MALDADE

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Hoje, fizemos uma maldade das grandes com Vânia. Quer dizer,Bárbara inventou, Carmita adorou e nós todas concordamos em participar.

Nos últimos dias, a sala inteira tinha reparado que, mesmo com ocalor que estava fazendo, Vânia ia sempre de casaco. 

— Estranho, né? — disse Bárbara, certo dia. 

—Vai ver que ela é friorenta assim mesmo — opinou Vivi.

— Nãããão... tem alguma coisa aí que... 

— O quê? — Ficamos interessadas.— Não sei... mas vou descobrir! 

E tanto fuçou, que acabou descobrindo:

— Sabe a Rê? —Todas nós sacudimos a cabeça afirmativamente.—Pois é, ela disse que a Vânia não tira o casaco porque tá com dois buracões na camisa, debaixo dos braços. 

— É mesmo?

— Foi o que a Rê disse... 

— E como ela sabe? 

— A Rê viu quando ela tirou o casaco pra entrar no ônibus.Estavam bem lá... foi só ela agarrar nos ferros da porta pra subir e lá estavam os dois, maiores que duas crateras lunares! 

Rimos alto. Ficamos rindo uma pra outra, todas cheias de más intenções na cabeça. Mas, como eu disse, a ideia foi da Bárbara.

— E se a gente escondesse o casaco? 

Risinhos, risinhos.

— E, eu bem que queria ver a cara dela... — disse. Não entendi,mas me vi toda sem jeito quando falei isso. Não me senti legal. 

— E como a gente vai fazer isso? Ela não tira aquele casaco!Passamos um tempão pensando. 

—A aula de educação física! — quase gritou a Tatiana. Sorriu e,olhando pra gente, explicou:—Ela vai ter de tirar o casaco pra fazer ginástica, não vai? 

É, ia sim.

A aula de educação física era no dia seguinte e, como a gente já sabia, Vânia seria a última a sair pra aula. Ela só trocava de roupa quando todo mundo já tinha saído do vestiário. 

— E pra ninguém ver os buracões — explicou Bárbara, com um risinho debochado. 

Tudo combinado, escondi-me entre os armários e esperei que ela,depois de acreditar que todas tinham saído, se trocasse e fosse para a quadra. Vi os buracões. Não me sentia legal. Pior. Sentia-me confusa.

Se não estava gostando, por que estava fazendo aquilo?

Não sabia. Não queria pensar. Fugi rapidamente daquelas perguntas que apareciam a toda hora na minha cabeça; corri e peguei o casaco.Escondi-o dentro da minha mochila. 

Fizemos a aula, uma olhando pra outra, rindo, esperando pelo momento em que Vânia não encontrasse o casaco. Carmita tava que não se aguentava e, de vez em quando, caía na risada. 

— Que bicho te mordeu, Carmita? — perguntou a professora. 

— Nada, não, professora Sofia. Nada, não... — Carmita olhava pra Vânia e acrescentava: — Bobagem... só bobagem... ]

Brigamos duas ou três vezes com Carmita, mas não adiantou nada.Ela continuou rindo. Risinho pra lá, risinho pra cá. 

Quando a aula acabou, a gente — eu, Bárbara, Carmita, Vivi e Tatiana—ficou pra trás. Como Vânia também não entrou, esperando que fôssemos primeiro, resolvemos ir na frente e impedir que ela ficasse ainda mais desconfiada. 

Vânia não era boba e também tinha reparado os risinhos da Carmita.Algo dentro dela parecia lhe dizer que, de uma forma ou de outra,aquela inesperada alegria tinha alguma coisa que ver com ela. 

Tomamos banho e nos trocamos bem depressa. 

— Eu só quero ver a cara dela quando não encontrar... — gargalhou Vivi, ansiosa.

Quando ela entrou, nós saímos. Carmita soltou outro risinho e deu pra ver a desconfiança crescer na cara de Vânia. Ela sabia que a gente estava preparando outra de nossas maldadezinhas contra ela. 

Voltamos pra sala. Tinha prova de geografia. Mas quem foi que disse que estávamos pensando em prova? Quem tinha cabeça para istmos e montanhas, capitais e países do mundo? Nenhuma de nós tirava os olhos da porta, esperando que Vânia aparecesse. Esperando pra ver como Vânia ia aparecer...

Ela demorou. Demorou tanto que a gente começou a olhar uma pra outra, com cara de boba. 

— Será que ela foi embora? — perguntou Tatiana

Não deu nem pra responder. 

A porta abriu e Vânia entrou.

Todo mundo olhou pra ela. A professora sorriu amistosamente.Vânia sorriu de volta, mas dava pra ver o medo no rosto dela

—Você está atrasada, Vânia — disse a professora. — É melhor ir logo pra sua mesa que eu vou dar a prova. 

Vânia não disse nada. Encolhida, preocupada, apertou os braços bem junto do corpo.

— Olha, olha — pediu Carmita, apontando pra Vânia. — Tá escondendo os buracos debaixo do braço. 

— E agora? — perguntei.

—Agora você vai ver só.—Dizendo isso, Carmita se levantou,ficando bem na frente da Vânia. Tinha um caderno na mão. Sorrindo com carinho, entregou-o para Vânia, as palavras se derramando de sua boca com fingida amizade: — Esse caderno é seu, Vânia?

Vânia, pega de surpresa, estendeu a mão para apanhá-lo. O enorme buraco debaixo do braço direito apareceu para que todo mundo visse.Quem não viu na hora, acabou vendo quando Carmita, morrendo de tanto rir, apontou-o, gritando: 

— Noooossa, Vânia, que buracão!

Gargalhou, mas gargalhou de se dobrar!

A turma inteira riu. Mais de Carmita, que não parava de rir, que de Vânia, que ficou parada no meio da sala, envergonhada, os olhos brilhando, cheios de lágrimas. 

Maldade.

— Venha comigo, Carmita! — gritou a professora, pegando-a pelo braço, os olhos voltados preocupadamente para Vânia, penalizada. — E pare com essa gargalhada idiota! Pare! 

Quem disse que Carmita parou? 

Nada. 

Ela continuou rindo mesmo depois que a professora a puxou para fora da sala. Riu até sem vontade de rir, só pra deixar Vânia ainda mais sem jeito, mais morta de vergonha.

Pretinha, eu? (Júlio Emílio Braz) (1997)Onde histórias criam vida. Descubra agora