3. Raphael

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Depois de mais uma noite cansativa no hospital municipal, Raphael contava as horas para ir para casa. Independente como sempre foi, ele aprendeu cedo a cuidar de si mesmo e dos outros. No orfanato onde cresceu, enfrentou a difícil situação de não ser adotado e sabendo que precisaria se virar sozinho na vida, tratou de aprender tudo o que poderia aprender. Aos dez anos começou a trabalhar como auxiliar da enfermeira do orfanato, onde aprendeu a amar o ofício, e agora, aos dezoito anos, era técnico em enfermagem no hospital municipal da cidade. Seu plantão ia até às seis da manhã, mas olhando para a programação diária percebeu que já tinha feito quase tudo, e mesmo ainda faltando pouco mais de uma hora e meia para ir embora, faltava apenas a última ronda nos leitos. Então com a força revigorada de quem está prestes a terminar um cansativo dia de serviço, revisou os prontuários, separou os medicamentos respectivos, e seguiu para os leitos. Passando sem pressa em cada leito, ele foi recebido com sorrisos dos pacientes que estavam acordados, e após os procedimentos despediu-se sob os protestos de quem preferia seus cuidados aos de outros enfermeiros.

— ¡Mis pacientes siguen preguntando por ti, Rapha! — disse um enfermeiro, entrando no posto de enfermagem e servindo-se de um copo de café, enquanto ele conferia as fichas dos pacientes — Se quiser pode ficar com todos eles, estou louco para ir pra casa ver o Enrico.

— El amor es realmente hermoso, Ramon — Raphael disse sorrindo —, mas sei que você não está falando sério.

— Realmente é só da boca para fora, amigo — Ramon respondeu, após dar um gole na bebida quente —, mas dá uma pontinha de ciúmes quando eles perguntam onde você está. Você devia dar um curso de como cativar os pacientes.

— Não seja exagerado — ele respondeu após dar uma gargalhada —, eu só faço o meu trabalho. Aliás tenho que terminá-lo, então, até mais!

Raphael deixou a sala com algumas fichas na mão, mas uma em especial chamou sua atenção, era do professor Wilson Thomas, um escritor muito famoso, de quem ele era fã desde criança. Passando em seu armário, Raphael pegou um de seus livros preferidos, de autoria de Thomas, e o levou consigo a fim de pedir um autógrafo do paciente ilustre. Por ser gay, Raphael ainda enfrentou muito preconceito por parte dos outros órfãos, o que o fez crescer solitário e com poucos amigos. Eram os livros de Thomas que lhe faziam companhia e enquanto os outros jovens estavam jogando bola ou brincando de outra coisa, ele estava viajando pelos mundos fantásticos que ele criava.

— Bom dia, professor Thomas — disse ele, adentrando o leito e, colocando a bandeja em cima de uma mesa, dirigiu-se até o paciente —, que bom que está acordado.

— Oh, se não é o Raphael, meu enfermeiro favorito! — disse o professor, sorridente — Vejo que trouxe o livro de que falou!

— Pois é, Professor — disse, estendendo o livro para o homem —, eu acho incrível como o senhor dá profundidade a todos os personagens. Até os vilões conseguem passar para os leitores as motivações deles, de um modo que nos faz ao menos entender o lado deles, a ponto de quase se solidarizar com eles.

— Eu sigo uma frase que não me lembro onde li que diz que todo vilão é herói em sua própria história e, todo herói, é vilão na história de alguém — o professor respondeu, com um tom de sabedoria em sua voz —, assim eu consigo captar todas as nuances e levar para o leitor que nem todo herói é completamente bom e nem todo vilão é completamente mau. Há sempre uma interrogação a se explorar.

— Eu acho brilhante o modo como trabalha esses temas — Raphael disse, com os olhos brilhando por estar tendo aquela conversa com o seu ídolo. Ele tinha o sonho de escrever o seu próprio livro, mas ainda não tinha começado, porém aquelas eram dicas preciosas —, por isso quer um autógrafo e como o senhor terá alta hoje, esta é minha última oportunidade para isso.

— Então vamos a isso — respondeu o professor, abrindo o livro e escrevendo uma dedicatória na primeira página —, apesar de que receber alta não é o mesmo que morrer, então não pode dizer que é a última oportunidade.

O jovem sorriu e, pegando o livro de volta, sentiu-se emocionado ao ler acima do autógrafo as palavras:

"Como um anjo, cuidaste dos feridos, és digno do nome Raphael."

— Obrigado, professor! — disse ele, refreando a emoção — Agora preciso aferir sua pressão e te dar o último comprimido.

— Talvez precisemos chamar o Ramon para aferir a sua pressão também — Wilson disse, rindo ao ver que as mãos dele tremiam —, ainda bem que não terá que aplicar nenhuma injeção, ou eu estaria perdido com essa tremedeira.

— O senhor pode brincar, mas não faz ideia de como ser reconhecido me faz feliz — Raphael disse, rindo enquanto ia até o bebedouro pegar água para ele e bebia um pouco também, tentando se acalmar —, vindo de alguém que eu admiro tanto como o senhor, representa uma alegria indescritível para mim, mas já me contive e vou terminar os cuidados.

— Você é um rapaz incrível, Raphael — o professor falou após tomar o comprimido que ele lhe entregou —, independente de reconhecimento ou não, basta só continuar sendo você mesmo, que o seu sucesso é garantido!

— Obrigado pelas palavras! — ele agradeceu, sorrindo, mas enquanto fixava o aparelho no braço do professor,  escutou uma trombeta, e uma rajada de vento invadiu a sala junto a uma luz ofuscante, que fez todos aparelhos apitarem ao mesmo tempo. Por impulso, ele segurou o braço do paciente firmemente, mas sentiu uma pressão que o fez soltar e o arremessou alguns metros contra a parede, fazendo-o chocar-se violentamente, mas sua preocupação com o enfermo não o deixou perder o foco. Antes de desmaiar, ele pôde ver o momento em que um par de asas brilhantes, envolveram o professor e o fizeram desintegrar completamente, como se uma chama de luz o tivesse consumido, e então não viu mais nada.

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