela quem disse que você era pretinha? — interessou-se, preocupado.

Fiquei cismada. Não entendi a preocupação.

— A Vânia não disse nada, pai...

— Não? — Papai fez cara de desconfiado.

— Não... — tomei a responder.

Duvido que tenha acreditado.

Nem meu pai e muito menos minha mãe. Eu só via os dois pelos cantos, conversando, um fazendo perguntas para o outro, os dois, volta e meia, espichando os olhos na minha direção.

— Deve ser aquela pretinha que anda pondo essas idéias na cabeça dela—reclamou mamãe certa noite. Parei na porta da cozinha e fiquei ouvindo: — Como é mesmo o nome dela?

— Vânia...

Mamãe queria ir no colégio pra reclamar, mas papai não deixou.

— E você ia dizer o quê? — quis saber. — Que a menina anda chamando nossa filha de "pretinha"?

— Mas ela é...

— Pretinha? Clar...

— Morena! — Minha mãe encerrou a discussão com voz firme.

— É? — Dava para sentir pelo seu tom de voz que papai estava aborrecido.

— Francamente, Eduardo. Eu estou falando sério. Essa menina...

— Essa menina já deve ter problemas demais no colégio para nós dois ficarmos pensando em criar outros.

— Mas ela...

— Acho que vou para o escritório.

—É o que você faz, sempre que tem um problema aqui em casa...

Depois disso, os dois resolveram brigar e fui embora.

Pretinha, eu? (Júlio Emílio Braz) (1997)Onde histórias criam vida. Descubra agora