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A BRISA FLUÍDA tocava a janela, leve demais para dissolver seu vidro, mas insistente como as gotas da chuva cintilando através da silhueta dos galhos finos. Seria assustador, se eu tivesse que me encolher sozinho abaixo das cobertas. Eu via a luz de um raio se dissipar, quando senti o colchão receber seu corpo, minha coberta foi levantada e como um molde perfeito, ele contornou minhas curvas.
— Steve… — Minha voz falhava num sorriso manso.
— Não vai se livrar tão fácil de mim. — Seus lábios estavam na base da minha orelha, onde ele deixou um beijo.
— Não sei se quero… — Me virei para encontrar a paz em seus olhos. Ele sorriu ao ver a felicidade dentro dos meus, e se aproximou lentamente.
— Danny… Danny… — Aquele Steve sumiu do alcance dos meus olhos, minha visão estava turva e não havia mais chuva brilhando pelo vidro.
— S-Steve? — Eu ainda o procurava, era inevitável o terror de perdê-lo para aqueles segundos tão confusos. — STEVE?!
Finalmente pude vê-lo com perfeição, era manhã e eu havia perdido a hora. Ele estava parado com calça cargo preta e camisa azul-marinho, os primeiros botões abertos expondo o peitoral salpicado de suor. Uma linda visão, senão fosse perturbador encontrá-lo no cenário do meu quarto, quando eu devia estar sozinho em casa tendo sonhos tão íntimos quanto o sentimento de culpa ao acordar, e a vontade súbita e sem explicações de dormir para voltar para seus braços quentes e sentir enfim, seu beijo.
— Danny… Danny! Está tudo bem? — Com um pêndulo entre as sobrancelhas, ele se aproximou.
— O quê. Você. Está. Fazendo. Aqui?!! — Perguntei tão confuso, mas certo de que ele estava errado!
— Eu?! — Ofendido, ele tocou o peito afastando acidentalmente as pontas abertas de sua gola. — Eu só entrei aqui porque você me chamou!
— Eu te chamei?!! EU TAVA DORMINDO, STEVE!
Mas pronunciar seu nome nos alto-falantes de minha voz rouca e lenta, me trouxe a lembrança de que eu estava realmente chamando por ele, pedindo por ele.
O esclarecimento me despiu. E McGarrett continuava ali, tão parado e compenetrado em desvendar minha expressão e minha voz.
Nocauteando de vez minha tentativa de briga, seu celular chamou e ele o atendeu bufando. Num segundo de auto observação íntima, percebi que havia um grande problema entre minhas pernas. Agora eu realmente tinha um impasse, de natureza desconcertante.
Mas é claro que a ciência tinha uma bela explicação razoável pra esse desconforto.
— Temos que ir. — Ele me encarou em julgamento, enquanto minha resposta imediata era apenas me cobrir o máximo possível sob a coberta.
— Okay… — Concordei iludido de que aquela era sua deixa para desaparecer com seu peitoral nu.
— Vista uma calça, não quero que te vejam assim. — Um sorriso involuntário se fez em meu rosto, mas eu o camuflei com meu tom implicante.
— É claro que… já estou de calças! — Afirmei manco, me satisfazendo por seus passos que se aproximavam da porta.
Mas Steve meteu seu olhar incisivo nos meus.
— Nós dois sabemos que não está. — Ele passou pela porta, me desmontei em alívio. Me livrando das cobertas, o medo. Se Steve deu de cara com o que vejo agora… Eu estava perdido! — Ah… e sim, você estava chamando meu nome.
— Steve… — Gemi seu nome num lamento de pânico, e voltei a me esconder.
Ele havia voltado pra deixar claro que meu álibi de estar dormindo era fraco? Pra conferir outra vez o volume em minha box? Ou apenas pra me deixar desconcertado e confuso como agora?
Seja lá o que for, ele havia conseguido.

O forro fazia a mesa parecer um pote de geleia gigante, havia um ukelelê soando nas caixas amplificadas ao fundo, aquilo era reconfortante, mas eu estava decidido a nunca deixar Steve saber disso.
— Me corrija se eu estiver errado… mas nós não tínhamos um caso?!
— Nós temos um caso.
Não havia música no mundo capaz de me deixar calmo ao lado do jeito cínico de Steve não responder minhas perguntas e ainda ficar assim, sendo… lindo daquele jeito!
— Então o que estamos fazendo aqui?!
— Queria mesmo tomar café numa cena de crime?
Revirei os olhos e lubrifiquei os lábios, buscando um pouco de paciência.
— Não! Mas quem sabe… em casa???
— Está sendo antissocial, Danny. — Seu lábio torto e mordido deixava seu sorriso incrível, me senti nu e previsível.
— Não, não estou…
— Qual é, Danny? Conheço você melhor que qualquer um!
— Okay, Steve! Vamos falar sobre eu estar sendo antissocial. Sabe o que pessoas antissociais gostam?
— Sair para tomar café da manhã comigo?!
Ele arrancou de mim uma gargalhada e foi minha vez de ver seus olhinhos se espremendo daquele modo doce.
— Privacidade.
— Privacidade?
— É isso aí. Acordar sozinho quando se mora sozinho. Sem ter a porta arrombada enquanto estou dormindo!
— Arrombada?! Você sabe que tenho a chave.
— Chave de emergência, que você… se apossou!
— Okay, Danny. Quer saber? Tá aqui a sua chave de emergência! Fica com ela. Você… sabe quantas pessoas, por dia, caem no chuveiro?
— O quê?! Quantas… pessoas caem no chuveiro, Steve?
— Ah… — Ele piscou deliberadamente. — M-Muitas pessoas… e, em muitos casos, elas têm uma fratura terrível na perna e passam 48horas rezando pra alguém arrombar a porta delas, sabia disso, Danny?!
— Ah meu Deus! Você não existe! O que quer que eu diga? Obrigado, Steve, por fazer a gentileza de invadir meu quarto enquanto eu dormia?!
— Então você estava de fato… dormindo?
— Uh… Essa… claramente não é a questão aqui!
— Ah… mas olha só, querido, você não tem com o que se preocupar! É claro que sua namorada, Amber, tem uma chave reserva da sua casa!
— Hey! — Ergui meus braços. — Melissa. O nome dela é Melissa. E o que isso tem haver com Melissa?!
— Bom… se for pra alguém encontrar você… nu e chorando de dor no box do banheiro… vai preferir que seja sua namorada, é claro!
— Entendi… agora a gente vai mudar de assunto, para algo que não me envolva pelado ou chorando de dor num… Peraí, Steven! — Uma luz se acendeu em minha mente. — Você fala de mim, mas também mora sozinho e você nem tem chave de emergência da sua casa!
— Na verdade… — Ele coçou a nuca. — A Catherine fica mais em casa que na casa dela agora…
— Oh… — Senti um soco no estômago, que me fez abaixar minha cabeça. — É claro… como sou idiota por não pensar nisso…
— Não… você não é… quer dizer, ela vive em missão… não fica tanto assim e… eu tenho sim uma chave de emergência, ou melhor, tive, mas te dei quando você dormiu comigo… quer dizer, em casa naquela época… que tava sem…
— Sem apartamento… eu me lembro… Quer dizer que a Catherine saiu em missão outra vez?
— Uh…
— Você não tá negando… não tá negando! — Balancei minha cabeça negativamente, diante de minha própria capacidade em ser idiota.
— É… foi… hoje… bem cedo…
— Ahhh… isso explica muita coisa!
— Não, Danny! Não é isso que…
— Que eu tô pensando? Não tô pensando nada… — Suspirei.
— Você… ainda tem?
— O quê, Steve?
— A chave…
— Uh… Não. Eu… com certeza… perdi… talvez na lavanderia…

Estacionamos na entrada da sede, Steve com olhos frustrados, eu com olhos frustrados.
— Essa é a cena do crime? — Apontei para o palácio, quebrando o silêncio.
— Não… — Ele bufou. — O corpo de um político foi encontrado na orla do outro lado da ilha. Chin e Kono estavam mais próximos.
Bati a porta do carro e senti seu olhar me avaliar do lado de fora, sei que ele procurava respostas ou piadas sarcásticas, mas não. Eu estava chateado por ser sempre sua segunda opção, e ainda odiava sentir aquilo… ciúmes de alguém que ocupava outro posto em sua vida, eu não era seu… namorado. Mas ele continuava me encarando, tentando ler meus pensamentos. Contanto que ele não conseguisse isso, ou decifrar meus sonhos…
— Oi… Vocês são da Five-0, não são? Eu preciso de ajuda… por favor, eu imploro?
A mulher que nos interceptava parecia ter minha idade, cabelos castanhos em uma trança desmantelada, e olhos azuis quase negros. As olheiras em seu rosto eram tão evidentes quanto seu desespero.
Steve procurou minha reação, e me encontrou tão surpreso quanto ele.
— Comandante Steve McGarrett, meu parceiro Danny Williams.

Steve se acomodava em sua poltrona, nossa visitante logo a sua frente, e eu me jogava desanimado naquele sofá de couro que tinha o cheiro dele.
— Meu nome é Anastácia Trevellian. Eu sei que isso vai soar estranho… mas aconteceu algo com meu irmão! Olha… Wallace… sempre foi impulsivo e… ele… tomou decisões erradas, é verdade… mas no fundo… ele é… meu irmão que… brincava de tomar chá comigo e minhas bonecas quando nossa mãe… nos deixou… Eu vi que resolveram aquele caso sobre o cara do aplicativo de relacionamentos e salvaram a vida dele… eu preciso de vocês!
— Senhora Trevellian, entendo sua aflição. Me diz uma coisa, o seu irmão está desaparecido…? — Questionou Steve.
— Não. Ele está… em coma. Mas isso não foi um acidente! Precisam acreditar em mim… alguém tentou matar o meu irmão! — Ela abaixou o olhar, certa de que íamos lhe dar um não. E Steve realmente estava prestes a fazer isso.
— O único problema aqui é que não assumimos casos por decisão de próprio cunho, mas o que houve com seu irmão, podemos procurar alguém para…
— O que meu… parceiro, Steve, quer dizer… Anastácia, é que vamos investigar o caso do seu irmão, pessoalmente.
— Detetive Williams… muito, mas muito obrigada pela atenção de vocês! — Ela se aproximou e apertou minhas mãos com força enquanto chorava desesperadamente. Por trás de seu olhar esperançoso, estava Steve, mudo, com os olhos apertados, fixos e interrogativos fitando os meus.
— Por favor, não precisa agradecer. Só… me dê um minuto a sós com meu parceiro, eu já volto e você vai contar pra gente em detalhes o que houve.
— Claro… claro! Muito obrigada!
Passamos pela porta de vidro, e Steve segurou meu braço num toque que me arrepiava facilmente. Atrás de meu corpo, ele me incitou a seguir pelo corredor, onde nos encaramos próximos, enquanto ele elaborava.
— Uh… então… o quê você tá fazendo?
— Ajudando alguém que precisa de ajuda. Foi pra isso que virei detetive.
Ele assentiu exageradamente.
— Certo… o que eu tô tentando dizer é que você sabe que os casos precisam do aval do governador.
— E o que eu tô tentando dizer é que você pode ficar com o caso do político morto, liga pra Tani, o Junior, vai ser algo grande pra eles! Mas eu… olha, se alguém tentou acabar com o irmão dessa mulher, eu preciso ajudar.
Steve ergueu a mão, como se instintivamente quisesse tocar meu rosto, me fazendo pensar que havia algo de errado comigo, talvez um cisco. Mas ele recuou rapidamente, e me observou com um olhar calmo e profundo. Então, alcançou o celular e discou para alguém, ainda com os olhos dentro dos meus, como se pudesse me ler, me domar, me compreender.
— Oi?! Junior, você e Tani acabaram de ganhar um caso. Vou enviar o endereço pra você em um minuto, certo? Okay, Danny e eu temos outro caso pra resolver. — Ele guardou o celular e me olhou franco.
— Você e eu…?
— Somos parceiros, Danny… isso sim quer dizer muita coisa.

— Meu irmão me ligou hoje muito cedo, e eu não falo com ele há… muito tempo, eu ouvi a respiração dele, mas ele não respondeu. Eu sabia que tinha algo errado , fui direto pra casa dele… a porta estava destrancada, ele… estava na sala com a camisa aberta, ele queria me dizer alguma coisa, mas não se aguentava em pé, um minuto depois ele cambaleou e caiu, eu chamei a emergência imediatamente, eles o levaram, não souberam identificar a causa até agora, mas ele continua inconsciente e não reage com as medicações…
— Sinto muito por isso, Anastácia.
— Sentimos muito. — Disse Steve, com um olhar caloroso. Eu adorava vê-lo assim, humano, se importando com as pessoas. Steve tem aquela casca grossa, quase metálica, um verdadeiro super herói, e isso só torna mais irresistível o processo de conhecer seu âmago, tão bem guardado.
— Obrigada Comandante, Detetive.
— Faz ideia de quem pode querer prejudicar ou ferir seu irmão?
— Wallace se envolveu com uns garotos ruins no passado, eles… planejaram assaltos e de algum modo, convenceram Wallace a participar. Ele… sabia que podia contar comigo, mas não sei… depois da mamãe… a vida foi mais cruel com ele, e ele… se perdeu… mas pagou por isso…
Sinalizei para Steve, que assentiu com a cabeça, pedi licença e sai para puxar a ficha das escolhas ruins daquele rapaz.

— Wallace Trevellian… pegou oito anos, mas teve a pena reduzida por bom comportamento, saiu há algumas semanas. E olha só… ele cumpriu mais da metade da pena com o mesmo colega de quarto, Travis Japua.
— Vamos bater um papinho com o Travis então.
O motor roncou.
— Steve? Obrigado…
— Preciso checar sua temperatura? Tá mesmo me agradecendo?!
— Idiota.
— Por nada, Danny…

Estávamos na sala de interrogatório da penitenciária local, esperando que trouxessem Travis para nós, Steve tremia o joelho esquerdo na cadeira.
— O que faz alguém se meter nisso? — Questionei.
— Eu… não sei, mas acho que… ser abandonado pela mãe, não ajudou…
— É… quer dizer, a irmã conseguiu ficar firme, mas ele… se ele não sobreviver, ela vai se culpar pro resto da vida… por que não ficou de olho nele? Por que não esteve mais presente? Por que não o salvou desse mundo…
A porta se abriu escandalosamente, e Travis, de peito empinado entrou.
— Wallace Trevellian. — Disse, esperando sua reação. E ela veio rapidamente.
— Sério? É sobre o garoto? Em que confusão ele se meteu dessa vez?
— Sabemos que você dividiu cela com Wallace por anos, precisamos de um nome! — Exigiu Steve.
— Confesso que senti falta do garoto, mas por que não perguntam isso pra ele?
— Porque não vai rolar. Você pode responder a droga da pergunta dele?! — Reduzi meu tom de voz. — Por favor…

— Devo dizer que você foi bem… convincente… — Steve tirava os olhos da pista, para me analisar.
— Eu só fui… cordial. Ah, o que eu tô fazendo? Você não sabe o que é isso.
Tentei provocá-lo, mas haviam dias, como hoje, em que ele me olhava de volta com um sorriso torto, indisposto a bater boca por motivos fúteis, na verdade, ele havia sim me lido, página por página, e sabia que algo me incomodava. Essa é uma das melhores partes de estar com ele, não precisar dizer muito, para que ele me entenda um pouco. Ele queria me ver assim, provocando-o, mesmo que para me ignorar, e ele conseguiu.
Seu telefone tocou, interrompendo meus pensamentos, eu estava certo de que a única função do seu telefone era me interromper.
— Duke? Na verdade… estamos a duas quadras de lá… okay, obrigado!
— Não estamos a duas quadras da casa de Wallace!
— Não. Mas olha só, pedi pra Duke a localização dos roubos recentes em que Wallace poderia estar envolvido, e a busca deu resultado.
— Há duas quadras daqui?
— É isso aí. Loja de conveniências, que tal uma parada?
— Outro encontro?
Ele sorriu, abertamente dessa vez, meu coração saltou.
— Por que não?
— Ah, okay…
— O que foi?!
— Nada.
— Danny!
— Nada mesmo…
— Daniel!
— Okay, eu sei que você não foi literal, mas só estou dizendo que você fez um convite outro dia pra um jantar que nunca aconteceu…
— Porque… eu não queria apressar você!
— Me apressar?! Eu estava esperando você tocar no assunto!
— O quê? Eu que estava esperando você!
— Não seja bobo, Steven… Você fez o convite!
— Exatamente. Eu fiz o convite… — Ele balbuciou. — Chegamos…
— É…
Descemos do carro, e eu já praguejava mentalmente sobre porque fui estúpido o suficiente de tocar naquele assunto, quando Steve me segurou pelo braço e senti minhas costas colidirem contra a lateral do Camaro.
— Vamos jantar hoje.
Ele estava decidido e eu tinha dificuldades de controlar meus pensamentos.
Apenas sorri, assim ele sabia que eu estava de acordo, e assim ele não saberia o quão vulnerável e trêmulo eu estava internamente.

— Boa tarde! Five-0!
— Boa tarde! Jacob Clark, sou o proprietário. Posso ajudar você, policiais?
O homem aparentava ter lá seus cinquenta e seis anos, estava sentado atrás do balcão de revistas, lendo uma daquelas com a tabela periódica ao fundo, algo que eu precisaria estar muito entediado para ler.
— Boa tarde, senhor Clark. Pode sim. O senhor reconhece esse garoto?
Steve apontou para a foto de Wallace, que Jacob encarou concentrado.
— Sinto muito, policiais… nunca vi o garoto antes. Tudo bem com ele?
— Eh… não muito… — Pontuou Steve.
— Na verdade, o nome dele é Wallace, e ele está entre a vida e a morte.
Ouvi um suspiro sôfrego vindo do ponta dos freezers, quando uma garota de cabelos e olhos castanhos e avental, passou apressada com alguns produtos em mãos.
— Não… eu vejo muitos rostos, mas sempre me lembro deles. Nunca vi esse garoto antes… Sinto muito, policiais.
— E um tal de D. J.? Já ouviu falar de alguém com esse apelido por aqui? — Perguntava Steve.
Havia algo de errado com aquela garota, meu alerta de detetive me dizia isso. Tentei sinalizar para Steve, mas lá estava ele pedindo para o senhor Jacob aguardar, enquanto ele atendia o telefone, então me distanciei sozinho do caixa, a passos largos, torcendo para o proprietário acreditar que eu apenas buscava uma lata de refrigerantes.
Mas a garota não estava mais lá.
— Danny. Precisamos ir. — Era aquele seu tom sério.
— Quem era?
— Anastácia. Os sinais vitais de Wallace estão cada vez piores…

Chegamos a casa de Wallace que, como Anastácia nos descreveu, a porta estava destrancada. Num giro rápido entramos, Steve sempre a minha frente, com seu espírito protetor feito guia.
O sofá pequeno estava em diagonal, havia marcas no tapete a frente, e o enfeite da mesinha de centro estava em pedaços. Deduzi automaticamente qual era o espaço limite do corpo de Wallace desmaiado naquele chão horas mais cedo.
A casa não era grande. De modo que Steve se encaminhou a cozinha e ao quarto, e além da sala, só me restava o banheiro, de porta fechada, me aproximei. Ouvi o som de água corrente, mas Steve ainda verificava seus cômodos quando abri a porta, a fumaça fazia o lugar parecer uma boate, entretanto a pista estava vazia. Por trás da névoa, a água tilintava em encontro com o chão.
Vesti minhas luvas e desliguei a válvula do chuveiro, só então me lembrei das palavras de Anastácia, que encontrou o irmão com a roupa entreaberta.
Pisei o mais próximo possível do box onde havia água empoçada e espiei cada detalhe ali dentro. A saboneteira destampada, a toalha que parecia não ter sido usada naquele dia, o shampoo destampado, quando respirei fundo e encontrei aquele cheiro.
Se eu não fosse um excelente confeiteiro, talvez eu não entendesse o que eu sentia, mas sem dúvidas aquilo era cheiro de amêndoas queimadas. A densidade da fumaça já começava a me deixar nauseado, quando saí.
— Tudo limpo. — Disse Steve voltando à sala.
— Por aqui também, apenas cheiro de amêndoas bem torradas…
— Não haviam malas, não acho que ele pretendia fugir ou algo assim.
— O que faria você abandonar um banho pela metade? Quer dizer, seu banho… — Minha visão falhou. — não conta…
— Danny? Tudo bem?!
— Eu… tô bem, só… fiquei um pouco…
— Danny! — Ouvi Steve chamar meu nome, mas sua voz não estava mais tão próxima de mim.
— O que você tem? Fala comigo!
— Eu… a sala tá girando um pouquinho… minha cabeça uh… e o ar… queima… eu acho que…
— DANNY!
Senti meu corpo se desprender. Tudo ficou absurdamente escuro, eu procurava por ele, mas não conseguia tocar ou ouvir o timbre rouco de sua voz…

— Steve…
— Danny. Nós temos que ir.
As rodas do Camaro giravam, havia estática zumbindo no rádio da polícia e o volante era controlado apenas por uma de suas mãos, porque a outra coçava seus olhos.
— Você…
— Estou bem.
Seu tom de voz, como um espinho.
— Você parece… triste, está bravo comigo?
Meus pensamentos escorregavam pela minha boca.
— Quer mesmo começar a ser sincero agora?!
— Steve!
A chuva fervia sobre o painel do que agora se parecia com seu Silverado.
— Por que você nunca me disse, Danny?
— O que eu nunca disse?!
O retrovisor piscou e num salto saquei minha arma para o banco de trás, onde estava Catherine, perfeitamente pronta para se casar, e Melissa carregava seu buquê.
— Não minta mais para mim, Danny. Nós não temos tempo…
Mais uma vez fui sugado para o retrovisor e vi rugas surgindo em torno de meus olhos.
— Steve, está me assustando… o que está acontecendo… o que eu não disse?
— Não disse que… se apaixonou por mim…
— Steve… — Senti uma flechada em minha alma.
As garotas no banco de trás sumiram ao vento.
— Eu… apaixonado por… você?
— Já se perguntou por que estou sempre nos seus sonhos, Danno?
— Apaixonado por você… Meu Deus… — Era uma constatação.
— Eu amo você.
Havia uma ferida em seu peito.
— STEVE! STEVE…
— Danny! Eu estou aqui… eu… peguei você…
— Steve! — Senti seu cheiro e tentei alcançá-lo.
— Está tudo bem. Eu estou com você…
Minha visão finalmente me devolveu o dom de ver seus olhos verdes, outra vez. Havia lágrimas neles, mas um sorriso frutífero nos lábios. Acompanhei uma gotinha se desprender das ruguinhas abaixo dos seus olhos, correr por seu queixo e se perder no vão de sua camisa aberta, não havia sangue, mas eu o puxei pela gola mesmo assim, toquei seu peitoral e nada, não havia ferida aberta, não havia, ele estava bem, ele estava… bem.
— Graças a Deus… — Suspirei e senti meu rosto ficar molhado. Lágrimas minhas ou dele, isso já não importava agora, Steve me abraçou com força. — Por um segundo achei que… tinha perdido você…
— Eu… também achei que… tivesse te perdido, Danny.
Então uma mulher de cabelos loiros, máscara no rosto e roupa de enfermeira apareceu, me fazendo tomar nota do cenário ao nosso redor. Ela se assustou, então sorriu e tossiu avisando sua chegada a Steve.
— Ele acordou?
— Eu disse que ele acordaria. — Steve sorriu manhoso.
— Como se sente, senhor Williams?
— Só… Danny, e eu me sinto como se tivesse dormido dois dias! — Sorri.
— Na verdade, querido, você dormiu quase dois dias. E eu sou a Lola.
— Surpreso, encarei Steve.
— Não pode ser… você tava com a mesma camisa azul…
— Dormiu dois dias e essa é a primeira coisa que se lembra? — Lola me fez engolir a seco.
— Uh… é coisa de detetive. — Pigarreei. — E Wallace, Steve?! O que houve?
— Graças a você, agora ele está recebendo os medicamentos corretos.
Steve tocou meu pulso, eu sabia que ele checava a frequência dos meus batimentos e minha temperatura, ignorando os sensores ligados a meu corpo que marcavam tudo digitalmente, foi impossível não rir dele. Ele acariciou minha mão com a polpa do seu polegar para disfarçar a preocupação.
— Eu vou… avisar o doutor que ele acordou. — Disse Lola a Steve. — E… deixar vocês a sós. — Ela sorriu pretensiosa para mim e sumiu.
— Obrigado, Lola!
Ele a acompanhou com o olhar, e ao se voltar para mim encontrou dúvidas.
— Isso é algum tipo de sonho… ou você realmente está aqui há…
— 20 horas. Na verdade, eu saí um pouco pra ver Wallace há uns quatro corredores. — Ele sorriu. — Alguém tinha que ficar de olho em você…
— O que houve? Só me lembro de estarmos na casa de Wallace e…
— Você foi envenenado. — Ele tocou meu rosto com as costas da mão, talvez testando meus sinais outra vez, havia pena em eu rosto. — Ácido cianídrico.
— Por que fui envenenado com algo que nunca ouvi falar?
— Segundo o Max é cianeto de potássio na forma gasosa. Dependendo da concentração e do espaço onde é administrado… mata em segundos.
— Wallace.
— É, colocaram no encanamento que leva ao banheiro, esse gás tem o cheiro de amêndoas torradas que você sentiu. Wallace devia ter morrido em poucos segundos, mas ele conseguiu fugir, se arrastar até a sala no meio do banho, tentou colocar roupas, quando a irmã chegou e, só quando você foi envenenado também após sair do banheiro, pedi pra periciarem o local.
— Já sabem quem… foi o encanador do gás?
— Não, mas é bem complicado conseguir uma licença, a menos que você seja um químico formado e ainda assim leva dias… meses para…
— Steve… o cara da loja de conveniências!
— O quê?
— Quando fomos até lá… ele lia uma revista sobre química! Eu devia saber que era maluco…
— Vou avisar o Chin!
— Acha que ele mentiu sobre ter visto Wallace?
— Sei de alguém que pode responder isso. — Ele me olhou — Danny, é muito bom ter você de volta. — Seu sorriso brando era lindo, mas ele podia estar com a mesma camisa de dois dias atrás, mas os olhos, havia algo diferente neles. — Chin. Preciso que pesquise o Jacob, dono da loja de conveniências… Isso! Ele negou o assalto, nos fez pensar que a denúncia era falsa, mas pode estar mentindo. Vou te colocar no viva voz.
— Steve… advinha só? Ele se formou em Oxford há trinta anos, nunca chegou a dar aulas de verdade, mas vem comprando cianeto há… doze anos.
— Por que um homem precisa de tanto cianeto? — Perguntei.
— Danny?! Você acordou?
— Oi Chin! É isso aí, cara!
— É bom ouvir sua voz, você fez muita falta.
— Chin, espero que seja só um palpite ruim, mas peça para Jerry investigar qualquer outra morte por cianeto de potássio na ilha e peça pra ele checar a garota que trabalha na loja de conveniências, ela pode ser uma testemunha.
— Ou uma vítima. — Disse, Steve me olhou curioso. — Naquele dia, antes de ser envenenado, vi a garota, ela parecia preocupada, acho que ela conhece Wallace, mas ela estava assustada, fugiu antes que eu a alcançasse.
— Por que um professor de química, teria uma loja de conveniências?
— E por que ele mentiria sobre o assalto? E a queixa?
— A ligação foi anônima. Ele nega o assalto, e tenta silenciar um dos assaltantes. Essa garota pode sim ser outra vítima. — Concluiu Steve.
— Conseguimos uma pista do paradeiro do DJ, a Kono foi com o Adam atrás dele.
— Vá com Lou até a loja de conveniências, traga o Jacob, leve também Tani e Junior, quero que fiquem de olho na garota, não sei o que está havendo, mas parece ter relação com ela.
— Tudo bem. Já podemos visitar o Danny no hospital? Ou o médico mantêm a quarentena?
Seus olhos arriscaram me olhar com medo, ele confirmou que eu estava interrogativo quanto a fala de Chin, mas me ignorou.
— Quando puderem, eu aviso. — E apressadamente desligou o telefone.
Encarei Steve com olhos fixos, ele me evitava a todo custo.
— Eu preciso perguntar o que diabos ele quis dizer com quarentena?
— Significa um tempo longe do contato humano.
— Eu sei o que significa, Steve! Mas se estou em quarentena, por que você está aqui? E por que nem está usando máscara como a enfermeira?!
— Porque… uh….
— Steve!
— O médico disse que era melhor eu sair, mas… eu não saí. Foi isso.
— Você o quê? — Ele não respondeu. — Você podia ter se contaminado! Eles podiam ter chamado a segurança!
Steve passou a língua no céu da boca e coçou a cabeça.
— Steven! Eles chamaram a segurança???
— Eu posso ter nocauteado dois seguranças… mas, olha só, antes que você diga o quanto eu sou louco… eu precisava estar aqui…  com você.
— Você é mesmo louco… eles machucaram você? Você… está bem?!!
— Estou. Fui testado, me furaram umas cinco vezes, acho que foi vingança.
Sorri e me deparei de novo com aquele olhar de quem precisava chorar.
— Vá em casa, tome um banho, troque de roupa, eu prometo que vou ficar quieto e ser lindo até você voltar.
Ele sorriu.
— Não precisa, eu tô legal…
— Lola entrando. — Cantarolou Lola desnecessariamente. — Falei com seu médico, ele disse que pode tomar os remédios por via oral, aqui estão eles.
— Certo… — Encarei aquele coquetel, que certamente me deixaria tonto. — Ele disse até quando vou ficar de molho?
— Disse que precisa te ver, mas ele só vem ao hospital amanhã, então provavelmente amanhã você vai dormir na sua cama quentinha.
Tentei evitar, mas acabei fazendo um bico de qualquer jeito.
— Droga… hoje é…
— Dia de buscar o Charlie, eu sei. Mas tudo bem, eu converso com a Rachel. — Steve tentou esconder o olhar temeroso. Ele não queria que eu me preocupasse, mas eu o entendia, falar com Rachel era sempre desgastante.
— Quem é Rachel? — Perguntou Lola.
— Minha ex-mulher louca, que vai passar o resto da vida dizendo que eu não estou presente nos meus dias da guarda compartilhada.
— Conheço o tipo, colega. — Respondeu a moça me entregando comprimidos.
— Ela não vai. Eu vou resolver.
— Tá bem… obrigado. E vai logo em casa, Steve. É uma ordem.
— Você é muito mandão, sabia?! — Ele tocou meu cabelo de forma breve. — Uh… eu já volto. Fica com ele pra mim, Lola?
— Claro, querido, não vou tirar os olhos dele nem por um segundo. Prometo.
— Tá bem… eu já volto… vai ficar bem?
— Steven!
E assim ele passou pela porta, com Lola se sentando em sua cadeira e quase quebrando o pescoço para ter certeza de que ele havia finalmente ido, eu fiquei ali com aquele pressentimento de que ela ia cumprir a promessa.
— Ele é um bom homem.
— O melhor. — Sorri, amedrontado pelo olhar incisivo de Lola.
— Você gosta dele, não gosta?
— O quê?! — Quase engasguei com os vários comprimidos que havia acabado de engolir. — É claro… Steve é meu parceiro há anos…
Ela sorriu e afirmou com a cabeça. — Não posso me envolver emocionalmente com meus pacientes, sabe? Dizer coisas pessoais então, nada profissional. — Dai ela me olhou com um sorriso de “dane-se”. — Mas eu me casei, sabia?
— Você… não parece muito profissional agora. — Sorri. Ela também.
— O nome dela é Linda.
— Olha só! — Me senti ridículo por ter regalado os olhos, mas meu sorriso era genuíno, os olhos dela brilharam e aquilo era muito comovente.
— Ela fez residência nesse hospital. Na época, ela tinha um namorado e ele era o chefe da cirurgia cardíaca, eu esqueci de dizer, mas ela adorava cirurgia cardíaca… Eu era só uma enfermeira novata e é claro que ela nunca ia me notar…
— Acho que ela notou você, Lola!
— Você sabe como essa história termina, mas… eu não sabia. Era insegura, me sentia intimidada pelo cirurgião… eu era só a enfermeira que comia macarrão instantâneo e tinha muitas contas pra pagar…
— O que houve?
— Eu não disse nada. Deixei que ela se casasse com ele…
— O quê? — Foi quando percebi que Lola não estava apenas me contando uma história.
— Foi um casamento incrível, eu não fui, mas todo o hospital só falava do bolo de creme não-sei-do-quê, era um nome francês, e de como ele parecia um Deus naquele terno, mas o que ninguém imaginou foi que ele traia ela com a dama de honra… ela ficou arrasada, se sentindo um lixo, e eu me senti na obrigação de mostrar pra ela que… ela valia muito mais do que ele podia ver.
— É uma história bonita, Lola…
— É sim, mas quando eu preciso dobrar meu plantão… ela não dorme direito, e quando meu telefone chama, ela para o que está fazendo e finge que não tá prestando atenção em mim, mas tá… então eu me pergunto todos os dias como seria se eu não tivesse esperado tanto tempo.
— Eu… entendo você…
— Sei que entende. Também se casou com a pessoa errada, e falando nisso, o Steve me disse que vai se casar…
— É claro que ele disse. — Mordi o interior da minha bochecha, desconcertado com toda aquela história.
— Eu passei dois dias lembrando o seu amigo que ele precisa comer e beber pra ficar vivo, roubei lençóis dos médicos pra ele dormir nessa cadeira dura, e como você pode imaginar, eu gosto de conversar e… ele não está feliz com isso, Danny.
— Ele disse isso pra você?
— Não. Eu levei umas dez perguntas pra descobrir que ele ia se casar, e eu acho que você sabe que ele não tá feliz…
— Na verdade… sei que a Catherine, a noiva dele, pisou na bola algumas vezes, mas se ele tomou essa decisão…
— É porque você tá sendo um idiota! Olha só… ele não passou dois dias escolhendo bordados ou provando bolos, ele passou dois dias direto com as costas doendo nessa cadeira, chorando e rezando pra não perder você.
Não consegui responder, e se Lola tivesse razão e Steve estivesse infeliz? Por outro lado, é claro que Catherine estava em missão e ele não estava perdendo muito por estar comigo aqui…
— Eu sou um maldito ingrato…
— Okay… não era isso que eu esperava ouvir.
— E o que você esperava?
— Algo como “Lola, você é uma genia” ou “Lola, sua louca, some daqui!”.
Genia ou louca, ela sabia como me fazer rir.
— Há algumas semanas, essa conversa acabaria mesmo em some daqui, mas ultimamente…
— O que tem ultimamente? — Ela arrastou a cadeira, sabia que era um segredo.
Suspirei e me ajeitei na cama. Como se uma coluna ereta fosse me ajudar.
— Eu não sei. É que… só preciso fechar os olhos e… ele aparece. Eu acordo e… fico repassando meus sonhos… tentando entender porquê. O pior é quando acordo e ele realmente tá ali na minha frente, e eu sou um péssimo mentiroso, mas como poderia dizer “Oi, Steve, você pode me dar licença um segundo da minha cabeça?!” — Sorri, derrotado. — Eu… não sei o que tá acontecendo comigo, Lola, mas eu penso nele, eu penso muito nele e eu me importo, eu me importo com ele, com a mania de agir feito maluco dele, com essa droga de casamento…
— Não sabe o que está acontecendo com você?
— Não! Eu juro que não sei… — Gesticulei, pateticamente.
— Olha nos meus olhos, Danny.
— Certo…
— Agora repete comigo: Eu...
— Eu?
— Não estou.
— Não estou…
— Apaixonado pelo meu amigo Steve.
— Apaixonado pelo meu…
Havia uma agulha costurando minhas cordas vocais, a saliva segurava minhas palavras, meus olhos arderam e eu… não conseguia dizer.
— Vai ser mais fácil se tentar a frase inversa.
Me lembrei do meu sonho. Me lembrei de todos os meus sonhos.
— Lola… não posso… não pode ser…
Afundei o rosto em minhas mãos, senti o peso daquelas palavras.
— Hey… vai ter tempo pra isso, mas Danny, não pode deixar esse casamento acontecer!
— Lola… não fala como se… olha, se hipoteticamente eu estivesse… apaixonado por… ele, não fala como se ele fosse se apaixonar por mim! — Gesticulei sobre aquela ideia ridícula.
— E se isso já aconteceu? — Ela arqueou as sobrancelhas.
— Você tá ficando doida, mulher, mas obrigado mesmo por me fazer rir.
— Se eu tô doida, você pode parar de conter seus toques, e parar de fingir que não fica olhando pra ele sempre que ele se vira…
— Nós somos amigos, Lola. É só isso.
— Mais um motivo. É sério, Danny, se quer olhar pra ele, olhe, se quer abraçar, tocar, só toque. Se ele te interromper, eu tô doida.
— Ele… vai socar minha cara… ou me dar um tiro.
— É só voltar que eu te costuro. — Ela piscou de um olho só.
— Ah obrigado Lola, agora eu tô bem tranquilo com isso.
— Danny… Diga a verdade, ou deixe ele saber, faça do seu jeito, dê ordens ou diga o quanto ele é estúpido até ele perceber que você ama ele, mas… não cometa o mesmo erro que eu. Apenas prometa que vai tentar!
Eu mordia meu lábio, como se pudesse dar ff e pular aquela cena da minha vida.
— Eu não faço ideia do que tô fazendo… mas… eu… prometo que vou tentar.

Lola levava promessas a sério, pois ela não desgrudava os olhos de mim, quis ver as fotos de Grace e Charlie, riu quando eu disse o quanto eles pareciam puxar mais o Steve que eu mesmo, me interrogou profissionalmente sobre como conheci Steve, e no final das contas, me fez reviver memórias que eu nunca esqueci, mas ficaram guardadas criando poeira em minha alma.
Me lembrei de seus olhos tristes na primeira vez que o vi, naquela garagem, preso ao que sobrou do pai. Steve é incrivelmente forte, mas eu podia ver o filhotinho de cão abandonado dentro dele, aqueles olhinhos que te fazem querer abraçar, levar ele pra casa e nunca mais soltar. Eu queria cuidar dele. O que devia ser ridículo, já que eu estava tão ferrado quanto ele. Tinha medo de perder minha filha pros caprichos da mãe e mimos de um padrasto milionário, tinha medo que Grace crescesse e fingisse ter o sobrenome dele na identidade, tinha medo, era só o que eu fazia. Mas quando encontrei Steve, ele mudou tudo de lugar, inclusive minha perspectiva e esperança. Ele me obrigou a mudar, me mexer, me incomodou, me fez sair da minha zona de conforto e ninguém nunca, nunca antes, se importou tanto comigo como ele faz. Junto de Steve, eu aprendi a ser mais positivo, aprendi a arriscar, a brigar por aquilo que amo, e eu devia a ele, Lola estava certa, eu devia a ele aplicar tudo o que ele me ensinou naquilo que eu estava sentindo, por mais maluco e impulsivo que isso soasse, eu devia isso a ele.
Foi quando ouvi sua voz outra vez interromper meus pensamentos.
— Demorei?
— Steve! Você está bem? — Ele não usava mais aquela camisa azul, mas também não era o que eu esperava. Estava de camiseta preta, sob o colete a prova de balas, e acabava de recolher as luvas das mãos.
— Claro, só tive um imprevisto.
— Um imprevisto? Não posso me virar um segundo, que arruma confusão? Vem aqui!
— Ele parece bravo. — Lola acrescentou.
— Aqui? — Perguntou Steve parando ao lado da minha cama.
Puxei ele pelo colete, e apalpei seus ombros.
— Nenhuma bala? Está inteiro?!
Ele sorriu e se deliciou naquela pergunta.
— Está preocupado comigo, Danny?
— Eu? — Lola sorriu e me olhou em julgamento.  — Porque você me prometeu resolver sobre o Charlie.
— Mentira, você sentiu minha falta e eu sei disso.
— Ele é esperto, Danny. Vou deixar vocês a sós, porque o Danny quer te dizer alguma coisa.
— Lola! — E ela correu para fora daquele quarto.
— Então…?
— O quê…?
— O que o senhor tem pra me dizer? — Disse Steve provocativo.
— Eu… Eu só… quero… te agradecer. Lola me disse que foram dias difíceis por aqui, eu não queria te render uma dor de coluna, mas obrigado. É sério.
— Por nada… sobre a dor de coluna pode me fazer uma massagem pra se desculpar. — Ele sorriu tão pretensioso, que eu torci para Lola ter ouvido aquilo escondida do outro lado da parede.
— Uma massagem…?
— É, mas agora tenho uma surpresa pra você.
Steve foi até a porta, sinalizou, e um médico entrou acompanhado por Lola, que sorria encorajada pelas palavras que eu sabia que ela tinha escutado.
— Então, rapaz. Eu sou o doutor Spencer, e meu plantão é amanhã, mas… digamos que alguém foi até a minha casa e resolvi antecipar essa visita.
— Steve… — Sorri, incrédulo de que ele havia feito aquilo por mim. — Diz que você não usou suas táticas de Seal!
— Sei ser bem persuasivo quando quero. — Ele se gabou.
— Pelo que vejo, e por tudo que Lola me adiantou, você pode ir pra casa hoje, mas com uma condição.

— Quer dizer que o Jacob era o próprio Norman Bates?!
— Com uma trilha de vítimas, todas garotas, jovens… com a vida pela frente.
— Desgraçado…
— E logo, Amélia, a sobrinha que trabalhava com ele, seria a próxima.
— Se não fosse por você.
— E por você. — Steve me olhou rapidamente e voltou a prestar atenção no trânsito.
— Mas foi você que pegou o cara. Afinal, como ficou sabendo que ele havia fugido? Achei que disse pra você ir pra casa.
— Não… eu… fui até a sede, tomei o banho por lá e me troquei…
— Tomou banho na sede?!
— É, pra voltar mais rápido pro hospital… Então Chin ligou, Jerry rastreou o carro do Jacob, eu estava com o Camaro, que Chin havia buscado na casa de Wallace e deixado no hospital no dia em que você foi internado, e cheguei mais rápido a localização.
— Então, Wallace descobriu sobre os assassinatos?
— Na verdade ele não sabia sobre isso, mas viu o Jacob assediando Amélia e disse que ia denunciar ele.
— Quem em sã consciência ameaça denunciar a vítima do próprio assalto?!
— Ele conhecia Amélia.
— Isso não é suficiente pra ele se arriscar assim… Ele por acaso…
— É apaixonado por ela… — Steve me encarou. — Um cara é capaz de fazer qualquer coisa quando tá apaixonado por alguém…
— É verdade… — O clima no carro era denso, e eu queria muito saber se ele também sentia aquilo. — Eu realmente não sei como te agradecer….
— Já disse, uma massagem.
— Uma massagem parece pouco agora… — Tentei dar um passo, eu não sei se aquilo soou como um flerte tão óbvio como pareceu pra mim, mas em algum lugar de Oahu, Lola devia estar satisfeita.
— O que mais você quer fazer? — Ele revezava o olhar entre mim e o trânsito, realmente intrigado por nossa conversa.
— Uh… talvez, só dessa vez, você possa decidir.
— Tá dizendo que tenho um desejo. E você tá disposto a cumprir sem reclamar?!
— Não disse que não vou reclamar. — Sorri.
— Tudo bem… sei exatamente o que eu quero.

Eu estava curioso? Completamente. Queria descobrir o que ele desejava com tanta convicção, queria saber porquê ele falou sobre estar apaixonado, eu deveria estar maluco e ele apenas falava como um noivo, afinal ele ia se casar, mas eu queria mesmo saber, queria entender porque Steve preferiu tomar banho na sede, que em casa. A culpa era 100% das loucuras de Lola.
— Danno! Tio Steve! — Steve me dava suporte, e eu tentava não demonstrar que minhas pernas estavam fracas, Charlie correu e nos deu um abraço triplo, antes de voltarmos ao carro. Fico aliviado ao perceber que hoje é um desses dias onde Rachel apenas abre a porta de casa e espicha a cabeça para ver se Charlie chega até mim em segurança, porque Steve está comigo e as vezes, quando ele e Rachel estão no mesmo lugar eu sinto aquele clima. Não é nada demais, eu acho, mas me lembra um pouco um duelo entre cowboys, olhos estreitados e passos calculados, mas misturado com a cerimônia da Miss Universo, sorrisos falsos e acenos controlados.
Os remédios me deixavam sonolento, mas Charlie só falava sobre um novo filme, e ele queria contar tudo o que sabia, era Steve quem sorria empolgado com cada detalhe, e aquilo até tirava meu sono, ver Steve engajado em atender as expectativas de Charlie, dividir meu papel de pai… era uma cena que sempre, sempre mexeu comigo. Era difícil ignorar a ideia de imaginar mais momentos parecidos, onde Steve roubava sorrisos de meus filhos.

Steve levou Charlie no colo até a porta de casa, e passou o outro braço pelo meu ombro. Paramos diante da porta, e eu só conseguia observá-lo.
— Er… eu não tenho a chave… — Ele apontou a porta.
— É claro… são os medicamentos… — Entreguei a ele a chave reserva que ele havia tirado debaixo da pedra há dois dias pela manhã.
Steve destrancou a porta, e Charlie desceu apressado para ligar a TV.
— Filho, vai indo na frente que o papai já encontra você.
— Tá bom. Tio Steve, você fica? — Charlie implorou num sorriso.
— Bom, se o seu pai concordar, vamos assistir esse filme agora mesmo!
— Oba! — Charlie correu para dentro, sem nem ao menos esperar uma resposta minha. Será que até meu filho sabia que eu jamais diria não a Steve?
— Olha só… você fez um monte de coisas incríveis por mim, e sei que não vê sua casa há dois dias, o que significa que Eddie deve ter destruído seu quintal… — Sorri.
— Ele não está sozinho… — Franzi a testa, a ideia de ter Catherine rondando Eddie, quem sabe sendo uma mãe pra ele machucava. — Junior sempre passa e leva ele pra passear, mas você não pode ficar aqui de pé tanto tempo assim…
— Já vou entrar. — Disse, aliviado. — Eu só quero te dizer obrigado outra vez, e o Charlie vai entender se quiser deixar o filme pra outra hora, sei que está cansado, precisa dormir… e pode levar o carro com você. Vai pra casa…
— Só que eu já estou em casa. — Ele passou o braço por meus ombros e me levou para dentro, fechando a porta atrás de nós dois. — Esqueceu a condição que o Dr. Spencer impôs?
— Que não posso ficar sozinho? Não esqueci, mas… eu tenho o Charlie!
— Na verdade, vocês dois tem a mim.
— Não é que eu não queira você aqui, porque… sinceramente… eu quero, mas o que está dizendo?
— Tô dizendo que vou passar a noite aqui, e quantas mais forem preciso até você… voltar ao normal.
— E com “voltar ao normal” você quer dizer…? — Tentei conter meu sorriso.
— Quero dizer… quando parar de ser doce comigo, parar de sorrir assim… quando voltar a gritar comigo, quando os remédios pararem de te amaciar.
Sorri feito bobo, e fiquei pensando se parte daquilo era verdade, se eram mesmo os remédios me dando coragem pra que eu fosse mais amável com Steve. Ai, se ele soubesse o quanto eu tinha guardado para ele…

Após um banho quente, dormi em minha cama, ouvindo o sorriso de Charlie que assistia um filme na sala com Steve. Tive novos sonhos, e a cada sonho eu ficava mais curioso sobre aquilo que minha imaginação não ousava tocar.
A campainha tocou de repente, Steve apareceu com minha maior camisa, ela era cinza e estava meio deteriorada pelo tempo, mas sempre foi grande demais pra mim, perfeita no corpo dele.
— Está acordado?
— A campainha…
— Charlie acabou de dormir, eu vou atender… já volto.
E ele voltou em um minuto com um sorriso no rosto e cheiro de camarão.
— Surpresa! — Disse Kono com balões, Adam trazia chocolate em mãos, Tani e Junior carregavam flores, Lou e Jerry ajudavam Kamekona e Flippa a carregar todas aquelas sacolas com a logo do trailer de camarão.
— Psiu… acabei de pôr o Charlie na cama. — Disse Steve.
Todos se olharam elevando as sobrancelhas.
— Tá bom, eu vou dizer: você é um ótimo pai, Chefe.
— Acho que todo mundo aqui concorda com isso. — Disse Chin.
— Ah… obrigado… — Steve estava lisonjeado? Emocionado? — Caras, isso devia ter ficado na cozinha!
— Como você está? — Perguntou Tani se sentando na beira da cama, enquanto Steve e os rapazes levavam as sacolas para o lugar correto.
— Um pouco tonto e segundo o Steve, amaciado pela medicação. — Sorri.
— Deu um susto na gente, Haule! — Disse Kono se jogando na cama. — E o Steve então? O Chin foi falar com a governadora pessoalmente sobre os seguranças do hospital.
— Não posso nem ser envenenado que ele arruma confusão! — Acabei rindo junto com Kono.
— Pedimos pra revezar com ele, a gente se ofereceu pra usar aquelas máscaras ou o que fosse necessário. — Disse Tani.
— E mesmo assim não deixaram?
— Deixaram — Disse Kono. —, mas Steve não aceitou sair de perto de você nem por um segundo.
— Eu ouvi meu nome?! — Ele voltou ao quarto.
— Ouviu sim… senta aqui, você tá com a cara péssima. — Puxei Steve pelo braço, ele caiu sentado do meu lado na cama.
— Eu tô com a cara péssima? Deve tá na hora dos seus remédios…
— Eu tô brincando, você tá… ótimo!
Sorri para Steve e ouvi todos no quarto com provocações infantis.
— Só um conselho, você devia dar esse remédio pra ele por tempo indeterminado. — Disse Lou.
— Gente… o cheiro da cozinha tá…
— Jerry! — Cortou Junior.
— É segredo… — Cochichou Kamekona, embora todos puderam ouvir.
— O que é segredo? — Apertei a mão de Steve, sobre a cama.
— Que você e o Steve estão namorando. — Disse Kono, trocando o assunto. Steve me olhou tímido e sorridente.
— Mais uma conspiração legitimada. — Disse Jerry.
— Isso com certeza não é segredo. — Zombou Chin.
— Vou compor uma música pro casal! — Celebrou Flippa.
— Vocês são muito… engraçadinhos, sabiam?
Mas enquanto todos brincavam, eu realmente me divertia com aquela ideia, e só ali percebi que eu realmente desejava aqueles comentários infantis.
— Você está bem? — Steve tocou meu rosto, carinhoso.
— Estou… — Sorri pra ele, me esquecendo que havia um monte de curiosos.
— Mais alguém sente que estamos sobrando? — Kono perguntou e todos confirmaram.
— Com certeza! — Respondeu Adam.
— Todo mundo pra fora. — Disse Lou.
— Vocês dois, descansem! — Disse Tani.
— Nós vamos aguardar o convite do casamento. — Disse Junior.
— Olá… que casamento? Olá, Danny, Steve, equipe, tudo bem com vocês?
— Tudo bem sim, Max. — Respondi. — E eles só estão brincando.
— Entendo, sinto muito por ter me atrasado. Noelani precisou me cobrir pelas últimas horas e o Eric está supostamente ajudando-a, por isso disse que vem amanhã. E Comandante, eu consegui! O que me pediu está na…
— Enfim, boa noite, Danny. — Cortou Adam, seguido por todos que apertaram minha mão, me mandaram “descansar” cheios de ironia e deixaram balões e flores sobre Steve.
— Obrigado pela visita! — Tentei dizer quando os últimos saíram.
— É Mahalo, Danny! — Disse Steve deixando uma piscadinha.

— Ufa… — Disse ao ver o semblante cansado no rosto dele.
— Finalmente sozinhos? — Ele perguntou e juro que tentei não dar asas pra minha imaginação.
Mas tomando a frente, a campainha gritou uma, duas, três vezes.
— Parece que ainda não… — Bufei.
— Será que alguém esqueceu algo… — Ele dizia no caminho, então pude ouvir a voz de quem chegava e não era alguém da Five-0.
— Melissa? — Questionei, quando ela entrou acelerada pela porta do quarto.
— Por que a surpresa? Ainda sou sua namorada. Steve acabou de me contar o que houve, como está se sentindo?
— Eu… estou bem.
— Que barulho foi esse? — Charlie surgiu com olhos pequenos na porta do quarto.
— Oi filho, tá tudo bem, pode voltar a dormir.
— É que eu ouvi um barulho…  — Charlie esfregou os olhinhos.
— Oi Charlie… sinto muito. — Melissa tentou se desculpar, mas ele não parecia se lembrar dela, estava com sono e eu só queria poder pegá-lo no colo e colocá-lo na cama.
— Hey Campeão, você está de pé? Vem, vamos resolver isso. — Steve o colocou em seu colo e o levou, exatamente como eu gostaria de fazer. Vi Charlie se envolver no pescoço de Steve, e seus olhos voltaram a pesar na mesma hora.
— Uau… Steve realmente tem jeito com crianças!
— Ele tem sim… o Charlie e a Grace são loucos por ele!
— Uh… mas como você está, meu amor? Quer que eu cuide de você, Steve deve ter alguma namorada esperando por ele em casa!
Cocei a cabeça, ela não estava errada, era um raciocínio lógico, mas que me machucava.
— Melissa… por favor, encosta a porta, nós precisamos conversar.
— E então?
— Olha só, eu quase morri envenenado, isso faz parte do meu trabalho, da minha vida. Mas isso me faz questionar tudo o mais que faz ou não parte da minha vida e… eu preciso te dizer isso. — Respirei fundo. — Você é linda, jovem, divertida, e… eu percebi que estou mentindo pra mim mesmo há muito tempo, estou tentando aprender a lidar com isso, mas não posso viver pensando que estou enganando você. Se eu tivesse morrido hoje, você só receberia uma ligação de um policial comendo rosquinhas, a gente se vê menos vezes que o programa da Oprah é televisionado… eu sinto muito, de verdade, mas isso tem que acabar.
— Danny? Olha… você foi envenenado, deve ter tomado remédios fortes, pensou bem no que está dizendo?
— Não… eu não pensei muito nisso, mas pensei o suficiente. Mesmo assim sei que é a decisão correta, acho que sempre soube, me desculpe, Melissa?
— Tem outra mulher, não tem? Talvez a Rachel resolveu procurar você…
— Meu Deus, não! — Corri meu olhar para a porta, com medo de que Steve ouvisse aquilo e acreditasse que eu passava por uma recaída doentia.
— Ou… é sério?! Realmente com isso eu não posso competir, mas espero que vocês dois sejam felizes… — Disse Melissa, ainda com a voz enfurecida.
— Do que… do que está falando?
— Lynn me alertou. Ela me falou sobre… vocês… eu preferi não ver o que estava na cara ha muito tempo… Pelo visto, não adiantou.
— Do que está falando, Melissa?
— Você e o Steve. Ele disse que estava apaixonado por outra pessoa, quando terminou com ela, mas é claro que você sabe bem disso!
— Ele… — Não vou negar que fiquei esperançoso por um único e singelo segundo, até me lembrar do óbvio. — Entendo o que você pensou, Melissa, mas… não é nada disso, ele está de casamento marcado agora.
Ela engoliu e sacudiu aquela ideia maluca pra longe, me deixando frustrado.
— Acho melhor eu ir embora…
— Sinto muito, Melissa, de verdade… vou acompanhar você.
Abri a porta para Melissa e senti o exílio ao deixar ela partir, mas eu sabia que não podia continuar me acorrentando à aquela infelicidade, e prendendo Melissa nesse jogo angustiante, sem a mínima possibilidade de um bom fim.
— Com quem ele vai se casar? — Perguntou Melissa do outro lado da porta, já com o tom de voz um pouco mais brando.
— Isso não importa, mas… com a Catherine.
— Ah… — Conhecia bem Melissa, seu jeito dissimulado quando tinha razão, e ela sabia de alguma coisa. — Eu estou com raiva? Estou. Mas vai passar, eu… sei que está sendo honesto, sei que tenho culpa por ignorar algo que eu já sabia, e sei que estou acabando com qualquer chance de você acordar amanhã, se arrepender e me ligar pedindo pra voltar, mas… ele não está apaixonado por ela.
— Do que você está falando? — Curvei a porta para que o som de nossa conversa, que acabava de ficar intrigante, não nos escapasse.
— A primeira pessoa em que Lynn pensou quando ele disse aquilo, foi nela. Então ela perguntou se era a Catherine e no calor do momento ele negou, negou que fosse por ela que ele estivesse apaixonado… sabe o que isso significa, certo?
— Que ele estava mentindo… — Dei de ombros.
— Por que ele mentiria se já estava terminando com ela? Você é o detetive aqui. Fica bem, ok? — Ela me abraçou, senti suas lágrimas e realmente havia uma parte de mim que sentiria falta do conforto que Melissa me trazia. Pena que tudo aquilo era pouco, quase nada perto de ter Steve em minha casa.
— Melissa? Obrigado!

Sem tempo pra administrar o que ela havia acabado de me dizer, ou pra absorver que agora eu não tinha uma namorada que apareceria duas vezes por mês, só tranquei bem a porta e fiquei olhando aquela chave. Por que esconder uma chave reserva debaixo de uma pedra, se eu não tivesse quem encontrá-la?
Andei depressa para o quarto de Charlie, já cansado da exposição por ficar tantos minutos de pé, mas havia valido a pena, minha maior fração se sentia aliviado por ter deixado Melissa ir, e agora cada pedaço de mim queria eternizar o momento em que abri a porta do quarto, e encontrei Charlie dormindo com a pequena mãozinha na palma da mão de Steve, que havia dormido todo dobrado no canto da pequena cama, com um livro infantil aberto sobre o peito.
Minhas sobrancelhas se curvavam, meus olhos eram espremidos, eu queria chorar, mesmo sem a mínima compreensão do motivo. Briguei com as palavras de Lola na minha cabeça. Não era possível. Aquele ser tão doce, puro como uma criança, forte, viril, esperto, carinhoso, bondoso… ele nunca me notaria. Mas o outro lado da moeda, eu já conseguia ver. O que é estar apaixonado? Não me lembro de sentir isso por outra pessoa, sentir minhas mãos tremerem desse jeito? Ter medo de tocar errado e quebrar um momento ao lado dele. Talvez eu estivesse mesmo apaixonado por ele, mas só tinha um jeito de descobrir.
— Hey… vem, você caiu no sono… — Cochichei em seu ouvido.
— Danny… — Ouvi sua voz sonolenta sorrir ao dizer meu nome.
— Vamos? — Steve abriu os olhos, e me viu a pouquíssimos centímetros, pude perceber seu desconforto, sua respiração correr. Ele fitou a porta, então me esqueceu ali abaixado, se levantou rápido como um felino e caminhou para fora do quarto, só o que me restou foi segui-lo.
— Desculpa… eu acho que peguei no sono… Er… Melissa deve ficar com você, não quero atrapalhar, eu vou… pra casa.
— Hey… você não vai a lugar algum.
— Não vou…? E sua namorada?
— Ela já foi. Finalmente sozinhos…
Devia estar louco, pois vi uma fresta de um sorriso em seus lábios.
— Já? Uh… Que… pena…vocês não brigaram, por acaso né?
— Não. — Ele balançou a cabeça afirmativamente. — Não brigamos.
— Ela não quis ficar?
— Você já disse que ia ficar. Agora, vem!
— Hey! Onde você vai?
— Na cozinha?! Estou morrendo de fome. Algum problema, Steven?
— Defina “problema”.
— Steve McGarrett!
— Eu disse pra definir “problema”!
— Mas foi exatamente o que eu fiz. Você é meu maior problema…
— Seja um bom garoto, e deixe que seu “problema” vai te guiar. — Steve girou meu corpo, passou os dedos com leveza sobre meus olhos, e se colocou em minhas costas, com as duas mãos em minha cintura.
— Vai finalmente me dizer o que tá aprontando?!
— Você sabe que tenho direito a um único pedido. Um desejo.
— E seu desejo é… uma simulação tática?! — Ele sorriu. — Acertei? Tem armas de chumbinho e silhuetas de bandidos espalhados pela cozinha, não tem?!
— Não. Você tá sendo um garoto muito mau.
— Passei perto pelo menos?
— Bom, não vou negar que cuidar de você é minha missão mais…  — Nós paramos, ele aproximou os lábios de minha nuca — secreta e perigosa.
— Sabe que de olhos fechados as palavras mexem com a imaginação?
— É mesmo? — Seus dedos acariciaram minha cintura. — Está pensando em que?
— Uh… primeiro, não sabia que “seus cuidados” eram segredo pra alguém, e sob que ângulo isso pode ser perigoso para um Seal treinado como você?
— Sabe, Danny. Eu conheço muitas armas, golpes, táticas de campo, mas isso não vale de nada quando tudo o que eu quero é ganhar um sorriso seu…
Sorri, e não foi por piedade.
— E por que um Seal da marinha está interessado num único sorriso meu?
— Abra os olhos… — Eu os abri, e lá estava ele, perto demais tocando meu rosto. — Se você tivesse um espelho agora, não precisaria perguntar.
Ele deu passos para o lado e eu pude ver o que ele estava aprontando.
— Steve… fez tudo isso pra mim? Por que você faria isso…
— Desliga o modo detetive, e volta a usar a criatividade.
— Quando a Grace era pequena, tinha uma brincadeira que ela chamava de “3 segundos”, basicamente, ela me dizia algo por 3 segundos, algo que ela queria me contar, mas que eu não podia questionar depois.
— Você apenas tinha que saber?
— Era a única regra.
— Por que tá me falando isso agora?
— Liga o cronômetro.
— Um…
— Você é maravilhoso, Steve!
— Você… disse que…
— Regra é regra. Sinto muito.
Aquele sorrisinho bobo abaixo de seus olhos lúcidos era o ápice da minha vida agora. Acariciei seu braço, e fui direto para a mesa iluminada pela luz de velas. Não era lá um grande segredo que o prato principal era camarão, mas as tulipas brancas no centro da mesa e Marvin Gaye tocando ao fundo?!
— Hey, deixa que eu faço isso. — Steve se apressou, para que pudesse puxar minha cadeira.
— Essa é a mesa mais linda que eu já vi… e essas tulipas… são como as do restaurante que você falou? E… você sabe que não posso beber vinho, certo?
— Sei, mas prometi que nosso jantar seria há dois dias, então… tudo aconteceu, e eu não podia adiar mais um dia sequer… por isso, aproveite seu suco de uva e nós temos um longo cardápio, mas que bom que você gosta de camarão! E as flores… Max conseguiu um buquê do próprio restaurante!
— Uau! Só agora entendi que esse é o nosso… primeiro encontro!
— Também conhecido como meu desejo.
— Você não esqueceu… — Mordi o lábio.
— Sua vez de ligar o cronômetro.
— Ok...
Sorrimos juntos.
— Não vou esperar mais cianeto de potássio pra te levar pra jantar.
Sorri, louco pra fazer algumas perguntas.
— Aprendeu direitinho esse jogo! Sabe, Steve… Valeu a pena.
— O quê?
— Valeu a pena. Ser envenenado um pouquinho…
— Pode pensar em me conceder mais desejos, sem envolver envenenamento?
— Se todos os seus desejos fossem assim… — Me lembrei do casamento.
— E se forem…?
— Nem minha imaginação drogada por esses remédios, consegue pensar nisso.
— Danno… tem mais uma coisa que quero te falar; Você fez tudo que podia por seu irmão.
Houve um silêncio grato entre nós.
— Mahalo, Steve.

A comida do Kamekona representa 70% do meu cardápio há dez anos, mesmo assim, aquele foi o melhor jantar da minha vida. E quando Steve apagou as velas, e eu cheirava o aroma das tulipas por trás da névoa das velas, a música parou de tocar, Charlie não fazia um único barulho, e tudo era apenas silêncio.
Caminhei em sua direção e ele em resposta, veio direto pra mim.
— Uh… boa noite, Danny…
— Boa noite, Steve…
Dei passos para trás, sem tirar os olhos dele, ele se virou, e me olhou no meio do caminho para o quarto de Grace, continuamos presos em olhares trocados até sumirmos da vista um do outro.
— Espera, Steve!
— Estou aqui. — Disse ele de prontidão.
— Uh… — Me aproximei outra vez. — Na verdade, tenho algo pra você…
— Hun… um beijo de boa noite?
Perdi segundos tentando criar coragem pra dizer sim, mas eu não queria acabar aquela noite recebendo os pontos de Lola, que prometeu me remendar.
— Aqui… — Desenrolei seus dedos e deixei na palma de sua mão. Ele sorriu.
— A chave lá de casa… que você deve ter perdido na lavanderia?!
Sorri.
— É, e com lavanderia eu quis dizer… a gaveta da cômoda.
— Sabia que você não queria que caísse em mãos erradas…
— Pois é… tem mais uma coisa… — Refiz o ato de deixar na palma de sua mão direita, dessa vez, Steve passou o conteúdo dela pra outra mão, e não deixou que minha mão vazia voltasse pra mim.
— Sua chave reserva que eu sempre usava pra arrombar sua porta?
— Sobre isso… você deve ter reparado que todos tocam a campainha… e sabe que policiais detestam chave reserva, então…
— Só eu sabia dessa chave abaixo daquela pedra? — Sorri em resposta.  — Era uma isca, pra mim? Danny, Danny, Danny… — Ele adorou ouvir aquilo, não precisava ser detetive para perceber.
— Digamos que… ela sempre foi sua, é melhor que fique sempre no seu bolso.
— Sabe, como Seal, policial, five-0… isso me faz pensar que você está me dando permissão pra entrar e sair quando eu quiser.
— Só pra entrar. — Sorri e me virei, antes que eu fizesse outra besteira. Mas ele ainda tinha minha mão dentro da sua, e usou aquele trunfo para se meter em minhas costas, tatear a lateral do meu corpo com uma lentidão angustiante, e entrar com os dedos no bolso de minha calça de moletom.
— Também não quero que essa chave caia em mãos erradas. Pegue o que é seu.
Coloquei a mão em meu bolso, abaixo de seus dedos e respirei aliviado ao perceber que aquela era a chave de sua casa, não da minha. Meu corpo ainda estava tenso por seu toque que me abandonava com preguiça.
— Boa noite, McGarrett. — Disse sem me virar.
— Boa noite, Williams. — Senti sua respiração quente em minha nuca.

Já passava das duas da manhã, e eu estava mordendo o travesseiro, tentando me afivelar abaixo das cobertas para não me levantar e fazer besteira. Mas todo o meu corpo se recusava a ficar quieto, e a desculpa agora era um copo d’água. Os remédios faziam minha cabeça pesar, mas as lembranças daquele jantar, as palavras que nunca antes havia ouvido dele, mantinham meus olhos bem abertos, e um sorriso insistente pairava a cada recordação do timbre dele.
Eu não ia levantar. Apenas me virar, me aninhar nos travesseiros, fechar os olhos e… eu precisava mesmo beber aquele copo d’água, era a recomendação do médico, beber muito líquido, e descansar, mas onde diabos havia se metido meu sono? Eu não ia me levantar, ficar perambulando pela casa aquela hora?
A verdade é que eu precisava de toda a medicina pra me fazer esquecer que Steve estava no quarto ao lado, dormindo amarrado em minha camisa, talvez ainda de calça cargo ou sem ela… Na cozinha, apenas beberiquei meu copo, e notei a porta do quarto de Grace entreaberta. Não faria mal só uma olhadinha, ver se ele dormia bem, se não precisava de outro cobertor ou de outra coisa.
Com o coração disparado, toquei na madeira da porta e me encolhi quando ela rangeu.
— Danny… você está bem?
— Estou… desculpa, volta a dormir. — Me virei.
— Hey… eu não tava dormindo…
— Tá com dificuldade pra dormir? Ta precisando de algo?
Era difícil ver seu corpo na ausência de luz, mas senti seu sorriso no ar.
— Só não to conseguindo dormir…
— Nem vai conseguir porque você… claramente não cabe nessa cama!
— Danny… isso foi um convite?
— Você não tem mais quinze anos, então esse sou eu cuidando da sua coluna!
— Não… isso foi um convite sim!
— E se… apenas por causa da sua coluna… fosse um convite?

Previsível, mas agora eu só me levantaria da cama se fosse estritamente necessário. Meu corpo estava tenso, os braços esticados juntos do corpo, o medo de me mover e tocar alguma parte inexplorada do corpo dele.
— Agora me diz, como é sentir minha falta?
— Vai dormir, Steve!
— Só mais uma pergunta, agora é pra valer…  Você perdeu o medo de eu escutar você dormindo gemendo meu nome?
— Steven!
— Só o primeiro da noite. Boa noite, Booboo.
— B-Boa noite…
— Sonha comigo…

***

mas o gosto da sua boca ...Where stories live. Discover now