Capítulo IV - Um ato de heresia

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A história da carteira era mentira. Lawrence só queria uma carona até a delegacia.

O detetive precisava da ajuda da polícia para investigar o caso. Era esse o motivo pelo qual ele e Thomas se encontravam conversando e tomando uma xícara de café, sentados em bancos desconfortáveis e separados apenas por uma bancada de madeira que delimitava a área de trabalho.

Thomas Kitt era policial havia quase trinta anos. O sujeito estava apenas na casa dos sessenta, mas os problemas auditivos característicos da terceira idade apareceram em sua vida enquanto ainda se encontrava na segunda. Isso se devia, em sua maior parte, em decorrência de sua mania de escutar músicas no volume máximo usando fones de ouvido.

Tal ato de imprudência não combinava com sua profissão regrada e disciplinada, mas ele não ligava.

— Você precisa parar de destruir sua audição — alertou o detetive, enquanto despejava o café do bule para uma caneca branca com o nome Law estampado. Era a caneca favorita de Lawrence, que a levava para todo canto, qual quer que fosse o motivo para isso. — Daqui a pouco vou precisar aprender língua de sinais para podermos conversar.

Thomas fez um gesto com a mão como se espantasse uma mosca, na verdade desejando espantar os avisos do detetive. Não conseguia escutar direito suas músicas se não estivessem no volume máximo. Além do mais, em breve estaria aposentado e não precisaria da audição para muita coisa. E não havia como seus ouvidos ficarem piores do que já estavam, não era?

Knopp desistiu de fazer seu colega ouvir a voz da razão. Em vez disso, resolveu se concentrar no motivo que o levara até aquela delegacia — e naquele café delicioso que estava tomando.

— Kitt, preciso de um favor seu.

O policial levantou uma sobrancelha, sem se surpreender. Já esperava por aquilo.

— Mais um caso? — perguntou.

— Você me conhece.

Thomas sorriu.

— Fico feliz em saber que está progredindo em sua carreira. Em que posso ajudá-lo desta vez?

Lawrence deixou de lado sua caneca e se aproximou de seu amigo.

— O senhor já possui certo nome em sua profissão — comentou. Thomas ouvia, com uma ideia do destino daquela conversa. — Preciso que o use para convencer seus colegas de que eu sou um detetive de verdade. Por algum motivo, eles têm tendência a não acreditar em minha palavra.

Thomas o analisou de cima a baixo, do bigode loiro às pantufas.

— Por que será? — murmurou.

Lawrence não ouviu o comentário do homem. Se ouviu, ignorou.

— Para que precisa da nossa ajuda? O senhor costuma se sair muito bem sozinho.

— Não é de meu agrado pedir essas coisas, mas não tenho escolha. Desta vez, o corpo se encontra em posse da equipe médica legal, e preciso de toda a ajuda possível para conseguir identificá-lo antes de dar início às investigações.

Thomas Kitt ponderou sobre o pedido do amigo. Não era nada demais, se pensasse a respeito. Tudo o que Lawrence pedia era para fazer com que confiassem nele. Seria simples, até, com uma frase estaria feito. Entretanto, ele não poderia deixar o detetive sair dali sem uma pequena brincadeira.

— Não sei não, Lawrence. — Ele fingiu pensar no assunto. — Se eu fizer isso por você, o que fará por mim? Tenho lhe ajudado muito esses dias. Lembra-se do caso da floresta? O senhor me deixou falando sozinho, e fiquei muito, muito triste.

Ele comprimiu os lábios para mostrar que estava de fato muito, muito triste. Não que estivesse mesmo.

— Fico lhe devendo algo — prometeu Knopp.

— Que tal fazermos o seguinte? Eu faço o que me pediu se disser que prefere chá a café.

A expressão de Lawrence se fechou diante daquela heresia.

— Vamos lá, Kitt. O assunto é sério.

O policial deu uma risada, mas não recuou.

— Admita. Café tem um gosto estranho, não acha? Chá é muito melhor.

Lawrence se recusava a proferir tais palavras. Elas eram um insulto ao seu paladar! O café era mil vezes melhor que qualquer erva em água quente, não importava o que dissessem. O primeiro o deixava desperto, enquanto o segundo fazia o oposto. E Thomas ainda insistia que ele concordasse com uma besteira daquelas? Não, era contra seus princípios. O ruivo nunca diria aquilo, e foi o que falou ao amigo.

Thomas engasgou. Não imaginou que Lawrence fosse levar aquela provocação tão a sério.

— Foi apenas brincadeira — disse, num gesto tranquilizador. Como oferta de paz, jogou para o estômago todo o líquido preto de sua xícara. E acrescentou: — Tenho conhecidos na área de medicina legal. Entrarei em contato hoje mesmo.

Knopp deu um sorriso de canto de rosto.

— Desista, Thomas — disse, triunfante. — O café sempre vencerá.

Morreu, mas Passa Bem - Série LawOnde histórias criam vida. Descubra agora