O Planejamento

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   Meu nome é Victória, tenho 16 anos, estou interessada em fazer um intercambio, procuro uma família em qualquer lugar...

   Isso está péssimo! Nunca vou conseguir uma família com essa sendo minha discrição, não quero fazer intercâmbio, quero ficar aqui no Brasil junto da minha família, com meus amigos, mas como minha mãe sempre diz, é uma oportunidade que não se deve jogar fora. Ahh, que inferno!

   Minhas descrições nunca me representam. Que família aceitaria uma brasileira genérica para morar em sua casa? É tão caro e tão estranho... Não sou uma garota muito sociável, desde pequena sempre fui bem na minha, com meus livros e minhas músicas de 2010, então imagine eu tendo que morar com pessoas estranhas que falam uma língua que nem domino direito tenho? Tendo que interagir e investir em um laço, amizade, que só irá durar o período de um ano.

   Levanto da minha cama deixando meu computador ligado, preciso mudar o plano de tela dele, pode ser que ter o Banguela e o Soluço naquela cena icônica do primeiro filme não soe muito "Adulto". Assim que piso no chão, sinto algo molhado e gosmento sujando minhas meias de gatinho. Slime... Tenho uma irmã, Sara, ela é filha do segundo "casamento" da minha mãe. Tiro minha meia deixando ela sobre a gosma roxa que está no piso de madeira escura.

   Nosso apartamento possui três quartos, um para cada uma de nós, nenhum muito grande, mas é perfeito, tirando pelo fato de só termos um banheiro. Do meu quarto, que é o último do pequeno corredor mal iluminado até a sala, são dez passos.

   Sara está assistindo Netflix, só que nem está olhando para a televisão e sim para seus cachos pretos, seu cabelo é igual o de nossa mãe, enquanto o meu é um liso escorrido como o do meu pai. Não tive a oportunidade de conhecê-lo, já que ele e minha mãe foram uma noite e nada mais, pelo que ela me contou que sou uma mistura perfeita entre os dois. Tenho os seus olhos e os cabelos dele e o resto é um pouco de cada, no tanto perfeito, segundo minha mãe.

   Nossa geladeira estava praticamente vazia, tinha um pudim em potinho, pego ele e uma colher. Saio da nossa pequena cozinha, que não cabe mais de duas pessoas por vez, e me sento ao lado da minha irmãzinha. Tento entender o desenho que ela assiste, mas é tão bobo. Então começo a encarar Sara, sua pele é branca como mármore e é limpa, sem nenhuma pinta. Em compensação, eu já sou uns três tons mais escuros que ela. Uma morena de Curitiba, o branqueamento populacional não deu tão certo assim pelo jeito.

   - Vai ficar me encarado até quando? Não tem nada melhor para fazer?

  - Cala a boca, Sara.

   Ficamos quietas por uns oito minutos. Volto para o meu quarto e pego minhas meias, retorno para a sala, sem fazer barulho e as jogo em minha irmã, que grita, tenho apenas tempo de correr para o meu quarto novamente e trancar a porta.

   - Tória! Sua escrota! Abre essa porta! – Sentia suas mãos batendo contra a madeira, ela com seus 11 anos era, com certeza, mais forte do que eu.

   Comecei a rir baixinho, essa é a troca equivalente maninha, você deixa sua sujeira no meu quarto e eu deixo ela no seu cabelo... Podia ser que também estivesse um pouco rancorosa por Sara levar mais de uma hora e meia no banho um dia sim e um dia não, por causa dos cachos.

   - Eu vou contar tudo para a mamãe quando ela voltar. Sua vaca!

   - Também te amo Sara.

   Sento novamente em frete ao computador, já são quase cinco horas da tarde e preciso publicar meu pedido de uma família até amanhã. Coloco uma música, "Can't stop singing", do Teen Beach Movie. Começo a cantar e não escrevo nada. Ela é claramente uma das minhas músicas favoritas.

   As vezes desconfio que minha irmã de onze anos tenha mais maturidade do que eu, acredito que seja apenas uma fase, também teve uma época que cismei que já era super madura e uma adolescente nata, sei lá... Acho que estava no sexto ou sétimo ano. É uma fase vergonhosa que todos temos que passar.

   Ninguém avisou na minha vez, óbvio que também não avisaria a minha irmã... Imagina! Perder as melhores e mais bizarras "fotos de adolescentes" da Sara. Quando ela estiver com dezesseis anos vai rir pacas com aquelas merdas e ver o quão patética e chata era. Vai ser hilário.

   Já estou a quase duas horas sentada na frente do computador, não consigo escrever nada. NADA. minha mãe chegará as oito e estará esperando para ler minha descrição. Como eu escrevo minhas qualidades? Isso para mim soa como algo tão narcisista.

   Assim que escuto a porta de casa se abrindo Sara já está gritando contando o que fiz. Saio do quarto calma, como se fosse tudo mentira, mas o olhar de reprovação que minha mãe fez simplesmente revelar tudo. Ela trazia uma caixa de pizza no braço. Quando nos sentamos para comer precisei contar que não consegui escrever nada que prestasse. Os olhos de Sara brilharam nesse momento.

   - Eu posso te ajudar? - Seu sorriso de aparelho azul era tão fofo naquele momento que nem parecia que as vezes ela era pior que Judas.

   Antes que pudesse falar qualquer coisa, minha mãe respondeu por mim.

   - Sim.

   Acho que ela percebeu minha cara de desdém, mas não disse nada. A pizza de calabresa estava ótima, assim que terminei Felipe entrou. Ele é um cara legal, trabalhador e até que bem engraçado, mas é principalmente um bom pai. Não é forte e nem muito corajoso, trabalha como porteiro em um prédio comercial no centro. Não somos muito próximos, mesmo assim, gosto dele, e a minha mãe também, é apenas isso que importa.

   Assim que entro no quarto, Sara me empurra e se senta na frente do computador. Sento-me virada de frente para ela. Após dar uma rápida passada de olhos sobre o que escrevi a meliante começa:

   - Isso está uma bosta... Lá vamos nos. - Vejo seus dedos apagando tudo e escrevendo algo novo. – Meu nome é Victória Vieira, sou Brasileira e tenho 16 anos, gosto de ler, comer, pintar e de escrever poesia... Procuro uma família para me acolher e ficar comigo pelo período de um ano... Falo inglês e Dinamarquês intermediário, cozinho e sou simpática... Esse fim é mentira... Enviado.

   - O que? Sara, eu precisava ler primeiro!

   - Tarde de mais, irmã. Boa noite.

   - Sua mau amada do caralho... - Digo baixinho.

   Ela sai do quarto dançando, fico sentada ali parada, por uns vinte segundos até virar o computador para mim. Não consigo nem ler o que ela escreveu, conheço minha irmã, ela não me deixaria sair impune do slime.

   Saio do quarto para começar a escovar os dentes, volto e separo meu uniforme da escola para o outro dia, só que a pasta está com um gosto estranho, como se fosse sabonete. Volto correndo para o banheiro para cuspir tudo na pia, assim que faço isso começo a colocar muita água na boca.

   Vejo Sara encostada na parede, rindo. Quando lanço meu olhar mortal para ela tudo que a pestinha fala é:

   - Toda ação tem uma reação, Newton. Aprenda isso Vivi.

   Você nem sabe quem é o Newton sua pirralha! Se aquela merda de maçã não tivesse caído na cabeça daquele infeliz, meu nono ano teria sido muito mais fácil... Bem que podia ter sido um tijolo ou um coco.

   Não respondo, ela caminha para o quarto dela rindo como uma vilã de filme. Escovo meus dentes de novo, dessa vez com pasta de dente. Volto e me deito na cama, meu celular não para de vibrar.


Pedro S2

- Oi meu amor, como vai à escrita?

- Oi, no fim a Sara que escreveu, não tenho jeito para isso.

- Você acha que vai conseguir uma família?

- Sinceramente eu torço que não. Não quero abandonar você.

- Para! Você tem que ter pensamentos positivos, isso pode te garantir um futuro, eu quero que você vá. Eu te amo, boa noite e até amanhã.

- Boa noite.

   O uniforme da nossa escola é horrível, tudo lá ocorre como sempre, apenas Pedro sabe que estou tentando fazer intercâmbio, não sei como as pessoas reagiriam. Ele diz que elas sentiriam inveja e que era melhor manter isso apenas entre nós por enquanto.

   Mas no fundo nem sei para quem contaria. Sou só eu e o Pedro, praticamente contra o mundo. Nunca tive uma amiga, e os garotos não falam comigo, será que eu sou tão estranha assim? Certo, desde que o Pedro apareceu pode ser que não tenha também me esforçado muito para fazer novas amizades.

   As aulas são tediosas, estamos no meio do ano, se eu fizer intercâmbio iria começar de novo, então nem estou prestado muita atenção, mas nada que vá afetar meus oitos no boletim.

  Meio-dia e meia o sinal toca. Vou buscar Sara no bloco do fundamental junto do meu namorado, já que ele faz o mesmo caminho que nós duas.

   Seguimos pelas ruas esburacadas de sempre, rindo e cantando, todos dizem que nos dois temos muita química, Sara diz que temos muita retardadisse e que se nós morremos atropelados por andar no meio da rua, ela vai ficar com o meu quarto.

   Em geral minha vida é isso, simples e cotidiana, não acho que exista algo que seja mais a minha cara do que isso. Uma vida chata e comum... Nunca entendi porque as pessoas não se conformam com isso? É realmente tão ruim ser igual aos outros? Tipo, temos mesmo que sempre tentar provar que não somos como a maioria? Sério, isso cansa só de pensar.

Como agarrar um monarcaOnde histórias criam vida. Descubra agora