Capítulo seis

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Nunca me diverti tanto em um Festival se Literatura!

Depois do Teatro Interativo, foi a vez da tenda de Músicas Originais me surpreender. Além de os responsáveis pela tenda cantarem em uma banda pequena, eles davam espaço para uma discussão sobre música. Gosto pessoal, gênero musical e até instrumento favorito faziam parte do debate.

Tudo muito dinâmico e digno de atenção. Pelo que eu entendi, a banda nem era de Valença, mas sim de uma cidade vizinha e só veio para cá pelo Festival. Ideias de assuntos para novas músicas também renderam longos minutos de conversa animada. Posso dizer que a qualidade daquele grupo fez minha timidez evaporar como água no asfalto quente.

É fato que o ambiente não foi tão lapidado quanto o da tenda do Teatro, mas isso não a tornou menos agradável.

Saindo de lá, segui para uma tenda que estava dando o que falar: a das Frases Vivas. Na verdade, não fui capaz de captar a ideia até ter a coragem de entrar lá. Não podia ser melhor! As frases estavam literalmente vivas!

O ambiente contava com um breu completo, entretanto tudo se revelava aos poucos. Palavras brilhantes flutuavam nos cantos em tons de verde, rosa, laranja e branco. A resposta estava no chão: longos focos cilíndricos de luz negra jogavam partículas de enigma e curiosidade sobre nossos olhares.

De repente, todo aquele amontoado de letras de diversas grafias começou a se mover. Deu algumas voltas por nós até uma música instrumental soar e ele acompanhou em uma dança para lá de sentimental.

Só aí percebo o que está acontecendo: são pessoas! Pessoas com roupas justas até o pescoço, as palavras estão escritas nessa roupa. Então quando dançam, as frases dançam juntas... Vivem juntas! Genial! Incrível!

Ergui a mão instintivamente a fim de tocar a pessoa, mas ela se esquivou com a fluidez de um rio meândrico.

Não tocá-las deve fazer parte do show.

No meio da apresentação, as sombras molham seus dedos em tinteiros reluzentes, lambuzando suas próprias faces com luz líquida.

A apresentação parece magia de tão linda. Uma das sombras se aproximou de mim, passou a tinta em meu rosto e seguiu o caminho dos meus ombros até as palmas de minhas mãos. Não me importei com as luvas ficarem sujas, faz parte da arte.

Aquele carinho gelado me fez cócegas, mas não ousei desviar meus olhos da escuridão.
Ao sentir minhas mãos nas da pessoa, sou puxada para a música, para dançar junto e não hesito.

Todos estão dançando com as sombras.

Custei a acordar daquele sonho luminoso e retornar ao "mundo real". Tinha um sorriso bobo e avoado no rosto, me sentia tão leve que podia ser levada pela menor brisa.
E é dessa forma que paro na tenda de comidas do Festival. Alguma coisa dentro de mim murchou quando percebi que o garoto de ontem não estava lá. Até cheguei a varrer o local com olhos esperançosos, mas nada.

- Vai querer alguma coisa? - uma moça não muito animada dirige-se a mim sem interesse.

- Hã? Ah, um chá gelado.

- Qual sabor?

- Tem de hibisco e lichia?

- Aqui.

- Obrigada. - entrego o dinheiro e continuo perambulando pelas tendas, aproveitando a música ao vivo no centro do Festival.

"Além das linhas" é o meu próximo entretenimento após terminar minha lata de chá. Já tem um grupo lá dentro quando um dos responsáveis sorri e caminha até mim.

- Pronto. Temos um número par agora. Você é a nossa salvação, mocinha. - o andar artístico do homem é cômico de tão bem ensaiado. - Vamos jogar um jogo? Você fará dupla com esse mocinho. Não podem falar, certo? Terão que se encarar e, durante a primeira parte do tempo, os homens serão os espelhos. Estamos entendidos?

Todos concordam com a cabeça e a satisfação do responsável é quase palpável. Analiso minha dupla e é o garoto do chá! Foi inevitável que meus lábios se curvassem em um sorriso de alívio.
Queria poder perguntar seu nome, sua idade e puxar uma daquelas conversas casuais que duram horas e horas, todavia eu só podia mergulhar no mel do seu olhar e fazer movimentos suaves para que ele repetisse.

No início, era nítido o desespero do garoto, um misto de nervosismo, timidez e alguma outra coisa que eu não consegui captar. Com o passar do tempo, ele pareceu se acomodar comigo e nossos corpos quase eram um só de tão sincronizados que estávamos.

Ergui minha mão direita e, lentamente, aproximei-a de seu cabelo liso. Senti sua hesitação quando meus dedos enroscaram-se em seus fios castanhos. Não demorou muito e meus cachos receberam o carinho gentil dele. Era a minha deixa.

Permiti que minha pele entrasse em contato com sua bochecha e seu queixo para depois saltar para sua mão. Caramba! Parecia algodão.
Um algodão quente e receptivo. Garotos não costumam ter as mãos tão macias e convidativas, quase quebrei nosso contato visual.

Entrelacei meus dedos nós dele bem diante de minha face, mas ele também não se distraiu. Não percebemos se a ordem de quem era o espelho já tinha mudado e isso não impediu que ele começasse a se movimentar por conta própria.

Sua mão esquerda subiu até seu próprio colo, deslizou pelo pescoço e foi até as têmporas. Depois jogou os cabelos de um lado para o outro, rindo ao ver meus cachos voarem livres.

Aproprio-me de sua risada silenciosa, que atrai o toque dele para meus lábios. Relutante, faço o mesmo com ele, sentindo a textura suave dos beiços masculinos tão macios quanto o resto de sua pele.

Pergunto-me se alguém já se perdeu naquele toque singelo como pétalas de rosas antes de mim e meu rosto esquenta com esse questionamento. Por que isso me interessaria?

Minha expressão deve ter mudado um pouco, pois vejo preocupação emanando daqueles olhos em ondas. Relaxo os músculos faciais a fim de responder que está tudo bem e ele parece captar a mensagem.

Será que aquela boca já beijou outras? Ou será que é tão virgem como a minha?

Não é como se eu tivesse vergonha disso, mas ninguém nunca quis me beijar e eu tenho quase certeza de que esse não é o problema dele.

- Ei, queridos, o tempo já acabou. - aquele mesmo homem do início nos desperta ao pousar suas mãos em nossos ombros. - Vocês foram ótimos. Diria que são um casal. Já se conhecem de algum outro lugar?

O ataque de timidez parece voltar ao garoto, causando uma forte tremedeira por seus membros e um rubor visível por toda sua face. É como se ele tivesse saído de um transe.

Antes mesmo de responder à pergunta, o menino some através da entrada da tenda e eu tenho o ímpeto de ir atrás dele, mas alguma coisa me diz que não vai dar em nada.

- O que aconteceu com ele?

- Também queria saber.

Suspiro derrotada, sorrio para o homem e retorno para a confusão do Festival.

Por que ele fugiu?
Nem o nome dele eu tenho.
Afinal, por que estou tão focada nisso? Quer dizer, ele me deixaria de lado também se me conhecesse um pouco melhor.

Sinto minhas bochechas esquentarem ao lembrar daquele toque e da forma com que seus olhos cor de mel brilharam contra os meus.
Perdida em pensamentos e sentimentos, esbarro em alguém mais alto do que eu e de ombros largos, caindo de bunda quase instantaneamente.

- Ah, meu Deus. Me desculpe. Você está bem, docinho?

Estrelas sob a janelaOnde histórias criam vida. Descubra agora