Bônus

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A noite estava parcialmente fria e silenciosa, os boatos de uma aluna expulsa da escola animaram as aulas e queríamos saber se Lisa conhecia a menina.

Chegamos uns cinco minutos depois do horário normal, o que não é muito preocupante já que dependemos do ônibus e da força de nossas pernas para chegar ao prédio de Lisa.

- Cinderela! Suas tranças!

- Você nunca vai aprender a diferenciar os contos de fadas, não é, Diego? - ironizo de braços cruzados, revirando os olhos com uma risada baixa.

- Pensei que já estaria cansada de tentar corrigi-lo. - brinca Caio com as mãos no bolso.

- Ela sempre atende, então está certo para mim. Cinderela! - silêncio... Esperamos uns dois minutos e nada. - Cinderela? Lisa?

- Estranho, ela nunca demorou para nos atender. - retruca Caio. - Será que não está em casa?

- Ela deixaria uma carta como o dia da festa, não acham? - pode ser baboseira de intuição, mas algo dentro de mim avisa que isso não está comum.

- Bom, talvez ela tenha cansado de Cinderela, tenha virado Bela Adormecida e esteja em sono profundo. Um dia dia cansativo, será?
 
- Então não seria melhor irmos embora? - sugere o garoto de cabelos curtos já de costas.

- Não. Não vamos embora. Temos que ver o que está acontecendo.

- Bia, vai ser um pouco estranho tocarmos a campainha e perguntarmos como está a Lisa. Quer dizer, é um segredo, não é?

- Então eu mesma vou lá. - encaro as grades que se seguem depois da baixa mureta de concreto, devem ter uns três metros. Se eu me esticar bem, consigo abrir a janela de Lisa ainda apoiada na grade, mas é tão... alto...

- O quê? Como assim?

- Estejam com os celulares em mãos. - já estou com os pés na mureta quando Caio agarra o meu braço e me lança um olhar preocupado.

- Está maluca? Isso é invasão de propriedade privada e você pode se machucar feio se cair de lá.

- Tem alguma coisa errada e eu vou lá verificar. Estejam com os celulares em mãos. 

Sem mais uma palavra, subi. Todos os meus ensinamentos de parkour se fizeram presentes por puro instinto, consigo sentir a adrenalina pulsando e sufocando meu medo de altura.
Não, dessa vez, eu não tenho medo de altura. Eu tenho medo de perder Lisa. Três, quatro, cinco metros. Não me importa. Eu vou pular essa janela.

O metal frio ameaça fazer meu corpo escorregar até o chão e isso só me faz ter mais força em meus músculos. Está tão perto... Uma gota de suor escorre da minha testa, passa por minha bochecha e some no meu queixo.

Chego ao topo e me estico ao máximo. Encosto no vidro da janela e começo a empurrar para o lado com a ponta dos dedos.
Consigo abrir alguns centímetros e minha mão passa por ali, tornando mais fácil a minha loucura de momento.

Sem pensar muito, pulo para dentro do apartamento e a cena mais aterrorizante que já vi em minha vida se desenrola à minha frente: uma menina caída, com o rosto no chão e a luz da lua reflete em um líquido viscoso e escuro que sai de um de seus braços. Sangue... E a poça está relativamente grande, parece estar crescendo... 

Levo a mão à boca em choque. Oh, meu Deus. Oh, meu Deus.
Oh! Meu! Deus!

- Chamem uma ambulância agora! - grito em puro desespero. Não, eu não posso ficar parada esperando. Saio pela porta de seu quarto, procurando o quarto dos adultos e acho na minha segunda tentativa. Puxo os lençóis e segundos. - Acordem! Acordem! Por favor!

- O quê? O que é isso? Quem é você?

- Não dá tempo de explicar! A filha de vocês está em perigo! Por favor, me ajudem! - eles não perguntam mais nada, levantam e cruzam o apartamento mais rápido do que meus olhos são capazes de acompanhar. Sinto lágrimas borrarem a noite quando retorno ao quarto, porém a sirene da ambulância toca ao longe e me tranquiliza parcialmente. - Os meninos chamaram ajuda. Eles chamaram ajuda. - balbucio mais para mim do que para os pais dela.

Minhas pernas cedem ao medo e ao terror. Lisa não pode morrer.

Todos nós estávamos no hospital e de mãos dadas na recepção. O lugar estava vazio a não ser pelo recepcionista que estava mais dormindo do que acordado. Avisei à minha irmã do ocorrido e ele ficou de vir aqui. Nunca estive tão nervosa na minha vida inteira, porém ninguém vinha com notícias e eu podia ver que Caio estava com um olhar mais aterrorizado por seu medo.

- Senhores, precisamos de um doador O negativo. O banco está em falta.

- Eu sou B positivo. - responde o homem loiro de coque samurai.

- Eu sou A positivo. - murmura seu acompanhante.

- Eu também sou A positivo. - concordo com o segundo.

- AB negativo. - Diego fala de forma tão vaga que mal o reconheço. Nada mais justo, é a menina que ele gosta naquela maca.

- Eu... Eu sou O negativo. - a voz é trêmula, mas carrega uma firmeza decidida. É Caio...

- Já tem dezesseis anos?

- Não, tenho quinze.

- Então não podemos permitir.

- Por favor. - meu amigo segura o jaleco do enfermeiro com força. A dúvida entre correr dali e ser consumido pelo medo ou salvar Lisa - Vocês não têm outra escolha e aquela menina precisa disso.

- Veremos com nosso superior...

- Não. Levem-me para a sala de doação. Qualquer minuto conta. - é quase palpável a luta interna do garoto, ele está tremendo de pavor e tenho a leve impressão de que sua pálpebra direita está tremulando freneticamente. Já é uma dificuldade enorme para ele ir a um hospital, doar sangue é como um pesadelo acordado.

- Abriremos essa exceção. Siga-nos. - um dos pais de Lisa abraça Caio num impulso.

- Obrigado, garoto. Muito obrigado. 

E, assim, meu amigo sumiu entre os corredores limpos e brilhantes atrás dos homens de jaleco branco.

Minutos depois disso, minha irmã chega e me envolve em seus braços seguros. 
Caramba! Como eu precisava disso! Como eu precisava dela ali, ao meu lado.
Com meu rosto encharcado e pensamentos agitados, adormeci recostada ao colo dela, torcendo para que tudo não passasse de um devaneio meu.

Mas era real.

Estrelas sob a janelaOnde histórias criam vida. Descubra agora