4 de Agosto de 1914

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  Meu pesadelo mostra suas últimas faces. França declara guerra à Alemanha.
  Nem foi preciso o pagamento do jornal para a leitura. Todos da vila já comentavam, quase aos gritos, esbravejando o lado francês que muito pouco cheguei a conhecer. Aquelas expressões sedentas de vingança, de defesa à pátria recém ferida.
  Nos bares questionavam o meu lado, ansiando me escutarem aos esbravejos junto.
  "Não sei se era necessário guerra. Isso pra mim era coisa de livro de história", eu dizia entre goles de uma aguardente forte, mas não tanto quando o medo que me percorria o sangue.
  "Largue de ser maricas, Domi. Esses fanáticos mataram nossos civis, mataram gente inocente. Nada mais justo que confrontá-los. De que lado está afinal?", lembro que um homem da mesa disse. Não me recordo de sua face; a aguardente já caçava o medo em mim mais do que suas palavras revoltosas.
  Lembro-me do tempo de colégio. A única vez que me apossei de um lado para defender. Gabriel falava abertamente em sala de aula, ainda com tão pouca idade, seus ideais políticos.
  Os moleques lhe caçoavam. Não tardou para a professora ameaçar com a palmatória.
  "A senhora não deveria! Gabriel só opinou o que tanto estuda. Uma educadora jamais deveria ferir a educação. Todavia, prometo que ele não vai mais oportunar. A palmatória não é necessária!".
  Naquele dia ambos voltamos com as mãos ardentes, de tantas e boas palmadas que levamos. Eu chorando por ter aberto a boca no momento importuno, ter incomodado a professora. Gabriel rindo, dizendo que essas coisas acontecem quando se pensa demais.
  Eu só ia observando-o de relance, pensando o quanto aquele moleque ainda sofreria nas mãos de quem não o desejaria ouvir. 
  Depois disso, evitei muito mais expor opiniões. Evitar palmatórias faz bem para guardar a raiva do educador e guardar minha própria dor.
  Mas e quando os dois querem palmadas? Os dois anseiam por estalos mais do que pelo o giz na lousa?
  Às vezes as relações humanas são cegadas de ego, que torna-se guerra conforme o tempo.
  Foi o que aconteceu nesta tarde. Todos meus amigos concordando com o alistamento, falando que deixariam suas mulheres e todo o resto para lutar pela França.
  Andei minguado, só observando tudo de relance, do mesmo jeito acanhado que observava Gabriel uns anos atrás.
  Entre Lotte e a França, escolho a Lotte. E eu temia que escutassem isso, que saísse as palavras da boca sem meu controle.
  Assumir esse pensamento é declarar aliança à traição. Mas ninguém estava preocupado que deixando nossas mulheres, estávamos traindo-as também.
  Não era só eu que pensava deste modo. Charlotte ficou aos prantos. Ameaçou-me de bater com todos os utensílios da cozinha se eu saísse de casa em troca de uma farda e arma.
  Tentei acalmá-la com a pouca sobriedade que me restava. A aguardente nessas horas já deixava meus pensamentos na lua, ainda mais com uma estrela faiscando de furor em minha frente.
  Mas aquele furor de Charlotte era diferente dos homens. Era ódio transbordado de amor, implorando o "fica". E não aqueles trovejos nos bares de ir embora.
Ela está dormindo escorada ao meu peito, enquanto escrevo essas páginas. Seus cabelos louros às vezes passando no caminho da escrita. Eu quero que eles passem na frente de todo o meu trajeto, para sempre.
 

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