Na antiga vida de Lucy, na Inglaterra, o café da manhã era a melhor refeição do dia. Além de ser uma aluna exímio em matemática, habitante veterana da fronteira, sua família era rica e fazia numerosos negócios com banqueiros, fazendeiros e negociantes, os Goldbergs – embora não reconhecidos por isso − fazia também um dos melhores cafés do pais. “Faça uma bela refeição logo de manhã”, Daniel sempre dizia aos filhos. “Nunca se sabe se vai ser a última.”
A bordo da Nazs01, contudo, o café da manhã raramente era comestível e parecia até tremelicar sob as vibrações constantes como se ainda estivesse vivo no prato. Naquela manhã, Luci encontrava-se fitando uma massa pastosa de meleca sem cor acoplada numa cartilagem raspada, a coisa toda colada em feijões pegajosos feito uma espécie de ninho de carne montado por insetos voadores
carnívoros. Ela ainda estava cutucando o grude com muita apatia quando Noa finalmente ergueu as sobrancelhas e fitou a irmã.
− Conseguiu dormir ontem à noite? – ele perguntou.
− Um pouco.
− Você não tá comendo.
− O que, isso aqui? – Lucy mexeu no conteúdo da bandeja de novo e deu de ombros.
– Não tô com fome – disse, e viu Noa meter a última garfada de seu prato na boca com um perturbante prazer. − Acha que a comida vai ser melhor quando chegarmos no campo de concentração?
− Maninho, a gente vai ter sorte se não for parar no menu.
Lucy fitou-o, impassível.
− Não dê ideias pra eles.
− Ei, anime-se. – Noa limpou a boca na manga da roupa e sorriu. – Uma menininha pequena que nem você, vão servir como aperitivo.
Lucy baixou o garfo bufando, para mostrar que entendera a piada. Embora não conseguisse expressar, a brincadeira do irmão – tão obviamente herdada do pai – a
deixava com muita inveja. Noa não era dominado pelo medo. Ele simplesmente
permanecia ileso.
A única coisa que parecia preocupá-lo era a possibilidade de não receber uma segunda porção de qualquer gororoba que os prisioneiro atrás do balcão serviam nas bandejas dos presidiários.
Do nada, passando do ridículo ao sublime, Lucy pegou-se pensando novamente no pai. A última conversa permanecia fresca na memória com pungente vivacidade.
Um pouco antes de falecer na enfermaria, o velho erguera-se, prendera a mão da filha entre as dele e sussurrou:
− Cuide do seu irmão.
Pega de surpresa, Lucy apenas assentira e gaguejara que sim, claro que sim – mas pouco depois percebera que o pai, em seus momentos finais, devia ter se confundido quanto a com qual filho estava conversando.
Não havia motivo para ele pedir que
Lucy tomasse conta de Noa. Era como atribuir a custódia de um urso a um
Coelho.− Que que há com você, afinal? – Noa perguntou, do outro lado da mesa.
− Tô bem.
− Para com isso. Fala logo.
Lucy empurrou a bandeja de lado.
− Não entendo como eles podem servir esse negócio pra gente todo dia, é isso.
− Ei, e por falar nisso... – Como se esperasse pela deixa, Noa passou os olhos pela bandeja da irmã. – Posso comer?
Quando o alarme berrou no fim da refeição, os irmãos levantaram-se e cruzaram o refeitório em meio ao mar de presidiários. Sobre um convés de observação no alto, uma fileira de agentes de correção uniformizados e soldados faziam a vigilância, observando-os passar para a zona comum com negros olhos sem vida.
Lá embaixo, os prisioneiros caminhavam aos bandos, murmurando e rindo entre si, deliberadamente prolongando o processo o máximo possível para explorar qualquer porçãozinha de leniência que os guardas lhes conferiam.
Havia uma proximidade suada e pegajosa em seus corpos sujos, e Lucy pensou novamente no termo “ninho de carne”, e sentiu um pouco de náusea. Todo aquele lugar era um ninho de carne.
Aos poucos, com estudada casualidade, ele e Noa diminuíram o passo, afastando-se cada vez mais da multidão. Embora não dissesse uma palavra sequer, uma sutil mudança já havia trilhado seu caminho sobre a postura de Noa, endireitando sua coluna e ombros, uma serena vigilância assumindo posto em seu
rosto, substituindo o antigo brilho despreocupado.Seus olhos disparavam de um lado a outro, nunca parando por mais de um ou dois instantes.
− Tá pronta? – ele perguntou, quase sem mexer os lábios.
− Claro – disse Lucy fazendo que sim. – E você?
− Pronto. – Nada no rosto de Noa parecia indicar que ele falava qualquer coisa.
– Lembre-se de que quando chegarmos lá embaixo, vai ser apertado. Não importa o que faça, mantenha contato visual. Não desvie o olhar nem por um momento.
− Saquei.
− E se alguma coisa parecer errada, e eu digo qualquer coisa mesmo, a gente vai embora. – Ao dizer isso, Noa fitou de relance o rosto da irmã, talvez captando um pouco da apreensão dela.
– Não acho que o cara vai tentar alguma coisa, mas não sei dizer do oficial da SS. O papai nunca confiou nele.
− Talvez... – começou Lucy, mas se conteve. A garota reparou que estava prestes a desistir daquilo tudo, não por estar nervosa (embora estivesse mesmo), mas porque Noa também parecia estar em dúvida.
− A gente vai conseguir fugir – Noa prosseguiu. – O papai nos ensinou tudo o que a gente precisava saber. A coisa toda não vai levar mais do que um ou dois minutos e logo vamos sair e nos esconder na sala das máquinas. Depois improvisamos – Ele virou o rosto e fitou Lucy com seriedade. – E eu vou primeiro. Entendido?
Lucy fez que sim e sentiu uma mão pesada em seu ombro, impedindo-o de caminhar.
Lucy virou-se e fitou o soldado parado à sua frente.
− Ei! – Era um oficial da SS de olhos pequenos cujo nome a garota não lembrava. Encarando-a por detrás de lentes escuras de seus óculos. Lucy reparou que estava sangrando, o soldado tirou a faca do estômago da garota. sacou sua pistola velozmente e estourou os miolos dela contra a parede metálica, antes que a pobre pudesse sentir a dor da facada, o sangue espirrou no rosto de Noa, o rapaz pulou no soldado tentou lutar, mas levou uma coronhada, ao cair no chão, o soldado deitou sobre ele, e continuo a bater. Com a coronha da pistola até o rosto de Noa virar um amontanhado de carne. Com um sorriso de uma pessoa que acabará de matar um rato, o soldado se levantou e vai embora.
***
FIM
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A Balada dos Quatro Pistoleiros e outros contos
Short Storycompilado de contos, todos uma reflexão sobre a vida, morte, racismo e preconceitos. Dois pistoleiros chegam a perturbadora cidade Old SandCity. A ESPADA JURAMENTADA,Seu mal é lenda. O Senhor dos mortos-vivos, manejador da mística Desespero-Congela...