Capítulo Vinte: Começando a voar

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Eu nunca havia ido em um funeral antes, muito menos feito um discurso fúnebre elogiando uma pessoa que havia partido sem que eu ao menos tivesse tido a chance de pedir perdão.

Ao meu redor olhos vermelhos encaravam o caixão com um misto de perplexidade e decepção, em meu mais profundos pensamentos, eu acreditava que a decepção não era com a partida de Cloe, mas com as conversas inacabadas que todos havíamos deixado com ela.

"Você precisa comer algo", diz Michelle sentando-se ao meu lado.

Torço os dedos em meu colo e pressiono os lábios em um claro sinal de que não irei lhe responder, ouço seu suspiro cansado e logo a mesma se acomoda melhor ao meu lado.

Mantenho meus olhos fixos no caixão e vejo de soslaio quando o padre entra na pequena capela e vai até os pais de Cloe. Hipócritas, todos eles. Arnold se mantém afastado, sentado ao lado de Susan que tem os olhos pregados no que um dia já foi sua irmã, mas agora é só uma triste lembrança.

"Tem certeza de que irá até lá? Os pais dela irão entender se não se sentir bem."

"Ela só tem a mim agora, Ester não vem" , digo. Michelle arqueia suas sobrancelhas em surpresa, mas não questiona a razão da falta de Ester, sendo sincera, nem mesmo eu questionei quando li a mensagem da loira em meu celular, depois de tantos eventos sucessivos, havia ficado claro que tudo que eu sabia sobre ela era o mesmo que nada.

"Você não precisa carregar esse fardo, Darla", diz Sam, segurando minhas mãos nervosas. Respiro fundo e me viro para ela.

"Ela poderia estar viva, mas eu a coloquei contra a parede a acusando igual todos fizeram durante toda a sua vida, e agora, ela está morta, e eu ao menos pude pedir perdão. Falar algumas palavras no seu funeral não é um fardo, é um castigo e também um adeus", digo.

Levanto-me e caminho até o padre que se encontra de costas para mim em alguma conversa séria com os pais de Cloe, a mãe dela me vê primeiro e sorri de lado, algo que beira a gratidão cintila em seus olhos claros. Olhos iguais aos de Cloe.

"Darla", diz cumprimentando-me com um abraço. "Sua mãe me disse que você concordaria em falar, fico feliz, Cloe não tinha muitos amigos, mas de qualquer forma, você era a única que importava para ela."

Afasto-me da mesma e engulo suas palavras sentindo-as cortarem meu coração. Dou um leve sorriso e balanço a cabeça em concordância. Volto meus olhos para o pai de Cloe e nele vejo apenas um mar de tristeza, deveria ser difícil saber que se tivesse agido de forma diferente a filha ainda poderia estar viva.

"Eu estou pronta quando estiverem", digo.

Ao meu lado o padre me olha e sorri de lado levando-me com ele até o pequeno altar.

"Pode ser difícil dizer adeus a quem amamos, mas devemos ver essa caminhada como uma partida mais leve. Ela está nos braços do Criador agora", diz parando e se virando para mim.

"Sim, ela está com Ele, mas não há nada de leve em ser asfixiada até a morte", digo.

O padre arregala seus olhos castanhos para mim e abaixa a cabeça, ele acena em direção aos demais na capela me dando a palavra, engulo em seco e me viro para eles.

Eu reconhecia todos os alunos da escola, e mesmo assim não via nenhum deles ali, nem mesmo Eike havia comparecido, em suas palavras ele preferia se lembrar de Cloe como a garota alegre e irritante que era, não um cadáver frio. Sorriu com escárnio ao me lembrar de sua frase ridícula. Todos eles e suas desculpas eram ridículos.

Olho para Cloe, e me pergunto de quem foi a ideia de deixar que seu caixão fosse aberto revelando as marcas roxas em volta de seu fino pescoço. Ela não merecia isso, ninguém merecia.

"Eu não escrevi nada", digo, chamando a atenção de todos. "Eu não imaginei que viveria um dia como esse", sorriu tristemente. "Mas acho que essa é a vida, não é mesmo? Nós nascemos, crescemos e morremos, mas mesmo sabendo disso nunca nos sentimos preparados, ainda mais quando acontece de uma forma tão bruta e inesperada como agora", engulo em seco e olho para Cloe, seus cabelos vermelhos que sempre haviam brilhado agora eram emaranhados estranhos em volta de seu rosto pálido e duro. "Eu nunca vivi uma vida como queria, eu tinha medo, medo do que diriam e do que pensariam sobre mim, mas Cloe era diferente, ela sabia que tínhamos apenas uma chance de sermos felizes, e ela queria isso, ser feliz. Algumas de suas escolhas não foram as melhores, mas foram decisões suas, sem necessitar de aprovação ou qualquer outra merda", vejo o padre franzir o cenho com o palavreado, e até Michelle se remexe desconfortável no banco, ao fundo da capela vejo meu pai chegando usando seu uniforme de policial, ele se senta no último banco e sorri de lado para mim, respiro fundo e continuo. "Eu queria ter sido igual a Cloe, queria não ter tido medo e confiado mais em mim mesma, queria ter percebido que há tempo para errar e aprender o certo, mas agora, após perdê-la, eu finalmente vejo como as coisas são", eu sinto meus pulmões arderem e as lágrimas descerem por meu rosto, olho para Cloe e um soluço sai por entre meus lábios. "Eu sinto muito por não ter te defendido mais vezes, e por não ter entendido você e suas emoções, mas eu entendo agora, e sendo sincera isso não me traz paz, porque o preço foi mais alto do que eu esperava", limpo minhas lágrimas e respiro fundo, olho para todos e vejo lágrimas nos olhos de Sam e Michelle. "Eu não a merecia, ninguém aqui a merecia, todos os que deixaram de estar aqui hoje sabem disso, e por isso não vieram, o que nos trouxe aqui para dizer adeus a Cloe foi a culpa por tudo que fizemos e deixamos de fazer por ela. Eu sei o quão errada fui, e sei que isso é algo que me atormentará para sempre, eu espero que vocês saibam também."

Desço do pequeno altar e lanço um último olhar a Cloe antes de me encaminhar para fora da capela, o silêncio reina, e sei que as palavras que disse não foram as que os pais da ruiva esperavam, ou até mesmo todos os demais ali presentes, mas eu havia vivido tempo demais mentindo e me escondendo para continuar seguindo tais passos. Cloe havia partido, e eu nunca mais voltaria a vê-la, mas eu precisava e iria ser a pessoa que devia ter sido para salvá-la.

No fim, a culpa não me aprisionava, ela me libertava, e o sentimento de ser livre era tão perigoso quanto a sensação de estar presa em uma gaiola.

Antes que eu venha a pisar no primeiro degrau da capela sinto uma mão apertar meu pulso, me viro e vejo meu pai, seus olhos tristes encaram-me com determinação, ele se aproxima e me abraça, abraço-o de volta e deixo que seu afago amenize meus sentimentos turbulentos.

"Eu sinto muito que esteja passando por isso", diz. Aperto-o mais firme, pois não há palavras que eu possa dizer a ele o quanto eu sinto muito. "Eu sei que você gostaria de ir para casa e descansar, mas você tem que vim comigo agora, querida."

Franzo o cenho e me afasto de papai. "Para onde?",!indago-o.

Papai suspira e segura em meus ombros.

"Eles querem interrogar você Darla, eu pedi que esperassem ao menos até amanhã, mas os pais de Cloe estão muito alterados e nos ameaçaram dizendo que abririam um processo administrativo, não podemos negar o que eles querem."

Respiro fundo e olho para a capela, de longe avisto a mãe de Cloe passando suas finas mãos sob os cabelos da filha morta.

"Ela não pode, essa é a única chance que ela tem de ser uma mãe de verdade", digo desviando meus olhos para papai. "Vamos, alguém matou a minha amiga, e eu devo a ela o resto da vida dessa pessoa atrás das grades."

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