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Não consegui dormir depois que Danny foi embora, deixei uns dois recados nada ortodoxos na secretária eletrônica da Rachel, que havia desligado o telefone. A cama do quarto de hóspedes não recebia o meu corpo como a minha. Pra ser justo, acho que lugar nenhum no mundo faria sentido naquela noite.
Mas sendo bem honesto, as outras não foram melhores. Passei a viver com aquele sentimento de que sai de casa e esqueci algo muito importante, algo estava faltando. Eu sabia que era Danny, mas sentia como se fosse um pedaço meu, um membro que retiraram cirurgicamente enquanto eu dormia. E agora, se me perguntassem eu mal saberia explicar o que aconteceu. Sentia falta dele.
Danny estava fora da minha vida. E mesmo nos dias em que ele aparecia no trabalho, ele não estava mais lá. Sem piadinhas espirituosas, sem brigas e pirraças, sem abraços casuais e principalmente, sem beijos na boca. Nada. Eu havia tentado de tudo, um dia desses cheguei a fechar o Camaro no meio da rua. Danny deu ré e seguiu por outra rua. Acho que era esse o recado: Danny seguiu em frente, por outra rua, onde eu não pudesse atrapalhar seu caminho.
Também não via Catherine desde aquele dia. Acho que ela acordou cedo demais e saiu antes que eu despertasse. Uns dias depois recebi uma mensagem dizendo que ela havia voltado para uma missão. Eram tantas missões, mas eu preferia assim. Respondi dizendo que precisávamos conversar. Ela ignorou.
Bom, acho que hoje ninguém vai poder fugir de mim. O dia chegou.
...
É sábado, mas acordo com cara de segunda ou cara de quem não toma banho há alguns dias. Um oferecimento único e efetivo da barba que não ando tendo disposição para tirar e das roupas que não faço questão de trocar.
As pessoas parecem, de algum modo, todas iguais, mas elas despertam coisas diferentes dentro de você. Como comida. Alguns te deixam com água na boca e outras fazem você torcer o lábio. Danny nunca me fez torcer o lábio.
Quando tiraram Danny de mim de forma bruta, como um dente sendo extraído, o resto do mundo perdeu o sentido. Tudo agora me faz torcer o lábio.  E é pensando em dentes extraídos que começo o dia. O dia do casamento.
Ainda sem camisa e cheirando às últimas cervejas de ontem, me sento na cozinha e fico encarando a cafeteira, esperando que ela pudesse agir sozinha. Alcanço meu telefone, todo dia é a mesma coisa, aquela ideia totalmente subjetiva vinda sei lá de onde com sua vozinha tendenciosa me dizendo, soprando no meu ouvido será que o Danny me mandou uma mensagem? Então agarro o celular e quebro a cara mais uma vez em mais pedacinhos.
Resolvo discar um dos poucos números que sei que vai me atender.
— Bom dia, Steve. Não devia estar dormindo até tarde no sábado em que vai se casar?
— Oi, Chin. O... casamento é só daqui oito horas. Diz que temos um caso.
— Não temos um caso. E mesmo que tivesse, você está de folga hoje.
— Sou seu chefe, Chin. Você não pode fazer isso.
— Você é meu amigo, Steve. E isso faz com que seja meu papel perguntar: já conversou com o Danny?
Há uma pausa na nossa conversa. Porque não sei qual a forma mais sociável de chorar no telefone aos soluços sem deixar Chin constrangido.
— Ele... ainda tá fingindo que eu não existo.
— Devia conversar com ele. Hoje. Nas próximas oito horas de preferência.
Mordi o interior das minhas bochechas. Será que Chin sabia de tudo?
— Acha melhor eu algemar ele numa cadeira ou ameaçar tirar o pino de uma granada?
— Talvez devesse usar mais acessórios. Como uma boa fita adesiva.
Sorri por dois segundos, pensando em como Danny adora falar. Ou adorava.
— Se pintar um caso você me liga?
— Não! — Chin respondeu, irresoluto. — E Steve? Converse com o Danny.
Ele desligou a chamada, antes que eu pudesse fazer mais alguma piada autodestrutiva. Suas palavras provocaram um eco profundo na minha cabeça, como se fosse uma seção de hipnose e ele tivesse estalado os dedos. De modo que acabei abrindo minha caixa de diálogo com Danny.
Digito coisas como “Oi, bom dia” e “Quanto tempo hein” ou “Será que podemos conversar?” e até um “Eu ainda te amo”. Ouço batidas na minha porta.
De todas as visitas inusitadas e desagradáveis que consegui pensar, essa consegue ser a pior de todas. Eu acho que deve existir alguma lei que deixe claro que, quando você está chantageando alguém da forma mais suja e desonesta possível, deveria deixar sua vítima ser manipulada em paz. Sem visitinhas.
— O que você tá fazendo aqui?!
— Bom dia, Steve. Então, o grande dia chegou! Como está? Nervoso?
— Você é do tipo que não se contenta em fazer o jantar, não é? Tem que se sentar e verificar se comeram, se não deram pro cachorro debaixo da mesa?
— Você parece nervoso, mas é compreensível. Quando me casei, com o Danny, eu fiquei com dor na gengiva de tanto que rangia os dentes.
— Bela história, Rachel. Mas ainda não explica o que faz na minha porta.
— O pai dos meus filhos é seu padrinho, meu filho vai levar suas alianças. É claro que vou querer ajudar, talvez ajeitar sua gravata ou te dar palavras de incentivo quando ficar muito... ansioso.
— Ah, você realmente é boa com palavras de incentivo. Eu me lembro.
— Eu... acho que posso ter deixado uma impressão ruim da última vez. Você pode ter pensado que eu quis te pressionar, mas me importo com você, e só queria te dar conselhos. Fico feliz que você seguiu.
— Você me chantageou, Rachel! E isso acaba aqui. O único motivo pra me casar era pra evitar que você arrastasse o Danny pra Jersey, mas ele vai embora de qualquer jeito. O jogo acabou.
— Não é assim que eu vejo, Steve. Acho que seu coraçãozinho partido está atrapalhando você enxergar o cenário todo. Sabia que na identidade do Charlie, ele ainda carrega o sobrenome Edwards? Era um processo longo e desgastante e convenci Danny a esperar que Charlie tivesse mais idade para lidar com isso.
Finalmente entendo que Rachel sempre teve o xeque-mate a um movimento. Eu era só aquele ratinho que o gato deixa escapar por pura diversão e acaba encurralado num buraco pequeno e frio no canto da parede. Não havia saída.
— Você está ameaçando tirar o Danny da vida do Charlie?! É isso mesmo?
— Você me faz parecer má. Eu só quero proteger o meu filho!
Quero gritar e dizer para Rachel desaparecer da minha casa, mas ao invés disso sinto as últimas gotas de esperança secando. Não vou ter Danny de volta. Não só os beijos na boca, não vou ter nem as piadas espirituosas de volta.
— Ele foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida...
E como Rachel não se importa em chutar cachorro morto, ela diz:
— Mas você não foi a melhor coisa que aconteceu na vida dele.
...
Depois de fechar a porta na cara de Rachel, me sento no sofá e termino de apagar a mensagem que digitei para Danny. Penso até em apagar o número dele, mas não faria diferença, porque sei de cor. Seria como tentar apagar ele da minha memória, eu teria que esmagar meu cérebro e colocar outro no lugar, e provavelmente ainda teria o rastro dele em outro canto do meu corpo, qualquer fio de cabelo que me fizesse saber que faltava a melhor parte de mim.
Volto minha atenção à cafeteira, ela ainda não começou a agir como uma inteligência artificial e consertar minha vida por mim. Mas ela não me parece totalmente inorgânica agora, consigo ouvir a voz tangível na minha cabeça. O que está fazendo? Por que colocou manteiga no café? Isso é nojento até pra você!
Meu Deus, o que eu não daria pra ter Danny berrando na minha cabeça agora? Me deixando completamente enfurecido por qualquer coisa boba?
Alguém bate na minha porta. Tenho maus presságios se enfileirando na minha mente, que me deixam bem disposto a largar quem quer que seja mofando na porta, e me confinar na cozinha, até que eu perca minha lucidez.
Mas ouço aquela vozinha fantasiosa de novo. Eu não me perdoaria se fosse Danny. Se daqui há vinte anos tivesse que contar pros filhos da Joan que deixei o amor da minha vida escapar quando fiquei inóspito com minha campainha.
Abro a porta.
— Bom dia, Comandante! Meu nome é Clare! Sua noiva deve ter avisado que eu vinha.
Ela procura por qualquer indicativo de que sei do que ela está falando.
— Sou da agência de decoração. Vim decorar a casa e o quintal. Tem um belo espaço pra recepção. Não fique tão nervoso, vai ficar perfeito!
Vai sim. Com exceção é claro pelo fato de que sou gay, apaixonado pelo padrinho, minha noiva não fala comigo há mais de uma semana e é claro, estou me casando com base numa chantagem. Nada que orquídeas não resolvam.
Clare abriu o porta malas do seu carro, que parecia mais uma passagem secreta pra o mundo das rendas, apenas branco e rosê podiam entrar. Blasê. Quando vi uma foto minha com a Catherine em preto e branco anexada em suportes para vela, percebi que eu não tinha estômago para ficar ali. Peguei minhas coisas e bati a porta de casa.
Rodei pela cidade sem saber para onde ir. Encarei o relógio supondo ter matado meia hora, mas mal haviam passado dez minutos. Aquele não era eu. Eu costumava ter o que fazer e saber para onde estava indo. Costumava saber o que eu estava fazendo e ter um pouco de dignidade no meu travesseiro a noite.
Acabei na sede. Subi pelas escadas. Reparei os corredores, a tinta clara das paredes, o desgaste na madeira. Coisas que nunca existiram pra mim até agora. Cheguei inevitavelmente ao meu andar, todos estavam ao redor da mesa. Chin, Kono, Tani, Junior, Adam, Lou, Jerry e... Danny.
Longe dessa informação derrubar o queixo de alguém, mas Danny estava lindo. Continuava com sua postura elegante e um pouco impessoal, usava uma camisa preta de gola redonda, quase como se gritasse que não queria estar aqui. Me senti aliviado ao ver seus olhos completamente azuis, como se no fundo tivesse medo que a cor tivesse variado e eu perdido aquele tom pra sempre. Primeiro ele me olhou como se tivesse acabado de acordar, com certeza não esperava me ver ali, passou os olhos por mim da cabeça aos pés, tomando nota de como eu estava um trapo. Seu rosto ficou amigável por um tempinho, e então colérico como se quisesse jogar aquela mesa na minha cabeça.
Todos estão me olhando e eu acho que não sei quanto tempo passou desde que entrei pela porta, sinto que tenho que dizer alguma coisa e quebrar o iceberg que acabei de construir.
— Nenhum caso, hein Chin?
— Não pra você. — Chin responde sem muita convicção, e fica apontando a cabeça para Danny, tentando em vão ser discreto.
— Mas já que estou aqui, o que aconteceu? — Me aproximo da mesa.
— Vai pra casa, irmão. — Diz Lou.
Não sou bem vindo em casa, nem na sede da minha própria força tarefa. Qualquer dia desses deve receber uma ordem de despejo do planeta Terra.
— Tá bem. Quer saber, eu só vim porque... esqueci meus óculos. Na minha sala. — Me direciono pra minha sala pra dar veracidade à minha história.
— Você não usa óculos.
Depois de tanto tempo, ouvir Danny direcionar a voz pra mim é o suficiente pra me fazer parar no meio de qualquer caminho, até minha sala ou até o altar. Fico atônito, e me viro para ele num impulso para não perder o momento.
— Talvez... eu tenha esquecido outra coisa.
— Provavelmente um banho. Ou de fazer a barba. Você tá péssimo.
Devia estar ofendido? Louco de raiva? Não estou. Quanto mais ele me insultar, mais eu sei que ainda se importa. E sei que tenho que reagir.
— Bom... você também não tá exatamente...
O que eu tô fazendo? Ele continua maravilhoso. Não encontro um defeito.
Danny arqueia a sobrancelha pra mim.
— Tenho que ir.
Ele diz, mas já não olha diretamente pra mim.
— Danny?
Ele também não olha pra trás.
— Vai atrás dele. — Diz Kono, quase empurrando minhas costas.
Ainda sem saber o que estou fazendo, pego o elevador e vou mesmo atrás dele. Prefiro não saber o que fazer indo na direção de Danny do que na oposta. Só consigo vê-lo quando está batendo a porta do Camaro com mais força do que deveria. Corro até o carro, ouço o motor ligando, mas não desisto. Naquele momento me parece uma boa ideia me jogar na frente do capô. Ou ele fala comigo, ou quebra mais que meu coração, talvez minhas costelas ou pernas.
Danny freia quando a placa do carro quase toca meus joelhos.
— VOCÊ FICOU MALUCO?
Seus olhos estão me encarando furiosos. Pelo menos arranquei alguma emoção do rosto dele, mesmo que seja um desejo frutífero de me matar.
— Depende. Vai ser assim? Vai embora hoje, amanhã e nunca mais vai falar comigo? — Danny não responde. Caminho até a janela ao seu lado e acho que posso estar completamente vulnerável agora. — Você... me odeia tanto assim?
Danny faz aquela cara como se tivesse acabado de se queimar com café, um misto de quem padece em dor, repulsa e incompreensão. Seus olhos ficam avermelhados e úmidos, e ele me encara ainda devastado.
— Eu... tenho que ir. — Sua voz sai doce e rouca, como costumava ser sempre que ele falava comigo. Aquilo é o bastante pra me fazer chorar. Danny reprimi todas as expressões que perpassaram seu rosto, e arranca o Camaro.
...
Passo um tempo sentado na calçada sem coragem de levantar ou secar meu rosto. Me escondo no carro quando as pessoas começam a me encarar pensando se devem se aproximar e oferecer ajuda. Não sou bom em me sentir assim, acho que não fui treinado pra isso. Mas não preciso de treinamento militar pra saber o que fazer quando você perde a pessoa que ama.
Estou na segunda cerveja, em um bar monótono e escuro, onde bebo no gargalo por medo do coquetel de bactérias que devo encontrar nos copos, quando recebo uma mensagem de Catherine perguntando se estou em casa.
“Não. E você?” — Digito e envio na esperança dela adiar o casamento por causa de alguma missão. Não custa sonhar.
“A caminho de Oahu. Te vejo no casamento.”
— Mais uma cerveja, por favor.
...
Volto pra casa antes de ficar completamente bêbado. A ornamentação de Clare já está adiantada o suficiente para que meu quintal pareça uma casa de bonecas. Passo direto, sem olhar nos olhos intimidadores das flores, da seda e das velas.
Quando fecho a porta da sala, ouço passos apressados na cozinha.
— Clare? É você?
Sem resposta. Olho pela janela e vejo Clare jogando pétalas na areia. Aperto os olhos e saco a arma no mesmo instante, procuro pelo Steve soldado alerta que se perdeu há algumas cervejas. Com as costas rente a parede, vou em direção da porta da cozinha e me viro num giro rápido, que me deixa meio tonto. Com o dedo no gatilho vejo uma sombra rápida se mover.
— Calma, sou eu!
Ouço a voz de Catherine e devolvo a arma para o coldre, respirando aliviado por não ser uma pessoa desconhecida e encapuzada querendo me matar quando estou com péssimos reflexos e o discernimento prejudicado.
— Por que está se escondendo?
— Porque... é a tradição. — Sua voz parece cansada e desconfortável. — Pode se virar de costas?
— Você não ia chegar na hora do casamento?
— Era pra ser... uma surpresa, Comandante.
Tem algo errado na voz dela. Parece que está jogando verde. As palavras saem atrasadas, enquanto ela dedica atenção demais para saber se eu acreditei.
— Ah... Não que eu ligue pra tradições, mas só funciona se estiver com o vestido.
Além do que, penso, que mal faria um pouquinho de azar?
— Pois é, eu estou. Não tive tempo de provar antes. Por isso, olhos fechados. Quando ouvir a porta bater, você pode abrir. Certo?
Não tem nada certo.
— Certo.
Acho que já estou sendo tão desonesto que não vejo sentido em cumprir minha promessa. O que é mais um degrau pro inferno? Espio por uma fresta nos olhos e vejo Catherine saindo pela porta, usando tênis, jeans e camiseta.
Por que Catherine mentiria pra mim sobre estar usando o vestido de noiva?
Que pergunta idiota. É claro que Catherine mentiria pra mim, criando a oportunidade perfeita para sair de fininho sem que eu tivesse chance de cancelar o casamento. É tudo o que ela tem feito desde que viu a foto naquele jornal.
...
Depois de comer pizza gelada, me enfio na banheira com os sais milagrosos de Mary. Como sempre, eles colocam meus neurônios bêbados e desiludidos para funcionar. Sou um babaca. Um daqueles babacas de filme que deixam o amor de suas vidas escaparem pelos dedos, um daqueles caras que fazem a gente revirar os olhos e dizer “Que idiota! Se você o ama, lute por ele!”.
Mas que amor egoísta seria o meu se trouxesse Danny pra minha vida e destruísse a dele? O fizesse ter de escolher entre ficar comigo ou com o filho? A única coisa pior que perder Danny, seria fazer ele perder a si mesmo. Se eu o amava, precisava ir até o fim. Provavelmente esse casamento não passaria de um par de alianças. Catherine mal fica na cidade mesmo, talvez Danny desista de ir embora, talvez eu vá até Jersey visitá-lo. De toda forma, prefiro passar a vida sonhando com Danny, do que condená-lo a viver um pesadelo.
...
O terno pendurado num cabide me encara de forma severa. É pegar ou largar. Mas se for pegar, pegue logo de uma vez. Pare de sentir pena de si mesmo. Ninguém vai aparecer e passar a mão na sua cabeça. Só... pegue. E aí você se casa. Não deve ser tão difícil, as pessoas fazem isso o tempo inteiro!
Visto a calça escura e a camisa social branca, fecho os botões que parecem necessários e jogo o terno aberto por cima. Embora tenha decidido acabar logo com isso, faltam horas pro casamento, desço as escadas e quando me dou conta já estou visitando a garagem.
Foi ali que conheci Danny e também foi ali onde me apaixonei por ele. Me parece o lugar certo para enterrar os sonhos dos quais não vou desfrutar. Vejo a caixa de ferramentas do meu pai e vou até ela. É tudo por causa dela. Sempre pensei que meu pai trouxe Danny pra mim, como um presente de natal que você nem sabia que queria, mas depois percebe que é tudo o que precisava. Eles são homens parecidos, detetives natos, prontos para se sacrificar pela família, com instinto afiado sob qualquer situação, guiados por corações limpos. Queria ter podido apresentar Danny ao meu pai. Sei que um teria orgulho do outro.
É quando ouço o ruído de alguém se aproximando. Me viro de súbito, os dedos já procurando pelo coldre, que não estou usando. Vejo aquele brilho dourado invadir a garagem mais uma vez. O deja vu é instantâneo. Danny passando por trás do carro do meu pai, com os olhos se derramando sobre os meus, dez anos depois, tentando sentir o que sinto, olhos que veem por dentro.
— Posso lidar com muitas coisas. — Ele começa a dizer num tom sério, de quem fala sobre coisas importantes. Parece que ensaiou esse discurso pra valer. — Nosso trabalho, tiros voando sobre a minha cabeça, bombas e granadas, você que adora se jogar por qualquer janela, metade do mundo querendo nos matar, até esse casamento que não faz o menor sentido... mas não posso lidar com a ideia de você achar que eu odeio você. Como pôde pensar que odeio você?
Danny me olha meio desesperado como se eu fosse realmente muito estupido pra entender o que ele dizia. Não consigo deixar de notar que ele também se arrumou cedo, e que Danny de terno e gravata é uma combinação mágica.
— Ficou fácil depois que você parou de falar comigo.
As sobrancelhas de Danny se curvaram para baixo. Eu não podia suportar a ideia de vê-lo chorar por minha causa.
— Odeio muita coisa nessa vida, Steve. Odeio o mar, odeio pizza com abacaxi, mas eu nunca seria capaz de odiar você. Não odeio nada em você.
Tecnicamente, Danny está dizendo que não me odeia. Meu coração recebe a informação aos pulos, como se ele tivesse acabado de dizer que me ama.
— Eu sinto tanto a sua falta, Danny... Parece que você já foi embora. — Estou sendo tão sincero que me viro de costa pra não desistir no meio da frase.
Ouço a porta do carro do meu pai abrir. Me viro e vejo Danny se sentando no banco do passageiro. Ele move as pernas para frente, fecha a porta na terceira tentativa, porque ela sempre emperra, e me olha. Sei que ele me quer ali, dentro do carro, e vou de imediato medindo meus passos para não demonstrar o tamanho da minha ansiedade. Na verdade, nesse momento se Danny me chamasse no Alaska, eu iria a nado até ele.
Caminho até o carro, e parece a coisa certa a se fazer. Me sento diante do volante, bato a porta e também olho pra frente. Acho que mais da metade de nossas conversas difíceis aconteceram assim, dentro de um carro. Fingindo que não nos olhamos por causa do trânsito ou da natureza da posição das poltronas. Mentira. A gente não se olha porque é difícil encarar esse tipo de verdade. O retrovisor ajuda.
Danny respira fundo. Parece que tem uma dessas verdades vindo por aí, algo que torne difícil ele me olhar, mesmo desse ângulo que nos é tão familiar.
— Naquela noite, depois da cabana do Sr. Kiopaa... voltei pra casa realmente acreditando que tudo ia mudar... pra uma coisa melhor. Daí a Rachel bateu na minha porta...
Eu sei bem como umas batidas da Rachel podem destruir a vida de alguém.
— O que aconteceu? — Toco rapidamente seu joelho com meu polegar. Nem é um carinho direito. Está mais para um gesto de quem gostaria de fazer um carinho.
— Quando ela disse pro Charlie esperar no carro, sabia que tinha algum problema. Então vi Rachel caminhar furiosa com aquele jornal na mão. Aquele com uma foto nossa... E não! Antes que pergunte, eu não voltei com a Rachel. Mas... ela disse que assina aquele jornal e o Charlie sempre usa ele pra fazer recortes pra escola. Disse que o Charlie já passou por muita coisa... e sei que passou mesmo. Ela perguntou o que eu teria dito à ele, se ele tivesse pego o jornal antes dela. E aí a minha garganta secou. Eu fiquei confuso, assustado. Percebi que não era só a minha foto com um cara... era com você, o Tio Steve... o herói do Charlie... herói que vai se casar com alguém... Percebi que se não podia explicar algo pro meu filho... talvez fosse porquê eu não devia fazê-lo.
Cubro meu rosto com as mãos. O que eu fiz com o Danny? Será que não tem nenhuma opção alternativa nessa história onde só meu coração seja partido?
— Me perdoa, Danny? Nunca quis te colocar numa situação complicada... e admito que coloquei. Naquela noite no Hilton... eu não devia ter-
Danny me interrompe. Acho que não quer me ouvir falar essas besteiras.
— Hey, não diga isso... a menos que se arrependa mesmo. — A voz de Danny sai aos tropeços, como um segredo que você não planejava contar.
Ele fica calado por uns segundos, me dando a oportunidade de concluir minha frase e mostrar que aquele beijo não passa de um erro na minha memória. Mas eu não posso fazer isso. Existe uma verdade concreta entre mim e Danny, onde mesmo quando minto, ele sabe, e quando omito, ele sente. Algo de especial que ninguém pode tirar da gente, e preciso disso assim como preciso de ar.
Danny assente, entende o meu silêncio. E sua voz começa a sair soprada com cuidado, como se ele não quisesse apagar uma chama bem pequena de vela.
— Eu vou te falar como vejo as coisas. — Percebi que seja lá o que Danny fosse dizer, seria verdade. Ele estava reunindo coragem e honestidade, coisas que eu só conhecia de modo remoto. — Se quer se casar daqui há duas horas, eu vou estar bem aqui, como sempre, bem do seu lado. Vou te apoiar, okay?
— Okay... — Respondo e minha voz sai embolada como um novelo de lã.
— Mas... uma parte meio doida de mim não consegue acreditar que é isso que você quer. — Danny roça os dedos nas rugas que se salientam em sua testa e fecha os olhos, é quando percebo que está sofrendo. Essas palavras doem para serem ditas. — Talvez eu apenas não queira acreditar. Mas se... eu não for um maluco total, se você souber do que eu tô falando... se hipoteticamente, você não quiser se casar hoje... Se alguém tiver fazendo isso com você... a gente resolve, Steve. Eu vou estar com você nisso também. Do seu lado.
Danny segura minha mão e me olha com medo, avaliando o estrago que causou. Assinto minimamente, meu coração se desmanchando no peito, lágrimas empoçadas no meu crânio e aquele nó crescendo na minha garganta. Tento ficar imóvel. Danny me conhece melhor do que podia imaginar, um deslize meu e ele vai ter certeza sobre as suas suspeitas perfeitamente corretas.
— Certo. — Ele tenta abrir a porta do carona, mas ela está, decididamente, muito bem emperrada. Ele se desfaz da minha mão e encara sua porta que, é claro, continua emperrada. — Eu só vou... — Danny olha para além de mim, e posso ouvir sua respiração pesada de um jeito que sinto como seu coração está apressado. Ele ergue a coluna em minha direção, apoia uma das pernas no meu banco, gira o corpo e acaba com os joelhos fincados ao redor das minhas pernas, sustentando o seu peso para não pender sobre o meu. Uau! Eu não esperava por isso. Um limite desenhado em fio de nylon nos separa, e por Deus, como eu gostaria de quebrar! Meu coração pula algumas batidas, sinto o frio no estômago percorrer o corpo todo em espasmos poderosos.
Danny leva a mão até seu objetivo, a porta do motorista e parece que subir em cima de mim foi tão necessário quanto atravessar uma rua. Mas algo o detêm. Um tempo eficiente para se abrir uma porta de carro e saltar do meu colo desconfortável pra fora, se passa e Danny continua sentado sobre minhas pernas. Alguma coisa o prende ali. Acho que é sua parte meio doida, o traquejo de detetive lhe dizendo que o caso ainda está em aberto e o tempo acabando.
Seu rosto está corado e cabisbaixo, seus cílios sinuosos se levantam e seus olhos me encaram tímidos, como um animalzinho perdido no bosque. Aqueles olhos cor de mergulho profundo, o que se vê quando está no fundo do mar e olha pra incidência dos raios de sol sobre a água salgada. São olhos que bradam pela verdade, te laçam num trato silencioso, e você está preso sob juramento.
Ele me mostra um sorrisinho acuado e triste. Não faz ideia do poder que tem sobre mim. Não faz ideia do quanto vê-lo sob aquele ângulo vai se repetir em minha memória até que meu cérebro esteja arranhado o suficiente para não funcionar mais. Não faz ideia do quanto sou loucamente apaixonado por ele.
Danny segura meu rosto entre os dedos, como se segurasse uma bola de cristal. Seus polegares sobem e descem sobre os fios da minha barba.
— Sei que você nunca foi bom em me ouvir, mas por favor, não faça nenhuma besteira.
Sinto uma lágrima fazer cócegas em minha bochecha e Danny a apara no mesmo segundo. Acho que ele sente que já chega, é hora de deixar a sala azul. Então segura a maçaneta da porta do motorista e puxa a trava para abri-la.
— Danny... — Minha voz escorrega pela minha boca, um ato inconsciente seguido por outro. Seguro sua mão sobre a porta e me rendo aos seus olhos. — Não...
Fecho a porta.
Meus dedos sobem por seus braços, que se encontram na minha nuca, não sei como minhas mãos vão parar em suas costas, mas já estou pedindo pro seu corpo cair sobre o meu e no mesmo segundo seus lábios estão tão próximos dos meus que meus neurônios apagam, é uma linha que já cruzei sem nem perceber. Como embarcar num vagão de trem, não dá mais pra voltar atrás. Não me jogo desesperado em sua boca como no Hilton, nem ele me tortura num beijo lento como naquele closet. É um misto dos dois momentos, obstinado, mas arrastado e eu não saberia dizer quem começou. Acho que tomamos a atitude juntos. Seus lábios estão quentes como uma xícara de café e aconchegantes como uma fogueira num dia nevado, seu beijo é como um abraço apertado na minha alma.
— Steve...
Acho que Danny queria me puxar de volta para a realidade, mas sua voz tremula e sei que ele mesmo não quer pôr os pés no chão. Sou tomado por um instinto primitivo, onde querer Danny é a única coisa que me parece certa.
— Já disse que não usamos gravata no Hawaii... — Puxo o tecido de sua gravata a fim de desfazer o nó, enquanto Danny está de prontidão sugando meus lábios um a um, as voltas da gravata se desatam e o tecido escorre por meus dedos e cai sobre o banco onde Danny esteve sentado, desabotoo seu colarinho e beijo a pele recém exposta, ele fecha os olhos e pende a cabeça para trás, repito o processo com o próximo botão, sinto seus dedos despenteando meu cabelo. Danny suspira e me beija deixando uma mordida sôfrega em meu lábio, suas mãos passeiam pelo meu corpo até ele tirar meu terno do caminho.
— Você é um noivo lindo... — Sua voz sai rouca contra minha boca, abro os olhos pesados quando sinto o gosto salgado, seu beijo é temperado pelo sabor da despedida. É quando percebo suas palavras. — O noivo lindo de outra pessoa.
Danny abre a porta do carro já se levantando. Eu seguro sua mão, mas ele não responde ao meu toque e num segundo atormentado pela voz de Rachel na minha cabeça, eu o solto. Ouço seus passos no mesmo momento. Ele já se foi.
...
— Danny...
Se todo mundo tem direito a um momento de choro pertinente, daqueles que você escorrega as costas contra a porta e cai sentado no chão, esse era o meu. Mas não tinha porta, porque eu não conseguia sair de dentro do carro. Era mais fácil reviver o beijo de Danny se pelo menos eu estivesse no ponto de origem, e o cheiro dele ainda está aqui diluído no ar, com ajuda da gravata.
Me pergunto o que Danny veio fazer aqui. Eu estava o mais perto de pronto para enfiar meus sonhos numa gaveta e trancar com vários cadeados, colocar o anel do dedo de Catherine e seguir a vida. Mas agora não sei se estou mais.
Eu desisti de mim. Desisti de mim tantas vezes que me acostumei a fazer isso. Se alguém tinha que passar por uma porta sem saber o que tinha do outro lado, eu me oferecia para ir na frente. Se precisassem de alguém para desarmar uma bomba ou morrer tentando descobrir qual o fio deve ser cortado, sei que meu nome seria o contato de emergência. E a vida inteira me orgulhei disso. Ser o herói, salvar o dia e devolver a paz. Não havia do que reclamar, certo?
Não me parecia mais tão certo assim. Eu estava pra lá de infeliz. E completamente cansado de ser o Comandante McGarrett. O Comandante não pode cometer erros, mas talvez o Steve possa, e tentar consertá-los também. Danny veio até aqui porque não desistiu de mim, e eu não quero desistir dele.
...
Saio as pressas da garagem com a gravata em mãos. Quando passo pela sala, Eddie está latindo feito louco.
— Eddie. O que houve, garoto?
Ele vem até mim. Se enrosca em minhas pernas e cheira a gravata em minhas mãos. Me olha com aqueles botões cor de caramelo como se quisesse me dizer alguma coisa. Sinto que o universo está tentando me deixar um recado. E como no dia em que me apaixonei por Danny, ele não sai da minha cabeça e vou correndo feito louco pensando em bater em sua porta.
— Tem razão. Eu sou um idiota por deixar ele ir assim. Vou resolver isso.
Afago a cabeça de Eddie. Ele late e sai do caminho. Até Eddie concorda.
Bato a porta e vou em direção ao carro. Clare me alcança afobada.
— Comandante, os convidados já devem estar chegando. Você vai sair?
— Viu um homem loiro saindo num Camaro preto? Viu pra onde ele foi?
— Vi sim... Parecia chateado... E foi naquela direção, mas e o casamento?
— Fez um bom trabalho, Clare. Já pode ir pra casa.
— Comandante!
— Meu nome é Steve.
— E você está bem... Steve? — Ela se esforça para se acostumar com meu nome.
Olhei para Clare e percebi que estava cansado de mentir.
— Eu amo aquele homem há dez anos, Clare.
Ela ergue as sobrancelhas e assente, compreendendo o que está acontecendo.
— Uau! E ele? Ama você também?
— Eu não sei. — Abro os braços, sentindo o peso de minhas palavras. Não faço ideia se Danny me ama. Nunca pensei que isso fosse possível.
Ela olhou para toda a ornamentação que rendeu um dia inteiro de trabalho e depois olhou pros meus olhos vermelhos.
— Você devia ir descobrir, Steve.
—  Obrigado. — Assenti e arranquei o Silverado, tentando fazê-lo correr como o Camaro.
...
Fiz o percurso com menos da metade do tempo que costumava levar. A sirene ajudou bastante. Quando estaciono na porta de Danny, vejo o Camaro e fico aliviado por um segundo, porque meu coração está batendo tão rápido que penso “estou fibrilando, vou morrer bem aqui”.
Ironia do destino ou recado do universo, sinto os primeiros pingos da chuva. Não quero condicionar meu casamento à resposta de Danny. Quero que ele saiba que eu não aceito ser de outra pessoa, pois já sou inteiramente dele.
Ligo para Catherine.
Caixa postal.
“Eu sei que esse não é o tipo de coisa que se diz pra uma caixa postal, mas sei que só vou poder te dizer isso pessoalmente quando você estiver no altar... o que me parece ainda menos justo com você. Acho que você sabe do que se trata. Eu não amo você, Cath. Me perdoa, mas eu não estava fazendo isso pelas razões corretas e preciso arrumar a bagunça que fiz. Sinto muito mesmo, mas não posso me casar com você.”
Suspiro aliviado, como se tivesse tirado o monte Everest das costas.
Corro até a porta de Danny, a chuva se tornando torrencial acima de mim.
A luz está acesa. Bato na porta, como fiz há dez anos atrás. A porta não se abre, mas vejo a sombra dos pés se mover pela sala. Minhas chaves ficaram em casa, e entendo Danny não estar desesperado para me deixar entrar. Fui um babaca com ele, mas não posso esperar mais um segundo e perder o timing. Preciso fazer isso agora enquanto o meu coração está ardendo e flamejando.
— Oi Danny! — Me debruço sobre a porta e tento falar o mais alto que posso, lutando contra as lufadas do vento e a chuva que se torna intensa. — Sou eu. E sei que você está aí, provavelmente se perguntando o que eu estou fazendo aqui. Eu não posso me casar com a Catherine, porque não é ela quem eu amo. Sei que te disse várias vezes que você não se deixa ser feliz, que você tem medo de ser feliz... mas olha só pra mim! Acreditei que felicidade e amor, sentir o coração acelerar, os dedos suando mesmo debaixo de chuva... não eram coisas pra mim. Mas aí você apareceu e começou a curar minhas feridas, todas as minhas memórias tristes e sangrentas, você veio substituindo pela sua risada, suas palavras doces... e eu nunca te disse isso, mas você não só salvou minha vida ou me deu uma família... você purificou minha alma e curou meu coração... eu era só um soldado com o coração congelado e você me ensinou a amar e desde então eu tenho feito isso, tenho amado você desde sempre...
Ouço o trinco da porta girar finalmente. Ela se abre e bate contra a parede, empurrada pelo vento. Encaro a pessoa do outro lado da porta, e não é Danny.
...
Ela está encolhida pela corrente de ar frio que entra pela porta e me encara com olhos em vigília, a boca entreaberta num sobreaviso de que era ela quem estava do outro lado da porta. Um sorriso envergonhado se faz em seu rosto.
— Oi...
— Grace! — Corro para um abraço e então paro, porque percebo que estou molhado e que, é claro, acabei de dizer que seu pai purificou meu coração!
— Tio Steve! — Ela me puxa pra dentro e me abraça como se eu não fosse uma pedra de gelo suando água gelada.
A porta se fecha. Varro a casa com os olhos. Nada de Danny. Sinto meu rosto corar ao encarar Grace, que tenho certeza que foi pegar toalhas secas.
— Onde está seu pai?
— Saiu. Disse que precisava falar com você.
— E falou. Mas faz uma meia hora... o Camaro está na porta.
— Deve ter saído pra dar uma caminhada, ele faz isso quando está triste. —Grace me enrola numa toalha seca. — Talvez tenha ficado preso na chuva.
— É... ele estava triste?
— Ele sente sua falta... — Ela se senta no sofá e bate a mão no assento ao lado, me convidando para se juntar a ela. — Bebe um gole, você vai congelar!
Recebo a caneca que ainda está soltando um vaporzinho morno. É chocolate quente. Provo e sinto que era exatamente o que eu precisava provar agora.
Grace está gigante e usando um vestido rodado, pro casamento com certeza. Uma versão adulta da minha garotinha e olhar pra ela seria o suficiente para me fazer chorar. Penso em tudo o que eu disse e automaticamente estou tentando bolar uma maneira de explicar o que aconteceu. Claro que não existe.
— Você... escutou tudo, né?
Grace me espia de canto de olho.
— Não, só desde o “Oi Danny". — Ela franze os lábios. — Me desculpa?
— Não pede desculpas, amor. Você não tem culpa. — Faço um carinho rápido em sua bochecha. Não sei o quanto deixei as coisas estranhas entre nós.
— Eu não encontrava a chave, e acabei ouvindo. Então... você e o meu pai?
Joguei mais um gole longo de chocolate quente pela boca. Queimei a língua, mas valia a pena ter um álibi para continuar sem responder aquela pergunta.
— É complicado. E provavelmente deve ser muito estranho pra você... — Franzo a testa e sinto que devo fugir dali, ir embora e fingir que nunca aconteceu. Quando falei com Clare, foi libertador, mas Grace é como uma filha para mim e é total e biologicamente, a filha de Danny. E de Rachel.
— Não! — Ela diz de súbito.
— Desculpa... imagino como deve ser estranho pensar na gente dessa forma... Olha, vamos esquecer que-
— Tio Steve! — Ela ergue as mãos ao ar. Entendo o recado e fico calado. — Não é estranho. Na verdade, sempre pensei em vocês dois dessa forma.
— Você... o quê?
— O Danno é muito bom em fingir que está tudo bem... mesmo quando não está. Mas quando ele está com você, ele não tem que fingir nada, sabe? E mesmo quando ele não tá perto de você, é só em você que ele fala!
Grace me aqueceu com um cobertor, chocolate e com as palavras. Meus olhos ficam embaçados e percebo que nunca consegui esconder nada dela.
— Sabia que você me disse isso quando a gente se conheceu?
Ela sorri e se pendura no meu pescoço. Como se fosse uma menininha de dentinhos cerrados, apaixonada por coelhos outra vez.
— Eu tinha me esquecido. — Ela sorri.
— Mas não quero que tenha uma impressão errada... eu e seu pai... não estamos juntos. Na verdade, vim aqui porque queria que ele soubesse...
— Que você o ama? — Ela me encara com os olhinhos brilhando.
— Que eu o amo. Muito...  — Penso em cada detalhe dele.
Ela sorri de novo. Como se tivesse assistindo uma comédia romântica.
— Tio Steve? — Sua voz fica mais densa e o rosto sério. Sei qual será a próxima pergunta. — Por que ia se casar? Não que seja da minha conta.
— Grace, eu amo você. Tudo o que quiser saber, pode perguntar. E o casamento... bom, eu não me orgulho de ter feito isso, mas concordei em me casar porquê... nem todo mundo apoia o que sinto pelo seu pai como você fez.
— Alguém... tentou separar vocês?! Meu Deus... minha mãe foi te ver hoje de manhã, não foi?
Não consigo esconder minha surpresa. Como Grace chegou nessa conclusão em dois segundos? Não posso deixá-la acreditar que a mãe fez algo assim.
— Grace, sua mãe é uma ótima mãe. Ela se preocupa com você e com o Charlie, e isso é o que importa.
— Fica tranquilo, não vou falar nada com ela ou com o Danno. É só que... conheço a minha mãe, tio Steve, e amo ela. É minha mãe, afinal. Mas... isso não significa que eu goste de todas as atitudes malucas dela. Você me entende?
— E como eu te entendo! Promete pra mim que não vai ficar pensando nisso?
— Prometo. E tio Steve? Eu te amo também.
Estou sorrindo e nem sei como Grace conseguiu fazer isso comigo.
— Quando você cresceu tanto assim? E ficou tão esperta e corajosa? Volte a ser minha menininha!
— Acho que tive a quem puxar. Esperta como o Danny, corajosa como você.
Ela sorri. E eu choro.
— Não sabe como é importante pra mim... — Estou chorando pra valer. Acho que sou eu a criança e Grace o adulto. — Saber que você apoia o que sinto pelo seu pai... mesmo sabendo que ele vai me matar quando souber disso!
— Não acredito que nunca percebeu que o Danny é louco por você, tio Steve!
— Você acha mesmo?
Grace me lança um olhar que diz “o céu é mesmo azul?”.
— Por isso disse que puxei a coragem!  — Ela me oferece um sorriso largo.
— Grace! Você precisa passar mais tempo comigo, tá ficando igualzinha ao pai!
Bebo todo o chocolate quente e eu fico ali esperando Danny aparecer.
...
Fico fascinado com cada história que Grace compartilha sobre a faculdade. Os adolescentes em geral, aos meus olhos, são como flores artificiais, parecem todos iguais e você sabe onde encontrar mais e mais deles, mas a Grace é como aquelas flores raras que levam meses para florescer, e quando isso acontece, cada pétala que nasce é um grande momento.
Mesmo assim, meus olhos ficam indo e vindo até a porta como um frisbee. Já imaginei tantas entradas diferentes para Danny que poderia escrever um livro: Como Chegar em Casa e Encontrar o Homem que se Declarou para Você Através de sua Filha. De A a Z. Em uma das versões, ele passa pela porta e pergunta o que diabos estou fazendo aqui, então eu apenas digo que o amo e ele me beija apaixonadamente, e em outra, ele passa pela porta e corre direto pro beijo, porque viu meu carro na porta e já entendeu que abandonei meu casamento porque sou apaixonado por ele.
— Tá pensando no Danno, não tá?
— Tô... eu tô pensando no Danno. — Reparo a carinha de preocupação se formar no rosto de Grace. — Porque eu sou muito bom em pensar no Danno. E você é muito boa com canecas de chocolate quente. O que me diz?
— Você vai provar meu chocolate quente especial com marshmallow!
— Essa é a minha garota!
Espero Grace sair da sala para me levantar e discar para Danny. O telefone chama e a cada toque sinto algo diferente. Mais ou menos como ansiedade, esperança, euforia, medo e aflição. Caixa Postal. Frustração. Toco o vidro da janela e estreito os olhos, quero acreditar que se eu olhar com cuidado, Danny vai surgir de qualquer esquina e correr até os meus braços.
Mas Danny ainda não está nos meus braços. Então ligo de novo. É quando percebo o Camaro brilhar como um abajur. Há uma luminosidade no veículo, que no escuro total da noite, faz o carro ascender como um vagalume no céu.
— Grace, já volto!
— Tudo bem, Tio Steve.
Me entrego a chuva, ainda procurando por um Danny determinado a fazer uma entrada triunfal de filme, e corro até o Camaro. Procuro pelo controle do Camaro, que carrego junto da chave do Silverado, mas ao testar a porta descubro que o carro estava destrancado. Um vazio se forma no meu estômago. Ligo para Danny. Ouço o buzzz do celular vibrando, e então a claridade surge no carro, encontro o celular caído embaixo do banco do motorista, e agora com a ajuda da luz percebo algo que termina de tirar minha paz. O porta luvas está aberto, e a arma que Danny costuma guardar ali, desapareceu.
Algo está errado. Acho que sei disso desde que cheguei. Danny não deixaria Grace sozinha em casa há pouco mais de uma hora pro meu casamento. Sinais que ignorei como uma dorzinha de cabeça fraca que você prefere esquecer. Mas Danny também não deixaria o carro destrancado e sairia armado e sem o celular.
Desbloqueio a tela do celular e encontro meia dúzia de chamadas perdidas do meu número e um envelope desenhado no topo com o nome Lola na frente. Não quero invadir a privacidade de Danny, já passamos por uma discussão sobre isso e eu não quero ter que explicar que ele demorou muito na sua caminhada suspeita e entrei em pânico. Por outro lado, que se dane. Eu não sei onde Danny está, e se essa invasão me ajudar a rastreá-lo, por mim tudo bem.
“Já acabou com o casamento? Não espere o “fale agora ou cale-se para sempre.”
O quê?!
Primeiro eu releio e tento me convencer de que ela queria perguntar se a cerimônia do casamento já havia chegado ao fim. Já acabou o casamento? Então percebo que não é nada disso mesmo. Lola está realmente perguntando se Danny arruinou o meu casamento, se interviu antes mesmo dele começar.
Por que Lola está perguntando se Danny acabou com o meu casamento? Danny queria acabar com meu casamento? Ele falou sobre o meu casamento com Lola?
Finalmente entendo o que levou Danny até minha garagem. Ele nunca esteve de acordo com meu casamento, e queria me dar mais uma chance de desistir daquela loucura. Mas Danny nunca passaria por cima de mim como um rolo compressor, por isso ele me disse que ficaria do meu lado, seja para a cerimônia ou para cancelar todos os convites. E ele esperou por mim. Por isso não conseguiu saltar do carro na primeira oportunidade. Mas eu não respondi.
Se eu tivesse dito naquele momento um simples eu te amo, quem sabe Danny não estaria tomando chocolate quente comigo e com Grace agora. Ou talvez tomando um banho de banheira com os sais da Mary. Mas eu não disse nada.
“fale agora ou cale-se para sempre”
Começo a pensar em Danny e entradas triunfais no meio do meu casamento. Penso tanto nisso que em algum momento passa a fazer muito sentido.
— Grace! Preciso que venha comigo até minha casa.
...
Deixei as chaves do Silverado sobre a escrivaninha de Danny, caso ele chegue em casa e não encontre sua filha, seu carro e seu celular. Mesmo aflito e coberto por um mal pressentimento que martela repetidas vezes em minha cabeça, sinto uma pontada de alento ao estar cercado pelos anéis do planeta Danny. Como se ele ainda estivesse comigo, talvez em pensamento ou algo ainda mais profundo, como numa união psíquica de mentes a fim de se comunicarem.
Meu celular chama. Catherine.
É uma péssima hora, recuso a chamada. Ela insiste. Recuso três vezes.
Quando freio o Camaro na porta de casa, percebo imediatamente que minha porta não está apenas aberta, como foi escancarada. Ouço os latidos de Eddie, ele surge pela entrada e em segundos já está na porta do carro, me alertando.
— Aconteceu alguma coisa com o meu pai, não foi? — Grace sussurra.
Conheço o princípio de não querer escutar o som da própria voz, porque quando você fala sobre aquilo em voz alta, meio que se torna mais real.
— Eu não sei, mas vou descobrir. Preciso que faça um favor pra mim.
— Qualquer coisa.
Grace me lembra tanto Danny. Está com medo, mas pronta pro que for.
— Preciso que fique no carro. É mais seguro. E ligue pro Chin, diga que preciso de todos eles aqui.
— Tá bem.
Entrego meu celular a ela. Sinto seus dedos gelados de preocupação.
— Hey! Eu volto em um minuto.
— Eu sei que volta.
Me viro de costas. Penso em pegar as chaves da ignição, só por garantia. De que Grace não vai esbarrar nela e tirar o carro da pista sem querer.
— Sabe que eu não sou mais um bebê, não sabe?
Ainda acho que Grace aprendeu a ler meus pensamentos.
— Você sempre vai ser um bebê. — Beijo sua testa e pego as chaves.
...
A porta não foi verdadeiramente arrombada, quem passou por ela tinha as chaves, só não se importou em ser discreto quanto a invasão. A casa foi revirada, não são apenas os papéis da escrivaninha que estão no chão, mas a mesa de centro foi jogada e deixada de pernas pro ar, as gavetas estão remexidas e os quadros das paredes foram arremessados. Se pudessem teriam virado a casa para baixo e sacudido como um cofrinho de criança.
Não tenho colete, pente extra e muito menos cobertura, mas também não tenho tempo. Com as costas calçadas pela parede, vou verificando cômodo por cômodo com minha arma na mão, não há ninguém. Eddie puxa a barra da minha calça e me guia até a entrada da garagem. Penso em Danny. Ele vai estar ali. Talvez tenha surtado pelo simples e unanime fato de que sou um idiota, ele tem a chave, veio até aqui e destruiu minha casa, eu merecia isso. Então caiu bêbado, mas vivo e seguro na minha garagem. Mistério resolvido.
Mas eu não podia mentir pra mim mesmo por muito tempo, girei o corpo e entrei. Ouvi os gruídos, alguém estava caído, sentado com as costas contra uma das pernas da mesa de madeira, amarrado por cordas e com uma fita na boca.
— Clare?!
Seus olhos se arregalaram me pedindo socorro, ela só podia grunhir. Corri até ela, arranquei a fita de sua boca e logo em seguida cortei a corda.
— Graças a Deus... — Ela se jogou contra meu ombro chorando.
— Vou te tirar daqui.
Deixei Clare na poltrona da sala. Precisava saber o que estava acontecendo, mas não conseguia me desprender do desespero que Grace devia estar sentindo no carro. Fui buscá-la. Voltei e deixei Grace enrolada com Eddie no outro sofá.
— O que aconteceu? Quem fez isso com você? — Diminui o tom de voz. Não queria que Grace visse ou ouvisse aquilo, mas não podia ficar longe dela.
— Era um carro preto. Chegaram logo depois que você saiu. Quando vi o carro estacionando, pensei que fossem os primeiros convidados pro casamento... fui até lá, não sabia o que dizer, mas pensei em falar pra voltarem mais tarde um pouco... devido ao jeito que você saiu... Enfim, dois homens armados desceram do banco de trás, um deles... apontou a arma pra mim e me trouxe aqui pra dentro, o outro... tinha aquele cara loiro como refém...
— O meu pai? — Grace olha pra Clare, e depois pra mim.
Me sento no sofá ao lado de Grace e seguro sua mão.
— Clare, o mesmo cara que veio aqui mais cedo?
A forma como Clare olha para Grace, com medo de assustá-la ainda mais, já responde tudo. Era Danny. Alguém pegou Danny, provavelmente quando ele chegou em casa, o jogaram no tal carro preto, trouxeram ele até aqui, usaram sua chave e reviraram a casa, procurando por alguma coisa.
— Sim... — Disse Clare.
Grace recorreu a mim com os olhos.
— Mas ele está bem. — Clare se apressou em completar. — Eles o algemaram e estão com ele, mas ele estava bem.
— Amor, eu sei. — Seguro Grace pelo rosto. Preciso que ela confie em mim. — Eu prometo pra você que vou trazer o Danno pra casa. Tá bom?
— Uhum. — Ela deixa o rosto recostar em meu peito e me abraça com força. Grace realmente confia em mim. E eu a abraço de volta, porque nesse momento, preciso do colo daquela garotinha que me dá forças sem saber disso.
Sou trazido de volta a realidade pelo ronco do Mustang e os passos de Chin, Kono, Adam e Abby , que passam pela porta aberta cientes de que algo ruim aconteceu. Lou chega logo em seguida e diz a Grace que tem uma surpresa para ela.
— Cuida bem da minha garota. — Peço a Will. — E Grace, assim que eu tiver com o seu pai, vou ligar pra você. Okay?
— Tá bom. Diz pro Danno que eu amo ele.
— O Danno também te ama muito. — Respondo.
Will bate continência e a leva até o carro de Lou. Espero o carro sair.
— Estão com o Danny. Pegaram ele e trouxeram ele pra cá quando eu não estava. A Clare estava aqui trabalhando na ornamentação, prenderam ela na garagem. — Tento atualizá-los com minhas sinapses nada esclarecedoras.
— Faz ideia do que estavam procurando? — Pergunta Adam.
— Não. — Digo, enquanto esfrego o rosto nas mãos trêmulas.
— Clare, acha que consegue fazer um retrato falado de quem esteve aqui? — Pergunta Abby.
— Sim, mas não vai ser preciso. — Ela responde. Todos a olhamos. — Tinha uma mulher também, junto dos homens armados. Não falei antes, porque percebi que assustei aquela garotinha...
— Que mulher? Você a conhece? — Pergunto e Clare assente.
— Foi ela quem me contratou. Sua noiva.
...
Tento por vezes ligar para Catherine, mas seu celular só cai na caixa postal. Todos estão me encarando como se eu fosse entrar em combustão a qualquer momento.
— Perai gente, eu sei que a Catherine... desculpa, Steve, mas ela não é a pessoa mais confiável do mundo. Mas daí a sequestrar e machucar o Danny?!
— Kono, não me peça desculpas. Se ela encostar um dedo no Danny, vou ser o primeiro a acabar com ela.
— Hey. Vai dar tudo certo, vamos trazer o Danny pra casa. — Diz Chin apertando meu ombro.
— Se lembra de alguma coisa que os invasores disseram? — Adam tenta arrancar alguma memória fragmentada de Clare.
— Foi tudo muito rápido. — Ela leva a mão a testa, está se esforçando. — Mas o cara loiro, acho que ele pensou que sabia onde estava o que procuravam. Ele falou alguma coisa sobre um cofre e acho que tinha uma senha...
Levanto tropeçando em minhas próprias pernas. O cofre. O cofre. O cofre.
Passo pelo relógio de parede, que deveria cobrir o cofre, jogado ao chão.
— Abriram ele. — Digo, encarando a fechadura pequena e destrancada, quase imperceptível no canto da parede.
— Acha que o que procuravam... estava aí? — Pergunta Lou.
— Não. Acho que Danny acabou de entregar os sequestradores pra gente.
Ninguém entende o que estou falando. Mas também não questionam. Kono traz o computador de dentro do carro, procuro no meu celular a mensagem que Danny me mandou no dia do meu aniversário e entrego os números à Kono.
...
— Então, Sr. McGarrett. Já está devidamente arrumado em seus trajes sociais? — Pergunta Danny pelo viva-voz do meu celular, tentando imitar a voz pomposa e cheia de sotaque de um mordomo chique.
— Por acaso, Sr. Williams. Nosso jantar vai ser na Casa Branca? — Respondo enquanto passo perfume e ajeito meu cabelo pela terceira vez.
— Quem sabe, não é mesmo? Quem sabe?
— Você sabe! Você fez a reserva.
— Um bom chefe, nunca revela suas receitas.
Reviro os olhos porque Danny adora fazer mistério sobre... tudo!
— Sabe que eu posso rastrear suas chamadas e descobrir isso em dois segundos, né?
— Sei sim. Mas aí você teria que jantar sozinho e é claro, pagar a conta.
— E como o aniversariante nunca pode pagar a conta, vou esperar por você.
— Não vou implicar com você hoje. Cortesia de aniversário.
— Estou tocado! E lindo. Você tinha razão sobre azul marinho ser a minha cor.
— É claro que eu tinha razão. Mas isso não faz de você menos metido.
— Hey, cadê a cortesia de aniversário?
— Ai, Steve. Você abusa da minha generosidade. E falando em generosidade, já abriu o velho cofre hoje?
— Não! Por que eu abriria aquele cofre velho?
— Porque eu sou uma pessoa generosa e criativa. E você tem muita sorte.
Largo mão do meu cabelo. Estou perfeito. Corro até o andar de baixo. Quando estou tentando colocar a combinação no cofre atrás do relógio, ouço o ronco suave do Camaro. Meu Deus, como eu amo o som daquele carro!
Coloco a senha no cofre velho, depois de refletir bastante até me lembrar qual é a senha. E fico me perguntando como Danny consegue pensar nessas coisas. Quando finalmente o abro, vejo apenas uma correntinha de metal com uma...
— Você me deu uma dogtag?! — Pergunto em alto e bom som, porque ele acabou de passar pela porta. — Sabe que eu tenho uma dessas de verdade, né?
Leio as inscrições na placa da frente. STEVE MCGARRETT.
— Generoso e criativo, eu disse. Leia a outra placa.
“Se encontrar esse homem perdido, ligue para Danny Williams” seguido por seu número de telefone.
— Você não fez isso!!! — Tento brigar com ele, mas é a coisa mais idiota e fofa que alguém já fez por mim. E eu acabo de me virar e ver Danny em uma camisa branca semi desabotoada e um terno cinza petróleo que me desarma totalmente.
— Pedi pra escreverem animal, mas acho que o cara estava chapado e colocou homem... é claro que ele não te conhece, então não podemos julgá-lo.
— Acho que deveria voltar pro carro e procurar sua cortesia de aniversário!
— Ah, qual é? É um bom presente. Afinal, quantas vezes você já foi sequestrado ou já mexeram com sua cabeça? E se você perder a memória ou sei lá... for jogado pelado num canto deserto da ilha desacordado e...
— Hey, já chega de suposições trágicas. Não fale de coisas ruins no meu aniversário. Deveria estar dizendo como eu estou lindo, para pedir desculpas por sua grosseria.
— Eu... não vou dizer isso. Mas olha só, o real presente não era esse aí. — Danny aponta a dogtag. — Embora sei que você adorou. Tá vendo aquela coisinha preta no fundo do cofre?
— Alguma manchinha de mofo em especial?
— Não é mofo. Chega pra lá. — Danny se aperta comigo na frente do cofre. — Bem ali.
— Hunnn. O que é isso?
Ele aperta alguns botões no celular e me mostra a tela. Somos nós. Uma foto? Nós nos mexemos e finalmente entendo. É um vídeo em tempo real! Ah...
— Genial, não é?
— Botou uma câmera escondida no cofre velho?
— Não era essa a reação que eu esperava, mas sim. Agora podemos falar sobre como isso é genial? Quando mais alguém tentar matar você, vai poder barganhar e dizer “não faça isso, tenho algo super valioso no cofre”, quando na verdade, vai ter um vídeo caseiro do bandido. Eu vi isso num programa. Insônia, você sabe.
— É... — Coço o nariz. — Um pouco genial. Mas podemos parar de falar sobre pessoas tentando me matar? Eu tô tentando fazer aniversário aqui!
Danny me mostra as palmas da mão. Me pedindo para esperar. Eu acho.
Releio as placas da dogtag, ele tem razão. Eu adorei. A coloco em meu pescoço e escondo sob o terno, quando ouço os passos de Danny pela porta.
— Feliz aniversário! — Ele estende as palmas das mãos juntas, e sobre elas um embrulho vermelho com fita dourada e um laço extravagante.
— Obrigaaaado! Outro presente? Quantos você comprou?
— Ah, só esse. Os outros são apenas medidas de segurança implantadas no único dia em que você não vai espernear demais.
— Hun... tem certeza que esse aqui — reviro a caixinha — não é um pager de segurança onde aperto o botão vermelho e você é acionado imediatamente?!
— Abre. — Ele sorri. Um sorriso gigantesco e lindo. Eu obedeço.
— Não acredito que comprou... Danny! Isso aqui custa... um absurdo!
— Eu vi você namorando esse relógio na vitrine daquela joalheria. Fiz um favor pra vendedora que não aguentava mais limpar a sua baba nele...
— Nós estávamos lá por causa de um assalto. Eu não podia comprar um relógio!
— Mentira. Você nunca pagaria o valor desse relógio, num relógio. Coloca.
Troco meu relógio atual, que estava no meu punho, pelo novo.
— Eu adorei. Obrigado, de verdade. Por todas as coisas. Menos a dogtag.
— Ah fala sério, eu vi ela no seu pescoço.
Passamos pela porta da sala.
— É educação. Você me deu e eu estou sendo grato!
Danny abre a porta do carona.
— Aqui, Sr. McGarrett. Pode entrar. E sem reclamar.
Não consigo brigar com ele usando aquele sotaque ridículo. Obedeço. De novo.
— Posso saber onde vamos jantar, Sr. Williams?
— Você vai escolher.
— Como assim? Você não fez reserva?
— Fiz. Mas não vou falar em qual... ou quais. Agora você escolhe e tenho certeza que já vão estar nos esperando com uma champagne gelada na mesa.
— Você pensou em tudo mesmo? — Pergunto, meio impressionado demais.
— Eu disse. Sou generoso e criativo.
— E tá lindo... quer dizer, azul petróleo... é a sua cor.
— Você também tá lindo.
Nossa. Acho que isso é que chamam de climão.
— Tem certeza que não tem um GPS escondido nesse relógio?
— Quem sabe? Um mágico nunca revela seus truques.
— Tem razão. Eu tenho muita sorte mesmo.
Danny arranca o Camaro, mesmo sem saber pra onde.
...
— Genial... — Comenta Abby.
— É. — Concordo.
— E um tanto quanto romântico. — Acrescenta Kono.
Assinto com a cabeça. Sempre tive uma queda por aquele aniversário, os cuidados e medidas de segurança. Os ternos azuis e o jantar chique. A noite que parecia mais um encontro do que um aniversário. E Danny... sendo Danny.
— Devia ter dado uma dessas pra ele também... — Penso alto com a impressão de que meu rosto está sem expressão. Retiro a minha dogtag de dentro do terno e aperto em minha mão, sem coragem de encarar as placas.
Sinto alguém pressionar meu ombro, me transmitindo força. Eles não ficam repetindo mais que traremos Danny para casa, porque quanto mais falam, menos parece verdade. Não tenho vontade de ver quem é, mas acho que foi Abby. Ela e Kono ficam me cercando, enquanto os caras cochicham quando não estou olhando. Preocupações sobre Danny. Preocupações sobre Catherine.
— Entrei! — Kono ergue o corpo no sofá e se ajeita para ver as imagens. Me debruço em sua direção e sinto outras cabeças se acomodarem atrás de nós.
Kono tem acesso as imagens em tempo real, assim como Danny fez no outro dia. Ela digita o horário aproximado, pressiona Enter e sai deslizando por uma linha horizontal de tempo, até que a imagem gravada deixe de ser a escuridão do cofre.
Assim que a portinha de metal se abre, vejo dois rostos desconhecidos. Kono captura a tela imediatamente e já encaminha para que Jerry possa analisar. Os dois homens robustos percebem no mesmo momento que o cofre está vazio, e saem do campo de visão.
— Você tá se divertindo? — Um deles pergunta a alguém atrás de si.
— Não... eu disse que era só um palpite. — Ouço a voz de Danny, meu coração doe como se uma agulha acabasse de caminhar por dentro dele.
— Acho bom você começar a colaborar de verdade. — Diz a segunda voz.
— Eu posso incentivar ele a colaborar. — A primeira voz volta a falar.
— Não. — Diz a segunda voz. Acho que é quem manda. — Ela faz isso.
Danny olha de canto de olho pro cofre. Está calculando se está no X, no ponto certo onde poderemos vê-lo. E ele está. Alguém passa por trás dele. Usando tênis, jeans e camiseta. Ela para diante de Danny, e encara os homens próximos a câmera. Catherine. Nitidamente, Catherine, sem dúvida ou enganos é ela.
Ela não reclama. Olha para Danny com o olhar frio e o acerta no olho.
Me levanto e me afasto de todos. Mesmo diante da porta da cozinha, ainda consigo ouvir os sons de um punho fechado acertando o crânio de alguém, que resmunga de dor. Meu estômago revira, meus punhos estão cerrados, e meu corpo está fervendo, tenho a sensação de que posso realmente explodir. Preciso depositar a pressão que está fazendo meus dedos tremerem em algum lugar, preciso descarregar a eletricidade antes que ela frite de vez meu cérebro.
Só sinto mãos. Chin. Adam. Lou. Eles estão me cercando e me puxando para o chão. Minha visão está embaçada, lágrimas. Quando as tiro do caminho, vejo o buraco fundo na parede em minha frente, e meus punhos estão escoriados.
...
Clare rejeitou a ideia de chamarmos uma ambulância e foi para casa em seu carro, assim como havia chegado aqui. Eu a entendia. Tudo o que queria era que esse pesadelo chegasse ao fim, me sentir em casa, só que ela só dependia mesmo de ir pra casa, tomar um banho quente e sentir que acabou. Deixar para amanhã ter de lidar com um trauma que vai segui-la daqui para frente. Eu perdi minha capacidade de me sentir em casa por estar em casa, meu porto seguro, meu equilíbrio, minha paz e tranquilidade, tudo estava em Danny.
Ouvimos o trinco da sala tremular. Nos levantamos todos de prontidão, com armas empunhadas na direção da porta.
— Wow! Calma, somos nós! — Disse Tani.
— O que tá acontecendo aqui? — Perguntou Junior nos avaliando.
Eles estavam vestidos a rigor. Vinham para o casamento.
— Alguém avisou o Eric? — Pergunto com a cabeça doendo forte.
— Pedi a Max e Noelani que fossem pra minha casa, dar suporte a Will e Grace. E Noelani estava com Eric. Ela já conversou com ele. — Diz Lou.
— Avisou sobre o quê? — Perguntou Tani.
Enfiei o rosto entre as mãos e fui até a cozinha. Não aguentaria ter que ouvir novamente a história sobre como Danny foi levado e torturado e agora estava desparecido e nem ao menos tínhamos certeza sobre ele estar vivo. Além, é claro, do envolvimento direto da minha ex-noiva na narrativa completa.
...
— Consegui!
Foi ao som da voz de Jerry que todos encaramos o computador sobre a mesa e ficamos imóveis e mudos, esperando pelas informações que ele encontrou.
— Rápido, Jerry. — O apressei.
— Ronnie e Sawyer Sanchez. São uma espécie de gêmeos do mau que fugiram de Halawa há três meses.
Três meses. Por volta de quando Catherine voltou para a ilha. Penso.
— Fugiram de Halawa?! — Pergunta Chin, intrigado. Afinal, não é qualquer um que foge de uma prisão como Halawa.
— A suspeita é de que foi um trabalho interno, mas é claro que o policial que alegou essa versão... sumiu dias depois. A ficha deles é extensa, são capangas. Capangas do mais alto escalão.
— Me lembro desse caso. Não encontraram vestígios sobre o policial. —Completou Abby, me deixando ainda mais apreensivo. — Desculpa, Steve.
— Jerry, encaminha pra gente cada caso em que o nome Sanchez apareça. Precisamos filtrar e encontrar algum padrão, um nome que se repita e que seja poderoso o suficiente pra invadir a casa de um SEAL e sequestrar um policial, com a ajuda de uma agente da CIA. Não estamos falando de algum traficante local, tem alguém poderoso e sem escrúpulos que quer muito alguma coisa e acha que está comigo. Precisamos de um nome.
— Dominic Ross. — A voz de Catherine se faz presente pela porta da frente. Ela entra em passos cautelosos e com os braços erguidos. Minha arma não se importa, é engatilhada e apontada para ela. — Agente Especial Dominic Ross.
— Steve, se acalma. — Diz Chin no meu encalço.
— Cadê o Danny? — Caminho na direção dela, que continua calada. — Eu perguntei onde está o Danny? Vai me responder ou precisa de um incentivo?
Catherine abaixa a cabeça. Percebe que sabemos mais do que ela imaginou.
— Eu não sei... eu vou contar tudo o que sei, mas não sei onde está o Danny.
Kono aponta a poltrona e mantem a mão, precavida, em seu coldre.
— Senta aí.
— E começa a falar. — Digo, a arma ainda empunhada em sua direção.
— Não precisamos disso, Steve. Você me conhece. — Ela olha as cortinas de seda branca que Clare colocou na sala e as flores e velas caídas pela casa.
— Não! Eu não conheço você. E foi você quem decidiu que precisamos disso.
...
— Dominic Ross se tornou meu superior na agência há três anos. O sistema é hierárquico e claro, ele manda, eu obedeço. Mas, ano passado quando você me chamou... quando Joe morreu, e eu fiquei sabendo que a Greer estava comprometida, juntei algumas peças. Dominic estava na lista dos contatos dela.
— E assim você descobriu que ele era corrupto? — Perguntou Chin.
— Sim. Dominic queria que eu a matasse, e deixasse o caminho livre pra ele. Eu me neguei, e ele me ameaçou. Disse que se ele caísse, me levaria junto alegando que fui sua cúmplice. Ele tem muitos contatos, é poderoso. Confesso que fiquei apavorada, mas disse não. Então Hassan a entregou e quando ela apontou a arma pra você, Steve... pareceu a coisa certa a se fazer.
— Sempre achei que você tinha atirado com pressa demais. Agora eu entendo porquê. Não foi por mim, nem pelo Joe. Você estava se protegendo.
Catherine suspira.
— Com a Greer fora do caminho, Dominic assumiu o lugar dela. Ele acreditava que podia confiar em mim, acreditava que eu tinha matado ela por causa dele. Então, ele passou a me deixar em paz, só me procurava quando não tinha outra opção. Mas Dominic é prepotente e deixou uma trilha de erros pelo caminho, erros que alguém cataria. Começaram a suspeitar dele há uns meses. E ele se lembrou de Shelburne. Quem melhor que sua mãe para conseguir fugir quando todos estão te procurando? Ele descobriu que a Dóris juntou uma espécie de dossiê com informações sigilosas e valiosas. E ele acha que ela o deixou escondido aqui, nessa casa. Levou apenas minutos pra que ele se lembrasse que nós já tivemos um envolvimento no passado e por isso-
— Você voltou. Me procurou para conseguir passe livre na minha casa e encontrar o tal... dossiê. — Conclui.
— Esse era o plano do Dominic. Não o meu. Eu não queria mentir pra você. Eu enrolei Dominic por um tempo, dizendo que precisava fazer você confiar em mim de novo, se reconectar. E quando você... surgiu subitamente com a proposta de casamento, Dominic acreditou totalmente em mim, ficou aliviado, achou que a qualquer momento eu colocaria o dossiê nas mãos dele. Enquanto ele achasse que eu estava revirando sua casa, não ia me perturbar. Mas você sabe que eu quase não ficava por aqui. Eu dizia pra Dominic que estava aqui, e dizia pra você que estava em missão, quando eu estava num quarto de hotel próximo. Estava montando meu próprio dossiê, contra Dominic. Ele estava longe, não teria como saber...
— Se ele confiava em você, pra que soltou os irmãos Sanchez da cadeia? — Perguntou Kono.
— Subestimei a confiança de Dominic. Eu não sabia dos irmãos Sanchez, mas parece que tirar alguém da cadeia é uma boa forma de conseguir lealdade.
— Por aqui a gente consegue lealdade de outras maneiras. Mas me diz, descobriram sua pesquisa. Por isso veio procurar o dossiê hoje de manhã? — Me lembrei de Catherine fingindo estar vestida de noiva.
Ela assentiu.
— Os irmãos Sanchez invadiram meu quarto de hotel essa noite, destruíram tudo e colocaram uma arma na minha cabeça. Eu os convenci a me darem algumas horas, um ultimato até a hora do casamento. Porque não acreditavam que... o casamento fosse de fato acontecer.
— Por que eles acreditaram que- —Interrompo minha própria pergunta porque acho que sei a resposta.
— Dominic planejava me sequestrar, caso eu não encontrasse o dossiê, e tentar negociar com minha vida. Mas os irmãos Sanchez vão até o fim, seguiram você também. E te viram com o Danny... perceberam que se queriam te atingir, não seria usando a mim, mas usando ele.
Coloquei Danny em risco. A informação caiu sobre mim como uma bigorna.
— Se não tinha nada, como veio parar aqui com os Sanchez e o Danny?
— Vi que estavam seguindo o Danny depois que ele veio aqui mais cedo. Eu não podia soltá-lo, mas queria diminuir o estrago que eu ajudei a causar. Por isso, fingi que queria me vingar do Danny por ele estar... tendo um caso com meu noivo. Eu precisava me aproximar de alguma maneira, e foi assim que me deixaram participar. Me fizeram bater no Danny pra testar meu argumento. E enquanto reviravam sua casa, deixei meu celular acidentalmente cair no bolso do Danny. Pra que pudéssemos rastreá-lo depois.
— Jerry!
— Já estou tentando.
— Danny fingiu que sabia desse dossiê e ficou ganhando tempo, levando os Sanchez de um canto ao outro da casa. Quando desistiram de procurar, colocaram o Danny no carro, imaginei que pra levar até Dominic, mas não me deixaram ir junto, tentei seguir o carro, me descobriram, trocamos tiros e eu acabei sem meu carro. Por isso demorei pra chegar até aqui.
— O celular está desligado. Sinto muito, Steve... — Diz Jerry.
Afundo o rosto entre as mãos.
— Se tudo o que está dizendo é verdade, por que eu não recebi nenhuma ligação de resgate pela vida do Danny?
— Sinceramente, eu não sei. Mas tenho um palpite. Acho que Danny está tentando te proteger.
— Me proteger? Como ele faria isso estando sob custódia, amarrado e todo machucado?
— Ele sabe que você não faz ideia da existência desse dossiê, e sabe que você não tem contato com a Dóris. Então, está tentando ganhar tempo, provavelmente fingindo que o dossiê está em outro lugar, como fez aqui.
— Se tiver razão, quando descobrirem que ele não sabe do dossiê... vão matá-lo... Danny não faria isso pra me proteger, deixar que o matassem?!
Todos se olham e ninguém diz absolutamente nada.
— Você não está em posição de julgá-lo, Steve. Ia se casar com uma mulher que não ama, só pra protegê-lo das ameaças da ex-mulher. São iguaizinhos. — Diz Catherine, soltando mais uma informação privilegiada ao vento e me deixando confuso sobre como ela sabe disso. Mas é claro que ela sabe disso, ela teve acesso aos irmãos Sanchez que devem saber mais sobre mim que eu mesmo.
...
Kono e Jerry procuram por pistas que nos levem a Dominic Ross. Os outros conversam na sala de casa e repassam a história de Catherine, vez ou outra fazendo uma nova pergunta e verificando se ela mantêm sua versão.
— Não era um caso. — Digo. Ciente de que não devo mais explicações à Catherine e ciente de que todos os meus amigos podem me ouvir. — Sei que você disse isso pros irmãos Sanchez, e sinceramente, não me importo com o que você pensa sobre mim, mas Danny... ele nunca foi um caso na minha vida.
Me levanto e traço uma trajetória até a cozinha, mas algo me faz parar.
— Mas... você o ama, certo? — Catherine subitamente, pergunta.
Gosto de pensar que caminho até a cozinha, mas o termo correto é fujo. Ouço Kono dizendo para Catherine me deixar em paz. E não sei porque, mas eu sinto que preciso voltar até lá.
— Eu o amo. E não somos iguaizinhos. Ele tá lá fora se sacrificando por mim, e eu... eu desisti do casamento, te deixei uma mensagem na caixa postal porque seu celular não chamava e fui até a casa de Danny pronto pra me declarar, mesmo sem saber o que fazer com as chantagens da Rachel...
— Que mensagem? Eu não recebi nenhuma mensagem...
— Não? Você até me ligou de volta, umas três vezes quando... — No rosto confuso de Catherine, percebo o tamanho do erro que cometi. — Foi você, não foi? Você me ligou as três vezes que recusei a chamada, não ligou...
Catherine apenas balança a cabeça em negativa.
— O celular já não estava com você... era Danny.
Senti a pressão incisiva da gravidade em minha cabeça, senti meu corpo fraco, senti o chão me requisitando depressa. Danny havia tentado falar comigo, e eu havia deliberadamente recusado as chamadas uma a uma.
Era tudo culpa minha. Desde tê-lo exposto até tê-lo abandonado.
— Comandante? — Ouço a voz de Jerry, ele parece intimidado. Acho que conseguiu sentir meu desespero do outro lado da linha. — Posso ter uma ideia.
Sua voz me traz de volta à realidade. Tiro meus joelhos do chão, limpo os olhos nas palmas das mãos e deixo a sensação de esperança me recuperar.
— É tudo o que precisamos, Jerry.
— Tentei rastrear o celular e não consegui porque ele está desligado. Mas se Danny ligou pra você, é possível descobrir de onde ele fez essa ligação. O que pode nos levar até ele.... caso ele não tenha sido locomovido, é claro.
— Como? — Pergunta Kono.
— A pergunta certa não é como?  mas quem? Eu não consigo entrar num sistema tão complicado sem um mandado, mas tem hackers por ai que podem. Ou... podemos tentar conseguir um mandado, o que vai levar algum tempo.
— Não temos tempo pra mandado. — Digo.
— Eu conheço um hacker que vai adorar ajudar. — Diz Lou.
— Eu vou com você.
— Fica, Steve. Danny pode tentar entrar em contato de novo. Levo Tani e Junior, eles vão adorar reencontrar o idiota do Wright.
— Lou? — O chamo. — Não hesite em ser persuasivo.
— Confie em mim. Estou levando a persuasão comigo. — Ele sacode o punho direito.
O carro de Tani arranca depressa com ela, Junior e Lou do lado de dentro.
— Eu confio no Lou, mas não vou ficar de braço cruzado. Me fala tudo o que souber sobre esse dossiê. Se ele tiver nessa casa, vou encontrar.
— Posso fazer melhor. Posso conseguir o contato direto da fonte.
Encaro Catherine com a expressão de incompreensão tomando conta do meu rosto. Meus braços se abrem e cuspo as palavras na cara dela.
— Se pode falar com a Dóris, por que não fez isso há três meses?!!!
— Eu disse que posso conseguir o contato. Mas ela nunca vai fazer isso por mim. Agora se o filho dela pedir, então será uma outra história.
Entrego meu celular para Catherine.
— Consiga o contato.
...
— Oi Tani. Estamos precisando de boas notícias por aqui. — Diz Kono colocando seu telefone no viva voz.
— Wright é um mal caráter, mas um mal caráter rápido. Tô encaminhando a pra vocês e pro Jerry a área de cobertura das últimas ligações do celular da Catherine.
— Recebi. — Kono amplia o mapa com um círculo vermelho claro segmentando uma zona ainda muito grande.
— A área é grande demais. Wright, você pode fazer melhor do que isso.
— Bom ouvir sua voz, Comandante. Onde está o Raio de Sol? — Responde Aaron Wright, como sempre, incapaz de perder uma chance de ser irritante.
— Você vai precisar de mais persuasão?! — Ameaça Lou.
— Okay, vamos mais fundo com isso. — Ouço o estalar dos dedos dele sobre o teclado do computador. — Okay, vocês vão gostar disso. O número que me deram fez três ligações para o McGarrett nas últimas horas, mas cada uma delas obteve sinal por uma ERB diferente.
— O que na minha língua significa que... — Pergunta Lou.
— Que ele estava se movimentando. — Responde Jerry na outra linha.
— Jerry, preciso que calcule a distância que ele precisaria percorrer entre cada torre para que o sinal se comportasse dessa maneira.
— Okay... — Posso ouvir Jerry balbuciar alguns números e grunhir palavras incompreensíveis, enquanto uma faísca de esperança cresce em mim. — É rápido demais, ele tem que estar sendo levado dentro de um veículo.
— Agora seleciona as estradas que permitem essa rota dentro desse limite de tempo.
— Isso é que eu chamo de filtrar. Receberam?
— Sim. — Respondeu Kono. — E agora, chefe?
— Catherine, qual o modelo do carro que os Sanchez usavam?
— Uma SUV. Era um... Blazer escuro, acho que preto.
— Jerry, precisamos das imagens de satélite do momento das ligações.
— Já estou trabalhando nisso... Encontrei uma, duas e três SUVs pretas.
— Catherine trocou tiros com eles. Procure pelo mais danificado!
— Olhem o computador. Agora!
Recebemos a captura de tela de uma SUV preta que se parece bastante com o modelo que Catherine indicou, com algumas ranhuras ao lado que podem ser buracos de bala e... a lanterna traseira arrancada.
— É esse. — Digo, sentindo um sobressalto no peito. — É exatamente a mesmo farol que eu disse pra Mary arrancar quando ela foi levada num porta-malas. Danny sabe que eu o identificaria. É ele...
— O carro veio pela 6ª avenida e entrou na Avenida Kalakaua seguindo o litoral, mas depois disso a área é muito densa e... eu o perdi...
— Continua procurando. — Fico encarando aquela imagem, esperando encontrar um sinal escondido em cada pústula embaçada na imagem do carro.
Fala comigo, Danny... pra onde você iria... pra onde atrairia esses caras...
Mas ao invés de uma resposta do cosmos, o que ouço é meu celular tocar.
— É a Dóris? — Pergunto, já correndo até Catherine. Ela estende o aparelho pra mim, onde leio no centro da tela:
“Catherine” entre os botões de aceitar e rejeitar.
Meu coração bate em fusa constante, tão rápido que é como se tivesse apenas parado. Apanho o celular e na mesma fração de segundos, aceito a ligação.
— Jerry, rápido. — Kono chama por Jerry, e essa é a última coisa que ouço antes de mergulhar naquela ligação.
— Danny? — Pergunto já apavorado por não ouvir a voz dele do outro lado. — Sou eu... fala comigo. Você tá bem? Onde está? Eu vou te encontrar...
Ouço um gruindo do outro lado da linha. Não preciso de mais nada pra saber que é Danny e que ele está amordaçado. A imagem que perpassa pela minha cabeça me dá calafrios, mas não tenho tempo para calafrios. O sinal começa a enfraquecer, sei disso porque a ligação falha, mas assim que se estabiliza, tudo o que ouço são batidas sutis desenhadas no ar.
— Interferência? — Alguém na sala pergunta.
— Pshiu! — Estendo meu indicador e peço por silêncio total.
As batidas param. E então começam novamente. E param. E recomeçam. Os intervalos não são simétricos, mas há alguma métrica. Sei que há significado.
E quando Jerry está há um passo de conseguir a localização, a ligação cai.
— Maldição! — Ele resmunga. — Isso foi o que eu pensei que foi?
— Daqui eu só ouvi o carro tremular.
— Acho que Danny não pudesse falar.
— E estivesse tentando manter o sinal para que o achássemos.
Me abstraio para dentro do meu cérebro. Uma lembrança antiga.
“Eu não acredito que o meu irmão é membro da maior força tarefa do Hawaii!”
“É, Matt, eu não quero deixar ele metido, mas o Danno é o melhor por aqui.”
“Depois de você. Caramba, você esteve em combate. É um fuzileiro! Você é uma lenda, McGarrett. Não acredito que vocês dois... são melhores amigos agora!”
“Matt Williams, se comporte.”
“Deixa comigo, irmão. Mas primeiro, eu quero saber uma coisa.”
“Se você pagar a cerveja, conto qualquer coisa.”
“Steven. Se comporta você também. E Matt, pensa bem no que vai perguntar. O McGarrett é cheio de histórias... como você adora chamar? Ah, confidenciais!”
“Código morse. Você vai me ensinar, Mc- Steven. É assim que meu irmão te chama, não é?”
“Geralmente ele me chama de Louco ou Animal, mas está tentando ser civilizado. E código morse? Isso não é algo que eu consiga te ensinar em uma noite.”
“Vamos ter tempo. Não é, irmãozinho? Acho que o Steve já é... como vocês dizem por aqui?”
“Eles dizem... Ohana.”
“Ohana... eu gostei disso. Vamos lá, me ensina só três letras: M A e T.”
— Steve? Steve, o que você acha?
Aperto os olhos e estou de volta na sala de casa.
— Gravaram a ligação?
— Aqui. — Kono dá o comando para que a ligação possa ser reproduzida.
Bato o nó dos dedos contra a madeira da mesinha de centro.
M. Intervalo. A. Intervalo. T. Intervalo. T. Intervalo. Minhas batidas saem idênticas às de Danny.
— Isso é código morse? — Jerry pergunta.
— Acho que sim. — Kono responde.
— Steve, Danny sabe código morse? — Catherine pergunta.
— Matt... — Penso em voz alta. — Matt...
— Steve? — Chin aparece diante de mim com a feição preocupada.
— Sim. É código morse. E não, Danny não sabe código morse. Mas ele memorizou uma única palavra, e sei onde ela vai nos levar.
O telefone volta a chamar. Número desconhecido.
— Danny? — Atendo.
“Não precisa dizer nada.” Diz a voz do outro lado.
É Shelburne ou Dóris. Como preferir.
“Lembra aquela vez em que você era criança e derramou refrigerante no tapete caro da cozinha, e eu fiquei muito, muito brava mesmo. Só... liguei porque me lembrei desse dia, acho que sonhei com isso noite passada. Desculpa, tenho que ir, filho.”
Ela desligou.
— Isso foi sua mãe? — Chin pergunta, confuso.
— Sim e eu detestava refrigerante quando era criança...
Corro até a cozinha e arranco o tapete velho do chão. Pego uma faca e começo a forçar o assoalho. Tábua por tábua. Até que uma saia do lugar.


CONTINUA

mas o gosto da sua boca ...Where stories live. Discover now