FOCUS
What's going on.Joanna
Começos são difíceis.
Mamãe dançou ao redor de mim, o rádio estava alto e a voz de Nina Simone preenchia o ambiente, cobrindo o som da chuva que caía do lado de fora. Nossas caixas estavam espalhadas pelo chão, ficaríamos na Coreia do Sul por um ano, Seul sendo nossa casa.
Escolhi um apartamento pequeno em um prédio simples, o chão e o teto eram de madeira assim como os móveis, só teríamos o trabalho de o decorar ao nosso gosto. E eu odiava esvaziar caixas, então me preocupei em organizar os objetos maiores, como o espelho retangular e longo que havia acabado de pendurar na parede oposta à mesa de jantar.
Minha mãe sorriu para mim e eu observei seu rosto em formato de coração. Ela era consideravelmente mais baixa que eu, todo seu corpo era macio, aconchegante, eu adorava seus abraços e foi por isso que ela me puxou, rodando comigo enquanto Nina listava todas as coisas que ela não tinha.
- Podemos voltar se você quiser.- cochicha perto do meu ouvido.
Não preciso pensar muito para responder.
- Acho que isso não seria interessante.
Ela ri e afrouxa o abraço para me encarar, seu rosto esticado em uma expressão contemplativa. E então se afasta, se preocupando em esvaziar uma das caixas, murmurando algo parecido com:
- Você é uma coisinha difícil, Jojo.
Eu era.
Meu pai dizia que o meu rosto dava a entender que eu estava sempre prestes a socar alguém. Ele me mandava treinar na frente do espelho o meu sorriso e minhas interações; como agradecer, pedir desculpas, a melhor forma de se anunciar ou se despedir, como manter uma expressão simpática sem parecer uma idiota. Essas pequenas coisas são necessárias, eles vão gostar mais de você assim, eu o ouvia dizer vez ou outra.
E admito que havia um fundo de verdade, porque entrar no mundo do entretenimento requer uma pequena morte em relação a você mesma. Eu odiava esse meu momento em especial, quando tinha de sorrir para as pessoas nas audições e desfiles, e lembrava que havia ensaiado tudo aquilo em casa, em frente ao espelho. Mas acho que é difícil para qualquer um ser genuíno.
Começos são difíceis.
Eu tinha dezessete anos quando desfilei pela primeira vez em uma passarela instável, para um público de vinte pessoas. Não me orgulhava de muita coisa, porém não me arrependia de nada. Há algo diferente em ser mirada, seja por olhos ou câmeras, eu não me imaginava vivendo de outra forma.
- Pode esvaziar as caixas, sem medo. - vejo minha mãe desembrulhar alguns vasos de cerâmica, ela retirava o plástico bolha com uma lentidão que só podia ser forçada.
- Você pode mudar de ideia.
Mesmo sendo sútil, havia um tom de encorajamento.
- Já assinei o contrato.
- Você pode pagar a multa, dinheiro serve 'pra te ajudar a fugir de situações complicadas.
-Papai que te ensinou isso?- a vejo desenhar uma cruz com os dedos da mão e depois os beijar.
- Obrigada por ter morrido.- murmura de olhos fechados e, depois de terminar seu ritual, ela os abre e se vira para mim.- Seu pai não me ensinou nada.
Concordo com a cabeça, infelizmente eu não podia dizer o mesmo.
- Eu vou participar.- volto ao nosso assunto inicial.- Eles não são os únicos ganhando, entende isso?
- Mas eles estão ganhando.
- Seria estranho se eles não ganhassem, Ruth.- ela funga.
- Já disse 'pra você não usar meu nome, Joanna, você é minha filha.- finalmente acaba de desembrulhar o primeiro vaso.- Só estou lembrando do começo, de como era difícil conseguir trabalho para você...
- Eu lembro também.
- Você sabe o porquê de estarem te contratando, não sabe? É o mesmo motivo com um interesse diferente. Existem mulheres como você aqui, mas a diferença é que você é famosa.
- Eu sei.- mamãe suspira de novo.
- Você parece não ligar.
Procuro seus olhos.
Mamãe era crítica, sincera. Sabia que ela havia brigado muito por minha causa e lutava por mim antes mesmo de eu ter nascido.
E haviam os outros, muitos, que lutaram e lutavam por mim sem ao menos me conhecer. Esse era um dos meus motivos para ter atravessado o continente por causa de uma Campanha. Entender o lado de mamãe era fácil pois as percepções que ela tinha, eram as minhas também.
Éramos negras.
A questão era que nós lutávamos lado a lado, mas de formas diferentes. Sabia que às vezes ela se arrependia de ter ajudado meu pai a me incluir naquele mundo, ela começou a odiá-lo quando ele dava a entender que a culpa de não sermos aceitos em determinados ambientes, de não conseguirmos certos contatos, era dela, era dele e era minha.
Uma família de pele negra entrando em um mundo branco, não deve se comportar como negros.
Nem como brancos.
Para ele existia um lugar no meio termo, onde podíamos ficar confortavelmente.
Mamãe o odiava tanto.
Eu não conseguia sentir isso.
- Amanhã ainda é o primeiro dia, não vamos nos precipitar.
- Jojo, só não quero que você perca algo ou precise se adequar a eles.- minha mãe fala e eu olho para o espelho que havia acabado de pendurar, minha expressão séria.
- Eu não vou.
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As cores de uma voz
Fanfiction"As cores de uma voz tem o objetivo de trazer as mais diferentes vozes até vocês. Mostrar que apesar de sermos 7 bilhões habitando o mundo, nenhum de nós é igual, nossas cores são diferentes, nós somos únicos. E, mesmo assim, não estamos sozinhos, t...