Jessica e Lisa

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Jessica estava sentada num canto da cafeteria tomando seu café expresso enquanto lia um trecho de um romance qualquer, era aficionada por leitura e ultimamente estava dando uma atenção especial a um autor que há muito não lia. Sua rotina andava tão cansativa ultimamente que preferia ler nas folgas, com calma e mais atenção. Lisa chegou na livraria com seu chefe e sua colega de trabalho para uma reunião simples, eles precisavam tomar uma decisão final sobre um assunto que já vinha sendo discutido pelos três e o ambiente era bem melhor que o do escritório. Ao perceber a movimentação ao seu redor, Jessica logo fitou Lisa de cima a baixo, sua calça de linho discreta e salto alto combinavam muito com a mulher de cabelo curto e expressão preocupada no rosto. E mesmo assim, Jessica tentou esconder o olhar por trás das páginas de seu romance; já Lisa era o tipo de mulher que chamava a atenção quando estava nos ambientes e sabia muito bem disto, afinal de contas era um dos tantos resultados dos seus anos de academia.

Jessica não tinha um corpo muito de se chamar a atenção só se fosse pelos cabelos selvagens e livros que sempre carregara, uma vez logo após sair da universidade lhe acontecera um acidente no aeroporto onde derrubara três no chão e um senhor muito simpático lhe ajudara a pegá-los. O senhor para surpresa dela, acabara gostando do gosto de Jessica por livros na hora e a contratara para trabalhar em sua editora. Foi um desses acasos da vida, e agora três anos depois ela ainda continuava sendo apaixonada por ler e não largava as páginas sem passar seu olhar crítico nelas. Mesmo que agora ela fosse mais madura e tinha algum dinheiro para gastar, não eram só livros que acabavam chamando sua atenção. Lisa se perguntava se a timidez daquela mulher era natural de seu estilo de vida: roupas superconfortáveis, cabelos avoados, livros e anotações por todos os lados. Praticamente um clichê. Contudo, ela ficou intrigada e quando sua reunião a terminou decidiu ficar na cafeteria por mais uns minutos. Se despediu dos seus colegas com uma decisão firme de quem como sempre sabe o que quer e não muda muito sua palavra.

Jessica da sua mesa achou melhor ir embora, então pagou a conta e foi ao banheiro. Ao sair da cabine, percebeu que Lisa estava à porta encarando-a e tentou ignorá-la.

- Você é aquela escritora, não é? – procurou saber Lisa.

- Como assim?

- De Solaris.

- Sim, sou. Entre outros livros. – respondeu Jessica querendo disfarçar um pouco seu interesse na mulher.

- Não se preocupe, não sou uma fã louca. Mas é o meu livro favorito. – Confessou Lisa com sinceridade.

- Tudo bem... – disse Jessica terminando de lavar as mãos e sentindo-se um pouco intimidada. – Você quer tomar um café? – convidou.

- Não obrigada. – disse Lisa rispidamente, tirou um cartão da sua bolsa e lhe entregou. - Mas liga, podemos remarcar. – Disse com firmeza antes de sair.

Jessica reparou no design da logo da empresa que a outra trabalhava, achou chic e detalhado. Não sabia o que fazer com o cartão, mas quando deu por si estava sozinha no banheiro. Ao sair de lá percebeu que a escritora também não se encontrava mais ali, então seguiu de volta para a empresa. Ao chegar lá, ela acabou sentando-se na frente do computador e ficou observando o cartão por uns minutos, perdida nos lábios carnudos que chamaram sua atenção na cafeteria. Ela acabou sendo interrompida por Márcio, seu colega de trabalho, que passou ali para conversar um pouco sobre um livro gringo que estava traduzindo. O cartão detalhado acabou se perdendo na mesa cheia de papéis.

Lisa que trabalhava num antigo prédio do centro, agora renovado, não esquecera o encontro com a sua autora preferida na cafeteria. A achara engraçada, simples e algo em seu ser retratava a complexidade que ela sempre lia em suas palavras. Lisa não era do tipo que lia muito, mas as poucas coisas que lia gostava demais. Sua intensidade nata se estendia por todos os campos de sua vida, inclusive no trabalho onde era conhecida por saber sempre bem o que quer. E naquele fim de tarde a decisão tomada por ela e seus colegas tinha surtido efeito, mesmo que uma pessoa tivesse sofrido com isto. Então ela resolveu sair para comemorar em um dos bares que mais gostava na cidade.

Era um pouco tarde da noite quando, antes de sair do escritório, Jessica reencontrou novamente o cartão de Lisa sobre a mesa e o levou para casa. Não sabia bem o motivo, mas passou o caminho de volta inteiro pensando naquela voz, no sotaque sulista e o porquê daquela fã em particular lhe intrigar tanto. Talvez a forma que ela lhe abordou tenha sido diferente, o que quase nunca acontecia com ela. Mas de fato foi de que ela ainda estava pensando em Lisa quando sentou-se no sofá de casa para tomar um gole de vinho no final daquela noite. E acabou ligando para um dos números do cartão, pensou que obviamente ela não atenderia por conta do horário e ficou surpresa a ouvir aquela voz com aquele sotaque mais uma vez. Lisa acabou explicando que poucas pessoas tinham acesso ao cartão em relevo com seu número pessoal incluso.

Ela que estava no bar, decidiu ir até Jessica naquela mesma noite e acabou pedindo o seu endereço. A escritora não teve muito tempo de arrumar o seu apartamento cheio de livros pelo chão, prateleiras e por cima das mesas, mas percebeu que quando Lisa chegou toda a sua bagunça não era um problema. Apesar de já ter conhecido outras fãs, e até mesmo chegar a sair com algumas, Lisa conseguiu desviar a mente de Jessica de todo o mundo exterior. Aquela voz combinava com o seu abraço, e apesar de ser um pouco mais baixa, Jessica conseguia enxergar toda delicadeza de Lisa nos olhares que estavam trocando. As risadas foram se calando, os olhares gritando de desejo e acabaram na cama sem ligar muito para as diferenças. Jessica não era muito de fazer esse tipo de coisa, mas Lisa conseguira transpassar a barreira da timidez dela com toda sua intensidade.

Logo depois elas continuaram abraçadas na cama conversando sobre as mais variadas coisas da vida: infância, relacionamentos passados, até sobre saúde mental uma da outra. Parecia que se conheciam há anos e Lisa se surpreendera em quão simples era ficarem ali num silêncio pleno. Ela sentia que podia ser ela mesma, independente se o mundo lá fora achasse isso bobo ou rápido demais. Conseguiu abaixar a guarda perante a outra e apesar do medo que via nas palavras saindo da boca de Jessica pessoalmente e nua de desculpas externas; percebeu que aos poucos ela estava relaxando.

Na manhã seguinte, a dona do apartamento pensou que a mulher já tinha ido embora ao ver a cama vazia. Mas se surpreendeu ao ver Lisa em uma camisa sua terminando de fazer o café na cozinha para colocar na mesa que preparara.

- Você é rápida ein... – disse reparando na mesa posta.

- Eu sou uma tartaruga na verdade, mas sei o que quero.

Jessica ainda estava sem acreditar na moça-tartaruga se sentando na mesa à sua frente e lhe convidando a tomar um café completamente pronto em sua própria casa. Pensou que talvez se apaixonaria por esta cena de suas séries favoritas, mas logo lembrou-se do perigo sexual por trás daqueles olhos finos. Afinal ela passou a madrugada inteira sentindo toda a ardência que vinha de Lisa e não se arrependera disto nem por um instante. Só queria continuar bebendo daquela mulher como se fosse um livro sem fim, Lisa simplesmente a fascinara àquele ponto e se nunca mais fosse vê-la novamente ainda guardaria o sabor daqueles lábios dentro de si. Envelhecendo sabiamente o sabor como um bom vinho ou páginas de um livro querido que sempre se arriscaria a voltar a ler.

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