O Soar De Uma Harmonia Ígnea - KTH

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Capítulo 1 - Queimando, derme, carne, alma.

A minha atenção estava toda nas pontas dos meus dedos, meu corpo estava sensível, meu faro entorpecido pelo cheiro do café e a cada palavra mais absorta eu permanecia no enredo. Eu sempre me doei inteiramente nos momentos de leitura, sempre foram meus momentos sagrados, tanto quanto os meus ensaios, exatamente por isso, nada depois do tilintar do sino, fez sentido.

Aquela manhã estava estranhamente úmida e meu olfato insistia naquele cheiro formoso que habitou os meus sonhos na noite anterior. Minha mãe havia pela primeira vez desde a separação, dormido fora de casa, com o namorado e por não ter ninguém além de Romeu com quem dialogar sobre o meu estranho sonho, acredito que me mantive ansiosa. Talvez por isso que não tenha me concentrado completamente, talvez por isso que no mesmo instante em que o sino tocou, anunciando mais um cliente, eu tenha tirado minhas mãos da página e dedicado minha atenção ao chocolate quente sobre a mesa. Ou talvez seja tudo um "plano de Deus", como gosta de dizer minha mãe.

Mesmo com tantas pessoas por ali, com tantas vozes murmurando ao redor e tantos cheiros e aromas predominantes, eu consegui captar o cheiro do meu sonho. 

"Eu gostaria de um chá de frutas." ele disse ao lado e eu me prendi no timbre da voz dele.

Sua presença passou por mim e enquanto Gisele se movia a minha frente, eu me perguntei tudo o que me foi possível naqueles minutos. Qual será a textura da pele dele? A temperatura das mãos dele? O gosto da companhia dele?

"Gisele… Quem é o homem do chá?" pedi quando a ouvi ajustar a xícara no balcão.

"Ele é novo aqui, nunca o vi antes." sussurrou. "Por quê?"

"Eu só reconheci o cheiro dele." dei de ombros e me aproximei um pouco mais. "Como ele é?"

"Hum… Cabelo comprido, alto, magro, traços finos e marcantes. Asiático, então os olhos chamam muita atenção." ela contou sorrindo. "Ele está saindo da sessão de poesias, parece inteligente também." limpou a garganta. "Aqui está, senhor."

"Obrigado." ele se sentou perto e o ouvi abrir o livro.

Tratei de desvendar os detalhes da presença dele conforme terminava meu chocolate, o barulho que fazia bebendo o chá, a forma como folheava as páginas provocando o papel, o barulho de suas unhas contra o balcão, foi isso que ele apresentou naquela manhã.

Fechei o meu livro e me direcionei ao interior da livraria para guardá-lo, eu já conhecia o lugar como a palma da minha mão, por isso deixei o meu bastão guia dentro da bolsa e segui confiante até a estante certa. Não soube dizer se ele estava olhando para mim, mas quando retornei o escutei limpar a garganta e ele parecia querer dizer alguma coisa, não soube também se era para Gisele, ou mais alguém no balcão. Ou por algum motivo, para mim. 

Ele suspirou três vezes e não ouvi nenhuma página virando nesse meio tempo. E eu teria aproveitado um pouco mais dessa curiosidade para desvendar esse moço por completo, mas estava atrasada para encontrar Dália.

"Eu vou indo, Gisele, obrigada. Até semana que vem!" eu me despedi, depois de deixar o meu dinheiro no balcão e ela segurou minha mão.

"Traga o Romeu da próxima vez, eu vou deixar o bolo dele pronto." Gisele pediu e eu assenti com meu melhor sorriso, me aprontando para sair.

Respirei fundo para memorizar bem aquele cheiro, segurei firme a minha bolsa e me contentei com o fato de que não iria mais encontrar esse moço. Afinal, as chances realmente eram nulas. Ele não seria a primeira pessoa, nem a última que havia me impressionado e então desaparecido.

As cores de uma vozOnde histórias criam vida. Descubra agora