Somewhere in Neverland

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Ponto de Vista: Lucrecia

Em casa as coisas mudaram depois do meu discurso e da revelação da minha relação com meu irmão. Meus pais nem sequer olham na minha cara, me tratam como uma aberração e todo medo que eu sempre senti de ter isso exposto se faz real.

Apesar das brigas nada foi feito para de fato resolver o problema, minha mãe queria nos enviar para uma psicóloga, mas meu pai venceu a briga como sempre. Nos tirou os cartões de crédito e deixou bem claro que se ficasse sabendo de algo desse tipo de novo nós dois seriamos deserdados, típico dele achar que só nos importamos com o dinheiro.

Estamos proibidos de ficar no mesmo cômodo, como se eu fosse fazer isso, confiei no Valério, e o que isso me trouxe? A mesma história se repetiu com Guzmán, Cayetana e Carla, confiar nunca me trouxe bons frutos e por isso nem tento me reaproximar de nenhum deles. Nem mesmo me aproximo de ninguém novo, me conformo com o silêncio e minha própria companhia.

Na primeira semana é fácil, mas agora quase dois meses depois, me pego sentindo falta das piadas do Valério, até das brigas com o Guzmán. Na verdade, sinto falta de interagir com outro ser humano. Para terem uma noção tem dias que passo por inteiro sem falar uma palavra, não sei se reconheceria minha própria voz se precisasse.

Estou cometendo velhos erros e às vezes gostaria que alguém notasse, tenho estado tão sozinha que a comida se tornou de novo uma espécie de companhia. Como quando estou triste, como quando estou entediada, como para não ter que pensar e depois me sinto tão culpada que acabo no vaso sanitário vomitando tudo, ou fazendo exercícios exagerados para acabar com as calorias ingeridas.

Eu fazia isso quando era mais nova e foi Valério quem percebeu tudo, foi ele que me colocou de volta aos trilhos. Beijá-lo pela primeira vez foi resultado de muita carência, mas se tornou mais que isso. Por meses ansiei pelos nossos encontros e toques escondidos, por anos se for honesta. Nunca aceitei esses sentimentos porque sabia que eram errados, porém, eles existiram e eram mais fortes do que todos os outros que eu já tinha sentido. Até hoje mesmo eu querendo acreditar que odeio Valério só consigo entender que no fim mereci o que ele fez comigo. Não soube valorizá-lo e mais do que isso não aprendi a respeitar as outras pessoas a minha volta.

Ok que o Valério também não é um completo inocente nessa história toda, o modo como ele estrategicamente sabotou meu relacionamento com Guzmán ainda me faz ter calafrios, se ele me amasse como sempre disse que amava não teria feito isso. A verdade é que éramos tóxicos um com o outro, como nossos pais tinham sido conosco, mas no fim acho que foi Valério que conseguiu encontrar sua redenção.

Por incrível que pareça ele e Nadia voltaram a ser amigos, suas notas melhoraram e pela primeira vez parece que ele vai realmente se formar. Por outro lado, minhas notas que tinham caído vertiginosamente no ano anterior voltaram a subir nesse novo ano letivo, estudar foi o que me restou para fazer, além de comer e vomitar depois.

Pensei que não tinha mais como piorar, me enganei, percebi isso quando perdi a consciência dentro do banheiro depois de vomitar meu café da manhã inteiro. Acordei na enfermaria da escola com o Samuel do meu lado.

— Você desmaiou no banheiro, Rebeca te achou e pediu minha ajuda. Fui eu quem te trouxe pra cá, como está se sentindo? — Samuel parecia preocupado, mas estava mesmo?

— Bem... — Menti, na verdade ainda estava um pouco tonta. — Não tomei café da manhã hoje, porque acordei atrasada. Deve ter sido isso. – Menti novamente. Não é a primeira que passo por tudo isso, falar a respeito só ajuda se as pessoas realmente quiserem te ajudar e minha família sem dúvida não quer fazer isso. Eles nunca conseguiram me ajudar de verdade e agora não vai ser diferente.

— Você ainda está um pouco pálida, acho melhor ficar aqui mais um pouco, e se não melhorar ir pra casa. — Diz a enfermeira olhando para mim de modo estranho. Será que ela está desconfiando? O que eu menos preciso agora é mais uma discussão com meus pais para eles fingirem que se importam.

— Temos uma prova importante hoje. Posso ir fazer? Juro que se me sentir mal volto pra cá...

— Vou trazer algo para você comer e fazer algumas perguntas. Se depois de terminar de comer você estiver melhor pode ir fazer a prova, tudo bem?

— Tudo bem.

— Samuel será que você pode ir à cafeteria e trazer algo pra ela?

— Claro. Alguma preferência Lu? — Meu apelido na boca dele soa estranho, ele estar falando comigo depois de tudo mais ainda.

—Algo leve está ótimo. — Apressado ele sai da sala e a enfermeira fica me encarando por alguns segundos antes de dizer o que quer.

— Peço desculpas por perguntar isso, não quero me intrometer na sua vida de modo nenhum, mas depois do que houve com a Marina temos um procedimento padrão para esse tipo de atendimento. Preciso lhe perguntar, quando foi sua última menstruação e relação sexual? Alguma chance do seu desmaio ser causado por uma gravidez? — Levo alguns segundos para assimilar a pergunta, engulo seco... Faço as contas e bem a última vez que menstruei foi antes do natal, antes da minha vida tomar esse rumo louco...

— Bem, terminei com Guzmán há meses então não, não fico com ninguém há mais de dois meses e menstruei mês passado. — Minto de novo, mesmo se eu estiver realmente grávida, não contarei a verdade para ela. Tento não me desesperar, mas é uma missão bastante complicada. Não estava preocupada com atraso da minha menstruação e desmaio a bulimia por si só já poderia causar os dois, porém uma gravidez também.

— Então, não há muito com que se preocupar, deve ser provavelmente só uma pressão baixa. Não deixe de se alimentar assim de novo e se voltar a ter um desmaio ou qualquer outro sintoma procure um médico, ok? — Samuel entra no quarto com um croissant e um suco de laranja. Tento não pensar nas calorias, mas é inevitável, o que leva a mais pensamentos problemáticos.

— Pode deixar. — Dou um sorriso amarelo. Samuel me entrega a comida e a encaro por alguns segundos antes de começar a comer.

— Não gostou? Valério disse que você gostava...

— Está ótimo, Samuel, só estou um pouco enjoada, vai passar depois que eu comer. — Fingi que o nome dele não me atingiu, comi tudo mesmo odiando cada uma daquelas calorias e querendo vomitar logo em seguida. Quando terminei a enfermeira acabou me liberando para fazer a prova e Samuel foi comigo.

— Você está realmente bem? — Samuel pergunta enquanto puxa meu braço antes de entrar na sala.

— Algum dia eu já estive? Uma hora passa, Samuel... Não se preocupe.

Entro para fazer a prova tentando não pensar na nova possibilidade e é claro falho miseravelmente. Essa deve ser sem dúvida a pior prova que fiz em anos, fui a primeira sair, deixando a maior parte das questões em branco. No jardim do colégio me sento sozinha e enfim me permito chorar: e se eu estiver mesmo grávida, o que vou fazer?

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