Esta é a sexta que me fez mais feliz em toda a vida. O meu caminho tomou finalmente a direção e cruza-se até a morte prometida. Sexta de meu casamento.
Parece ser ontem que Charlotte Barbier entrou em meu caminho e me orientou mais do que qualquer rosa dos ventos faria. Tomou as rédeas de minha direção, e desde lá deixei-me ser domado.
Desde quando meus olhos se encontraram com o mais refinado dos quadros, mais profundo que toda a Via Sacra daquela Catedral. Aqueles olhos repletos de céu, fizeram-me viajar ao Céu mais rápido que os anjos em batalha. Eram janelas cintilantes ao Paraíso. E hoje ele é todo meu.
Hoje, via ela adentrando pela porta da mesma Catedral; mais bonita do que qualquer imagem bem esculpida do local. A sua felicidade a tornava uma santidade viva, diferente das esculturas ali expostas.
Seu vestido perolado ressaltava ainda mais sua beleza. Tudo isso já me era o suficiente para haver mais um dia santo no calendário católico.
Eu era o discípulo de toda aquela caminhada até ao meu encontro, da retirada de seu véu, do beijo quente e calmo, cheio de antíteses que só nós podíamos sentir no ar, mais forte do que qualquer incenso da Catedral.
Após nosso primeiro contato, naquele dia 30 de maio, nossos pais calharam a ficar próximos também. Não demorou muito para notarem opostos: o senhor Barbier comandava uma grande empresa de automóveis.
Papai e ele brigavam tal como crianças, só faltavam colocar seus cavalos e motores em disputas.
Enquanto a pólvora crescia, eu me mantinha em perfeita segurança nos primeiros chás da tarde que apreciava na vida, pois neles não estavam uma moça qualquer, e sim, minha Charlotte Barbier.
Ela contava histórias tão espirituosas, que me era impossível ter o tédio. Queria tê-la.
Contou-me o costume de se disfarçar como menino para muitas coisas. Assim que aprendera a jogar bolinha de gude e obtivera as melhores memórias de infância. Nos rasos momentos em que nossas mães não estavam presentes, jogávamos e minha derrota era sempre iminente.
Ainda abriu seu peito para admitir os puxões de orelha do padre Antônio quando ele próprio descobriu a farsa. Ela conseguiu um ano despercebida como coroinha. As consequências foram inúmeros rosários e Salve-Rainhas por uma semana inteira.
"Sua única derrota segue sendo somente com o padre Antônio. Aquele não se deixa perder nunca". Lembro que disse, e ela rebateu com aquela voz que cada vez me habituava mais: "Ah, mas vitoriei, sim. Olha os rosários rezados que ganhei de prêmio!". Ríamos feito crianças.
Charlotte tinha o peito de qualquer outra mulher, com seus interesses em vestidos delicados, ao mesmo tempo que era um peito somente seu, com seus achismos únicos. Ela contava que fugia de qualquer pretendente; não se sentia confortável pela pressa, que era muito jovem ainda para tais preocupações.
Admito dizer que ouvi sentindo-me interpretado, ao mesmo tempo que queria marcar o mais rápido casório com aquela menina. Entretanto, atuava como um bom amigo.
Até então, não notávamos que a relação de nossos pais era cada vez mais afiada. Entraram em uma última e séria discussão.
Charlotte parou de comparecer ao chás da tarde. Papai ordenou que eu nunca mais dirigisse uma palavra sequer aos Barbier.
Foram dez meses odiosos. Sem seu cheiro, suas risadas e bolinhas de gude. Nunca me vi tão dependente de algo; cogitei descontar tudo no álcool.
As cartas eram meu único consolo. Nos comunicavá-mos às francesas.
Como esperado, recomeçaram aqueles chás da tarde infernais de mamãe me empurrando mulheres desconhecidas. E com isso, desculpas esfarrapadas de me retirar o mais rápido possível.
Em Abril de 1911, mais uma pretendente chegou à minha casa. Era morena, com olhos de esmeralda expressivos. Isso só lembrou-me mais dos olhos cintilantes da menina que eu tanto pensava. A puberdade me fazia pensar coisas impróprias, daquelas que beijava Charlotte lentamente e colava seu cheiro junto a mim.
Em um momento de desatenção de mamãe, quando esta saiu da sala, a menina de olhos verdes com movimentos sutis entregou-me um convite, explicando que era uma amiga de Charlotte e aquele convite era de seu baile de quinze anos. "Vim pessoalmente lhe trazer o convite com a apreensão de ser interceptado. Assim como várias cartas de vocês".
Meu coração ardeu. Por semanas achei que Charlotte havia me esquecido, já trabalhava com ódio nos estábulos e papai nunca questionava nada. Agora sei o por quê de seu silêncio. Engoliu todas as palavras das cartas que deveriam ser devoradas por mim.
Guardei o remorso como ele guardou as cartas. Minhas preocupações eram ver Charlotte. Finalmente uma desculpa para sentir seu abraço e, ah, como eu queria isso.
Na noite do dia 16 de Abril saí do casarão escondido. E desta vez, não era para jogar ovos podres na vizinha descabida. Era para me encontrar com a descabida Barbier.
Entrei no salão despercebido, sempre perto das paredes ou homens mais agraciados de altura. Finalmente meus olhos trombaram ao que procuravam. Ela estava belíssima. Com um vestido preto, teimo pensar que a cor fora escolha sua, cheio de brilhantes, que davam um quê de mulher com seus últimos traços de menina.
A senhora e o senhor Barbier não saíram de seu pé por um bom tempo. Me restando apenas observações.
Os doze meses afastados lhe caíram bem. Estava com mais curvas, o busto mais desenhado e não era pelo vestido novo. O desejo de estar perto só crescia. Queria ver a nova Charlotte de perto. Entretanto queria ver se ainda era a mesma que eu tanto queria.
No final da noite, quando havia dançado com alguns rapazes, que arrisco em confessar o peito queimado que me provocou. Ela estava linda dançando, sim. Mas nenhum deles era minha pessoa, e quis esganá-los por isso. Charlotte então saiu ao jardim para tomar um ar.
Não resisti e fui ao seu encontro. Quando nossos olhos se encontraram, ela já estava aos meus braços ofertando um abraço caloroso. Um abraço que quase me fez esquecer os meses separados. Hesitei em soltar, o que fez esta ficar desconcertada e até corada. Amei aquilo e quis hesitar mil abraços para tornar a ver aquelas expressões.
Andamos pelo o jardim contando as poucas notícias e não tardou para nossas gargalhadas ecoarem entre as flores. Eu já não conseguia esconder meus sentimentos, aquele riso me prendia e eu queria a prender.
"Nique, estou desconfiando que a saudade te deixou mais bobo. Não para de olhar-me com essa cara desde que travamos conversa", ela disse.
"Eu daria outro nome. É um presente. Não sei se será de seu feitio", disse.
"Ah! Não se preocupe desse modo. Tudo que vem de ti me comove, me faz bem. Mas não vejo embrulho nenhum", ela disse torcendo o nariz recém empinado.
"Está perfeita para abrir o embrulho, agora só resta fechar os olhos", segurei aquele rosto tão delicado feito porcenelana. O peito descompassado. Continuamos nos escarando bem perto. Dada por vencida ela fechou as pálpebras tão delicadas. Ou me dei por vencido, pois fechei-os no mesmo momento. Esse foi o único jogo em que empatamos.
Sem notar, meus lábios já desembrulhavam o dela. Eu faminto, ela com a calma resoluta tentando deter todos meus gestos pavidos. Com a chance de tê-la perto pra sempre, agarrei-me a sua cintura, as mãos subiam pelo seu rosto, com a cortina de seus cabelos louros tão bem costurados. Eu estava ofegante, sentia todos meus átrios e ventrículos trabalhando ao mesmo tempo, se é que isso é possível. Ela, na maior e completa calmaria, com seus olhos no total oposto, dizendo tanta coisa, e eu ouvi com clareza.
"Feliz aniversário. Eu pensei muito neste presente", disse.
O beijo formentou muitas mais cartas. Dessa vez eu mesmo recebia-as para evitar o risco de interceptamento.
Um ano depois, a casa dos Barbie foi tomada por chamas, não lhes restando quase nada. Ofereci hospitalidade o quanto antes. Mais surpreso fiquei quando o senhor Barbier aceitou.
Mamãe e papai ficaram zangados com minha iniciativa. Mas logo dissipou-se com o convívio das novas visitas. Sem perceber, papai estava ensinando o senhor Barbier a comandar equinos, e o senhor Barbier estava ensinando papai a comandar um volante pela primeira vez.
Foram dias maravilhosos e passivos. Ainda mais pela companhia de Charlotte, dessa vez já toda mulher. Os últimos traços de menina lhe tinham abandonado, mas seus jeitos ainda estavam ali. Bolinhas de gude no chão eram tão frequentes que mamãe quase estatelou ao chão em um dia.
Líamos juntos. Ensinava-a o básico da fisiologia humana enquanto ela ensinava-me notas no piano. E os estábulos eram cúmplices de nossos beijos demorados.
Em meados de 1912 estávamos noivos. Demorei a tomar coragem para pedir sua mão. A aliança continha uma pequena pedraria muito semelhante com uma bolinha de gude. Mais uma vez ela ganhou.
E hoje, casei com a mulher que tanto me fazia perder noites de sono. No dia 30 de maio de 1913, mesma data em que nos víamos pela primeira vez. Dia de Joana D'arc. Obrigado por rogar por mim, minha santa.
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Diário de um Soldado
Historical FictionDominique Carpentier é um homem distinto comparado a outros do tão falado século XX; tem sempre seus achismos sobre tudo e não há quem retire isso de sua mente. Nas folhas de um diário, narra o encontro com seu único e imutável amor: Charlotte Barbi...