30 de Maio de 1910

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  Aqui estou, Dominique Carpentier, nos respectivos tão sonhados quinze anos, escrevendo em um diário.
  É uma idade aterrorizante, todavia as pessoas à volta lidam com isso numa completa normalidade. Parte de meus amigos já estão casados ou se casando, com filhos e planejando um futuro promissor de acordo com a sociedade.
  E eu, solteiro, nas dependências dos pais, emaranhado nos estudos com pilhas de livros; além de ajudar na manutenção do estábulo de meu pai.
  Sou visto pelas pessoas da vila como um vagabundo, só por não seguir as mesmas trilhas velhas e desgastadas. Sou teimoso o suficiente para afirmar que faço as coisas ao meu favor, pelas minhas próprias vontades. As consequências é que sou reconhecido como o louco da vila e, as más línguas ainda ousam dizer, que nunca levarei uma mulher ao altar.
  Agir pelos sentimentos e impulsos jovens em pleno século XX mostra-se sempre um campo de batalha. Em meus achismos, todos os séculos são compostos por essa pequena porcentagem de loucos; atrevo-me a afirmar, que são os mais racionais, mas dispenso os elogios à minha própria bolha. É fácil amar aquilo que se pertence.
  Aceitei desde jovem esses meus pensamentos fora de meu tempo; meus pais citam carinhosamente como revolucionários. "Homenzinho muito novo para um mundo tão velho". Aceito mais do que as indagações da vizinha de como estou andando tranquilamente pelas ruas, sendo que meu lugar é fielmente na casa de loucos. Entretanto, não me considero irritado com as ameaças; traumatizei a anciã muito quando novo, jogando ovos pela janela de seu casarão.
  Querer perseguir sonhos já faz parte de meu eu, isso não tem nada de revolução. Alimento meus anseios ardentemente, enquanto muitos do tempo se forçam a guardá-los pra sempre. Quantos poetas, músicos, cientistas e tantos outros intelectuais se foram ao caixão com seus intelectos nunca tocados. Perdidos para sempre. Assombra-me ser mais um perdido, mesmo já sendo considerado um por alguns. Isso tudo muito justifica a escrita num diário. Quero me deixar registrado.
  O estábulo de meu pai sempre tem rendido, porém, a cada ano isso tende a  minguar drasticamente, já que famílias ricas não estão mais almejando por cavalos em suas luxuosas carruagens. Estão substituindo por cavalos elétricos, feitos nas famosas indústrias que ganham vida a cada dia. Para maiores preocupações, o Ford I foi lançado, um modelo de carro destinado à classe média. Mais uma parte de nossa clientela indo embora conforme os anos.
  Sempre amei equinos mais do que qualquer coisa; aprendi desde cedo a domá-los, com o sonho de prosseguir o estábulo Carpentier. Entretanto, desde que essa revolução industrial tomou o pódio de protagonista, minhas esperanças encontraram-se com atestado de óbito. Então, coletei as poucas esperanças vivas, ressuscitei umas a mais e parti para estudos entre minhas pilhas de livros. Foi cansativo, ao mesmo tempo sempre prazeroso, com o objetivo traçado de estar futuramente na Espanha entre as estantes de medicina.
  Quando papai soube desse pormenor, quase ameaçou em abrir minha cabeça para ver se eu havia o cérebro que tanto  estudava nos livros. Ele queria mais do que tudo que sua descendência continuasse entre estábulos e estrume de equinos.
  Para completar, mamãe todos os dias enche minhas paciências para arranjar uma mulher, uma futura esposa. Todo dia, misteriosamente, surge pretendentes na porta de casa. De classes e sobrenomes que carregam um passado e presente cheio de fortunas. Mas do que adianta? Casar por negócios? Papai e mamãe tiveram a sorte de se apaixonar durante esse combinado. Mas eu, sabendo desde cedo a intenção, não me é convincente nenhuma dessas moças. Uma coisa tão sagrada quanto o matrimônio, sendo tratada dessa maneira. É quase que irônico.
  As consequências são amantes escondidas em cortinas que todo o mundo vê. Não quero cortinas, quero janelas límpidas. Uma mulher que seja minha eterna noiva, esposa e amante. Uma mulher que eu ame até seus defeitos todas as manhãs em que acordo. E que não dê risadinhas toscas escancaradas só para conquistas.
  Quando digo isso para amigos, eles respondem que mulher assim não existe, que estou sendo tão mais emocional do que elas.
  Sou obrigado a ter um café da tarde com todas essas damas e educadamente afirmar no mínimo três vezes que não planejo nada no momento. Mamãe fica em tom escarlate toda vez, seja de vergonha ou de raiva, afirmando que essa parte da genética não veio dela. O que era para servir de ameaça, me serve como orgulho; acho um tanto encorajador de comparar-me ao papai. E sua vontade é sempre a mesma: esganar meu pescoço.
  Mas basta de viver de passados. Vamos ao presente. O que acabou de acorrer, o que está me tirando o fôlego. O real motivo de escrever neste diário. Minhas emoções mais viris de adolescência.
  Naturalmente, 30 de maio é o dia de Joana D'arc: grande guerreira da Guerra dos Cem Anos, padroeira da França. O dia que todos os franceses se juntam para celebrar uma Santa Missa em homenagem à santa.
  Como o esperado, fui empurrado pelos meus pais. Nunca suportei participar de Missas em latim. Entendo que seja a língua matriarca de todas as outras, porém muitas pessoas não entendem esta, tiveram privações de estudos, e agora, Jesus Cristo também lhes está sendo arrancado. Coisa muito contraditória, já que o Filho de Deus sempre caminhou com os mais privados.
  Mas nesse dia, em específico, agradeço eternamente ter sido arrastado junto com todas as críticas que carrego e pesam meu andar à Igreja.
  Pisando na Catedral de Borges, a Santa Missa ainda não havia começado, o que me deu o privilégio de invadir a sacristia. Ver os coroinhas sempre dá ares de rejuvenescimento. Me recorda a infância com cheiro de saudade, até mesmo dos puxões de orelha do padre pela desatenção nas Missas.
  Espiei pela imensa porta e lá estava os coroinhas. O futuro analisando meu passado. Notei, o que afirmei desde primeira vista, meu presente eterno: duas meninas. Uma menor, com seus lá oito anos, e uma mais velha, em idade aparente e próxima a minha. Elas estavam aos risos. A mais velha vestindo aos escombros a acompanhante com uma túnica de coroinha. Se o padre visse isso, estariam encrencadas. Eu poderia muito bem encrencá-las. É proibido meninas coroinhas, somente meninos.
  O padre se direcionava diretamente a sacristia. Como um bom maluco treinado, enrolei-o pedindo uma benção, o que rendeu mais uma bronca, dessa vez sem puxões de orelha, com ele dizendo que a Missa já é uma benção. Isso não foi o bastante para tomar o tempo, o que me fez brincar muito com o perigo: questionei se o Missal já estava preparado.
  Como previsto, ele ficou muito irritado, da mesma maneira que com a profunda e lamentável dúvida. O Missal é sempre o tornozelo de Aquiles para preocupar qualquer um a dar uma olhada novamente. Isso foi o bastante para sair aos susurros, não tão positivos, com sua última conferida. Bem longe da sacristia.
  Entrei em disparada. Tomei as duas pelas mãos e corri para uma salinha próxima. Estava toda escura, por isso não via seus rostos claramente. A mais velha me chamou de todos os adjetivos negativos em menos de segundos. Minha reação foi de surpresa e notei algo diferente. Talvez no passar das batidas de meu peito. Talvez pela sua voz suave mesmo profanando tempestades. Nunca, uma sequer moça, me causou ou tratou de certa maneira.
  Ela se esquivou de minhas mãos, que até então não notei que ainda estavam pairadas sobre ela, endireitou-se para a pequena e falou: "vá lá e brilhe, seja a coroinha que você sempre quis ser. Lembre que está servindo a Jesus Eucarístico, a mais a ninguém, e ele não se importa que você seja menina. Nossa Senhora também foi menina, uma grande menina".
  Então a pequena saiu saltitante, com seus cabelos longos escondidos debaixo da túnica e num armador penteado.
  As palavras me fugiram dos lábios. Só restavam feições e talvez um aparente brilho no olhar. Fora a coisa mais linda que já ouvi em toda minha pequena vida. Ficamos por longos minutos silenciosos na salinha, até não haver nenhum ruído e sorrateiramente sairmos.
  Seria um ultraje sermos vistos as escondidas, pensariam que estivemos quebrando regras de conduta sociais, não regras de conduta do Vaticano. O que acho muito mais interessante.
  Finalmente vi seu rosto. Pensei que meu momento de glória tivesse chego, pois seus traços eram mais trabalhados do que todos os retratos de anjos pintados ao teto da Igreja. Meu peito ousou se tornar descompassado ainda mais, mesmo achando impossível. Ela ofereceu um leve tapa ao mesmo tempo que agradeceu, saindo naturalmente de meu caminho. Mas já almejava que ela ficasse pra sempre em minha caminhada.
  Não compreendi o que acontecia dentro de mim; todos os livros de medicina que transcorri, nunca alertaram-me sobre isso.
  Como Dominique que sou, agi pelo impulso e andei a passos largos para não perdê-la de vista. Foi inútil. Ela se engrazou no meio da multidão da Catedral já muito lotada.
  Triste, fui aos bancos onde meus pais estavam, não escondia as feições nada agradáveis; se desfizeram rapidamente ao encontrar meu recente encontro no mesmo banco, levando sussurros intimidadores de seus pais, muito provavelmente pelo seu sumiço. Ela me olhou obliquamente, sorrindo de canto ao meio das supostas broncas.
  A Missa se desenrolou e, que Jesus Cristo me perdoe, mas meu altar de atenção era ela. A cada rito seus gestos eram delicados, profundos de sentimento. Ao mesmo modo que não conseguia interpretar um sequer. No que ela pensava? No que ela ansiava em oração?
  Tudo exalava tanto dela, que era impossível não a indagar com longos olhares.
  Ao final da Missa, tentei o mais rápido possível recompensar as palavras que ainda não havia usado. Saíram com certo esforço e não muito elaboradas.
  Ela interrompeu já muito surpresa, com a justificativa que iria se mudar para a Espanha em um futuro não tão distante, e toda tentativa de querer conhecê-la melhor seria em vão. Então completei: "ótimo, vejo a senhorita por lá. Parece que nós escolhemos os mesmos bancos até mesmo fora da Catedral".
  Bendita seja Joana D'arc, que intercedeu o modo de travar mais conversas com a moça.
  Acho que posso chamá-la de meu primeiro grande amor.
  Seu nome é Charlotte Barbier.

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