'umi kumalua

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— Grace. Charlie. — Steve tentou. Os olhos analisando Grace de cenho franzido na imagem ampliada da tela do laptop sobre a mesinha de centro e Charlie, enrolado na poltrona com a pelúcia de um tiranossauro verde que ele gostava de abraçar.
— São nomes lindos, não são? — Sorri meio apavorado. — Conta logo.
— Contar o quê? — Perguntou Charlie, coçando os olhos mal acordados.
— Ah não! Não me digam que vocês desistiram da cerimônia do casam-
— Grace. — Levanto as duas mãos, rendido como um bandido. — Não!
— Oh, que alívio. Eu pesquisei muito sobre decoração de casamento, foram cinquenta minutos investidos em DIY de centro de mesa rústico, guirlanda de flores brancas, bandeirolas com pisca-pisca de LED...
— Eu deveria saber o que é DIY? — Tento perguntar, mas a voz de Steve sobressai a minha em volume e empolgação.
— Guirlanda de flores?! É uma ideia incrível! Vamos usar tulipas! 
Steve espalmou as mãos, o tronco sublevando por puro entusiasmo, como se seu time do coração acabasse de marcar o gol que garantisse a taça.
— Amor... — Sibilo.
Ele sente o tom ameaçador em minha voz e se senta com prudência.
— Bom, voltando ao ponto que nos levou a reunir todos vocês aqui hoje...
Steve se põe a falar como se fosse o anfitrião de uma reunião do congresso.
— Estamos grávidos.
— Danny!
— Desculpa. Quando você contasse, o bebê já estaria na faculdade!
— VOCÊS O QUÊ?! — Gritou Grace dando um salto na cama da universidade e acho que acordando sua colega de quarto e melhor amiga, Sam. — Desculpa Sam. Está tudo bem. Feche os olhos e volte a dormir.
— São seus pais???
Qualquer pessoa com cordas vocais funcionais conseguiria sussurrar, exceto por Samantha. De ombros largos, cachos ruivos espaçados caídos sobre eles e um vestuário anos 80, Samantha caiu no chão atrás de Grace.
— Sam? — Perguntou Grace, mas acho que a amiga estava acostumada a aquelas quedas. — Adivinha? Eles vão ter um bebê!
— Puta merda!
Esqueci de mencionar que o vocabulário de Sam era vasto, mas muitas vezes, ela usava palavrões como se fossem vírgulas e logo se lembrava que éramos país e que sermos gays não nos tornava liberais a esse nível.
— Eu sei! — Respondeu Grace. — Mas meu irmão também está aqui.
— De nove anos, Sam! — Steve completa. — Nove anos...
— Desculpa, Papais! — Comentou Sam, se encolhendo no canto da tela.
— Dessa vez passa, Sam. — Respondi fingindo estar bravo.
— Vocês terão um irmãozinho ou irmãzinha! Isso não é demais?!! — Perguntou Steve.
Grace estrangulava os dez dedos das mãos em torno da boca, controlando o gritinho agudo e eufórico que saiu como um miado retorcido e fez seus ombros se contraírem. Já Charlie não parecia nenhum pouco empolgado.
— Não estamos grávidos de verdade, filho. Quer dizer, esse bebê não vai... sair de dentro de mim! — Soltei uma risada infeliz.
— O que o Danno está tentando dizer é que... vamos adotar um bebê! — Steve sorriu de olho em Charlie, com um tom de quem esperava por uma reação efusiva, que não veio.
— Charlie... — Rejeitei todas as perguntas que passaram pela minha cabeça, não queria dar a Charlie a chance fácil de dizer o óbvio, ele não estava feliz com aquela ideia. — Tudo bem?
Charlie cruzou os braços em torno do pescoço do tiranossauro e ajeitou a coluna, os lábios apertados e os olhos pensativos.
— Sim... — Ele respondeu. Eu e Steve soltamos uma tonelada de ar.
— Mas por quê? Por que vocês querem um bebê?
Steve me olhou com os olhos amendoados.
— Filho, eu e o Steve... a gente se ama muito e tem o desejo de ter uma... família grande. Como a casa da vovó e o vovô...
Por alguma razão, não consegui pensar em mais nada que não fosse Bridget trancada no banheiro há meia hora se arrumando para a escola, enquanto Stella berrava na porta dizendo que fez os cálculos e para uma família daquele tamanho, dez minutos era o limite tolerável de tempo para que um membro monopolizasse o banheiro. Enquanto isso, Matt tentava atritar a ponta metálica de um termômetro para simular febre e cabular aula.
— Mas é muito importante pra gente que você esteja feliz com isso, Campeão... 
— Uhun. — Charlie se encolheu sobre o dinossauro. — Tá legal...
Ele se levantou cabisbaixo e saiu arrastando o dinossauro escada acima. 
— Eu vou. — Steve se prontificou.
— Ele está chateado, prefiro que seja cruel comigo. — Respondo.
— Hey! Deem um tempo pro Charlie, ele vai entender. — Disse Grace.
Steve colocou a mão em minha perna, concordando com Grace.
— E como a senhora sabe disso? — Perguntei, entrelaçando meus dedos ao redor dos ombros de Steve, que estava nitidamente péssimo com a recusa de Charlie sobre nosso futuro bebê, mas retribuiu me abraçando pela cintura. Ouvi o suspiro fantasioso de Sam deitando o rosto no ombro de Grace, ao menor sinal de demonstração de afeto entre mim e Steve, ela franzia o cenho e quase dava para ver os coraçõezinhos saltados em seus olhos.
— Bom, eu sei porque sou a irmã mais velha. É assim, primeiro ele vai sentir que está sendo substituído, que cresceu e deixou de ser fofo e desengonçado e por isso vocês querem tanto uma criaturinha menor ainda. Mas uma hora ele vai entender que é legal estar hierarquicamente acima de alguém da família.
— Você não existe! — Disse Steve, sorrindo finalmente. 
— Já que estão nessa vibe família grande, podem pensar em me adotar também?
...
A convivência com Charlie beirava ao normal, mas não conseguíamos tocar no assunto do bebê que estava a caminho, o que era péssimo porque em algum momento, isso precisava acontecer. Passei o domingo jogando videogame com Charlie, o deixamos escolher o filme a noite e repetir a taça de sorvete, enquanto Steve parecia se dedicar cada segundo mais às conversas extensas com Grace no celular sobre os preparativos para o casamento.
Eu podia jurar que já fazia cerca de meia hora que estava ali me revirando de um lado para o outro na cama, ciente de que não conseguiria dormir sem Steve ao meu lado. Sua voz havia se tornado um zumbido constante, ora vindo de passos ziguezagueantes no corredor, ora do alto da escada ou do sofá da sala, onde eu apostava que ele devia estar fazendo carinho atrás da orelha de Eddie.
Por três vezes, Steve colocou a cabeça pela porta do quarto verificando se meus olhos continuavam alerta e me pedindo, com os dedos da mão bem espaçados para esperá-lo. Como se eu tivesse algum tipo de escolha.
Finalmente ouço ele desejar um boa noite de sono à Grace, ouço seus passos se aproximando pela escada e me viro contra a porta, porque não quero demonstrar que estou tão disponível como realmente estou. Percebo o click da porta sendo fechada, e vejo Steve invadir meu campo de visão, checar se estou acordado e se deitar ao meu lado, voltando sua atenção para um monte de retângulos coloridos em sua galeria virtual.
— Acordado, meu amor?
Ele pergunta, ainda sem perceber que não era exatamente por isso que eu o esperava.
— Acho que vou precisar do meu remédio para dormir.
— Você não usa remédio para dormir.
— Uso sim.
Ele finalmente se distrai do celular e percebe minha pretensão. Um sorrisinho fino toma conta do seu rosto e de forma mecânica, ele passa o braço sob meu pescoço, me aninhando em seu peitoral, onde me deito e faço carinho abaixo da sua camisa. Sinto seu corpo se retesar e logo em seguida se estirar, sua pele assume um aspecto áspero sob meus dedos. Ele me beija e suspira.
— Que bom que está acordado, Lindo.
— É? — Pergunto, mais manhoso do que havia planejado.
— É. — Ele me beija como se tivesse atrasado para o trabalho. — Queria sua opinião sobre a paleta de cores pra nossa decoração de casamento.
Se eu disser que sinto um balde de água fria em minha cabeça estaria sendo sutil, a impressão é de que pisei com força demais sobre um lago congelado e despedacei o gelo abaixo dos meus pés, caindo num mar abaixo de zero tão frio que faça meus ossos doerem.
— Paleta de cores? — Pergunto, sem camuflar minha decepção. A pior parte é que Steve está tão concentrado, que mal percebe meu ar de frustração.
— Grace gosta do Marsala, ousado sem ser brega, ela disse. — Ele me mostra uma imagem cheia de retângulos em diferentes tons de rosa. — Também tem esse Branco tradicional, que basicamente é... branco. Esse à base de Cores Quentes, tem o Lavanda, Arco-íris, e Tons Pastéis. O que acha?
— Hun... — Tomo o celular de sua mão, em parte porque quero que ele olhe para mim, e por outro lado, não consigo não corresponder aos seus olhinhos brilhando desse jeito. — Branco é elegante demais, Cores Quentes não, o Arco-íris parece que estamos gritando que somos gays, e o Marsala é muito rosa para nossos ternos azuis. Tons Pastéis é perfeito.
— Amor, você é muito bom com paletas de cores!
— Eu também sou bom com outros tipos de paletas...
— Qual tipo? Tecidos?
Vejo Steve deslizar o polegar sobre a tela, provavelmente repassando as imagens e somando-as a minha opinião. Meu pé cava um espaço entre a cama e sua panturrilha, só para ter o gostinho de garantir que ele sente quando deslizo minhas coxas abertas e espaçadas em torno das suas, estendo a coluna e levanto a barra inferior de sua camisa. Meus olhos topam com os sulcos talhados em seu abdômen e eu faço o que sempre me vem em mente quando o encontro vulnerável assim, beijo cada subdivisão de músculo e mordo superficialmente sua pele, ouvindo Steve arfar rouco.
— Ainda acha que é sobre tecidos? — Perguntei, desenterrando meu rosto da parte baixa da sua cintura.
— Oh! — Ele finalmente toma nota das minhas verdadeiras intenções. De forma urgente e estabanada, bloqueia o celular e o joga sobre a mesinha de cabeceira, as mãos caminham até meus ombros e ele me puxa para si.
— Ainda quer falar sobre o casamento? — Provoco contra sua boca.
— Agora não, mas quem sabe fazer planos sobre a nossa lua de mel?
Steve segura meu rosto pelas mãos e me olha meio encabulado, pouco antes de trazer minha boca pelo caminho da sua. Me sinto vitorioso.
— Planos do tipo... que tal você colocar a língua na minha boca agora?
— Você fica tão sexy quando quer fazer amor...
Ele sussurra em meu ouvido e beija meu pescoço. Tenho certeza que ele sente minha pele se arrepiando e minha coluna se contorcendo, porque ele desliza as mãos por minhas costas e segura firme em minha bunda enquanto traz a língua para entre meus lábios, exatamente como eu queria que fizesse. Seu toque molhado e morno é tão generoso que em poucos segundos o aperto em minha calça reclama e perco o pouco do pudor que eu ainda carregava, quando olho em seus olhos verdes e sinto sua língua correndo pela minha.
Steve já estava embriagado por aquele beijo, quando ouvimos batidas e a porta logo se abre num rangido vagaroso, que me faz cair na cama.
— Eu tive um pesadelo e não consigo dormir. — Diz Charlie, naquele tom atordoado de quem está assustado demais para ficar sozinho no escuro.
Ajeito o cabelo para trás e vejo Steve acomodar a camisa no corpo.
— Tudo bem agora, garotão. — Digo sentindo o choque térmico.
— Vou te contar uma história para dormir, Campeão. — Steve passa as pernas para fora da cama demoradamente, sei que está verificando se pode se levantar. Mas Charlie tem outros planos.
— Oba! — O garoto se joga na cama, entre nós dois, com um sorriso de orelha a orelha, que nos deixa sem condições de lhe dar uma negativa.
— Okay... — Steve cantarolou, voltando pé ante pé para a cama.
Charlie se enfiou abaixo do edredom com a pelúcia de dinossauro verde, da qual não queria se desfazer enquanto estivesse com intenção de dormir. Ele apoiou a cabeça em meu ombro e se enrolou no braço de Steve, o dinossauro sendo esquecido caído em sua barriga, ele esperava a história.
Steve rolou os olhos e estalou a boca, pigarreou e finalmente disse:
— Era uma vez... um cara chamado... Maverick.
Estreitei os olhos até ele, que continuou.
— Ele era o melhor piloto de caça de to-dos!
— Top Gun? É sério?!
— Danno! — Charlie veemente chamou minha atenção.
— É. Danno! Me deixei continuar.
— Okay, crianças. Maverick, vamos lá. — Suspirei, ajeitando meu cabelo bagunçado, o mais longe que cheguei do que realmente queria.
Steve continuou a história, editando boa parte do filme e excluindo as cenas para maiores de dezoito como se nunca tivessem existido. Charlie dormiu antes mesmo do fim, e eu em alguma parte logo depois disso.
...
Steve era o último a dormir, mas o primeiro a acordar. Quando eu despertava, a casa já tinha cheiro de café, por vezes já haviam ovos mexidos ou torradas em pratos a minha espera, Charlie já estava se aprontando para a escola e às vezes, Steve tinha cheiro de água salgada.
Aquela era uma manhã de panqueca de três andares com um rolinho de chantilly no topo e uma boa camada de calda caramelizada escorrendo pelo prato, além de Charlie fazendo perguntas sobre como pilotar aviões caça.
— Bom dia, garotos da minha vida! — Faço cafuné no cabelo de Charlie e Eddie fica de pé colocando as patas em minha camisa, faço carinho atrás de sua cabeça. — Desde quando você quer pilotar aviões?
— Eu quero pilotar como o Maverick! — Charlie faz o zunido de um avião planando no ar e simula que sua mão é uma aeronave.
— Pode fazer isso com um controle remoto na mão, sabia? — Digo, e ele enfia uma garfada de panqueca atolada em mel na boca. — É sua culpa. — Sibilo no ouvido de Steve que cruza as mãos em minhas costas contra a bancada, respira fundo fazendo uma trilha em meu pescoço e me beija.
— Bom dia, meu amor. Como você consegue já acordar lindo assim?
— Você está trocando o assunto.
— Quem? Eu? — Ele leva a mão ao peito, se fazendo de desentendido.
— Você mesmo, Maverick! — Passo os dedos por sua barba e os cruzo em seu pescoço. Ele me beija de boca aberta, percebo que ele tenta ser silencioso e tapar nossas bocas com seu corpo. — Eu te amo.
— Também te amo, meu Loirinho.
— Vou comer todas as panquecas! — Charlie cantarolou.
...
Toda parede guarda memórias e algumas também escondem segredos. Por baixo do gramado verdoso e bem tratado e dos muitos passos jovens que iam e vinham diariamente pela Universidade de Manoa, havia um longevo porão, resultado da construção velha que se tornou obsoleta com o tempo.
Eu ainda não havia entendido porquê o endereço daquele porão acabou num SMS no telefone de Steve, mas foi exatamente para onde nos encaminharam sob o sol ardente daquela manhã de doze de outubro.
Caminhando pelo corredor entre tantos armários idênticos percebo que quanto mais para dentro, menos pompa se vê. A tinta e o acabamento da entrada fizeram menos aniversários que as fechaduras internas. Se tratando do cômodo esquecido no subsolo é impossível não sentir que ele veio até nós caminhando de pé de 1950, a maçaneta branca e velha cuja tinta deteriorada escorrega pela minha mão, me fazendo bater os nós dos dedos na esquadria da porta e xingar baixinho um palavrão. Steve mal percebe, ficou para trás parado diante do que imagino ser uma sala dos professores, atendendo uma ligação.
— Tem que forçar para cima. — Tenho que grudar os ombros no corpo para não pular com a voz sorridente e feminina que surge do nada em meus ouvidos. — A porta. Não gire pra baixo, mas para cima. Ela sempre emperra. Bom dia.
A mulher se afasta tão silenciosa como havia surgido, em seu macacão surrado num azul blazer descorado como a velha maçaneta.
— Obrigado... — Respondo sem conseguir camuflar o tom seco.
...
— O que é isso? Uma venda de garagem? — Pergunto, desviando das estantes enferrujadas, abarrotadas de livros velhos com capas acinzentadas pela grossa cobertura de poeira e pelos potes de vidro de distintos formatos, com coisas nojentas dentro, cobertas por uma água esverdeada que devia estar ali há tempo demais.
— Temo desapontá-lo detetive Williams, mas isso é uma cena de crime. A propósito, uma venda de garagem é um evento comercial que acontece numa garagem, e não num porão ou qualquer outro cômodo.
— Bom dia, Max. Ignora ele, a noite dele não foi muito produtiva.
Steve intervém antes da minha réplica e acabo apenas revirando os olhos.
— Longe de mim ser indiscreto, mas o que diabos vocês fizeram a noite que não dormiram direito? — Perguntou Lou, surgindo como um vulto na beira da escada e se desentendendo com um fiapo de teia de aranha. — Esqueçam. Eu não quero ouvir a resposta.
Cravo os olhos em Steve, piscando mais do que o necessário, e o que recebo em troca é um sorriso esticado enquanto ele dá de ombros.
— Pra sua informação e para não gerar mal entendidos — Assinto para Steve para que ele capte minha mensagem. —, Charlie teve um pesadelo.
— Provavelmente com o nosso bebê. — Steve completa e suspira.
— Oh! — Lou sacode a cabeça para os lados. — A síndrome do caçula?!
— Se isso significa que ele não está feliz com a ideia de não ser mais o caçula. — Steve responde, olhando ao redor, talvez em busca do corpo.
— Samantha adorou quando soube que não seria mais a caçula. — Diz Lou.
— Ah, fala sério, senhor Família Perfeita. Qual o seu ingrediente secreto?
— Danny, meu caro, entenda. Ela adorou saber que teria uma irmãzinha. Ela até separou vestidos antigos, maquiagem e bonecas para repassar o legado.
— Mas o Will... não é uma menina. — Steve assume um tom confuso.
— Não me diga, McGarrett!
— E Samantha? Como reagiu ao saber que os vestidos não cairiam bem?
— Ela reagiu bem. Quer dizer, depois de jogar no lixo as roupas de bebê.
— Oh, Deus! — Respondeu Steve. — Vamos pôr as roupinhas num cofre.
— Max, se você está aqui não devia haver um cadáver ou algo do tipo?
— Perspicaz sua mudança de assunto, Detetive. De todo modo, é um questionamento pertinente. Fui chamado essa manhã, devido a meu relacionamento pessoal com o Reitor Douglas Campbell, cuja sala de química avançada já me foi muito útil antes da minha graduação.
— Entendi... Você tem amigos. Mas e aí? Viemos tomar um chá com ele?
— Não seja rabugento, Danno. O que houve por aqui, Max?
— Obrigado, Comandante. Respondendo a sua questão, o porão onde estamos serviu como depósito para um antigo professor e químico, desde seu desencargo, ninguém mais voltou até esse lugar, como podem perceber. Entretanto, a Universidade contratou recentemente um professor de teatro, que precisava de um espaço extra para organizar seu acervo pessoal de ornamentação de peças. Quando o professor veio até aqui na intenção de limpar e esvaziar, encontrou isso.
Max, que estava embrenhado na diagonal de um móvel de madeira velha, que claramente havia sido recentemente arrastado para longe da parede, se move de modo que nos dê visibilidade para o muro de concreto de pé atrás de si. Acima do nível de sua cabeça, há uma mancha arredondada da largura de um pires de chá, cheia de linhas finas do material espirrado por sua borda como pernas saindo do tronco peludo de uma aranha, e um único conglomerado desse líquido escuro deslizou pela parede se afunilando até a beira do rodapé.
— Algo me diz que isso não é suco de uva. — Lou ponderou, se aproximando da mancha de cor escura que parecia mesmo suco de uva.
— Bem observado, Capitão. Se fosse suco de uva, não haveria motivos para haver esses resíduos claros bem aqui. Isso, senhores, é massa encefálica.
Lou franziu o nariz, os lábios se ergueram desgostosos e ele se afastou.
— Então alguém estourou os miolos nessa parede. Cadê o corpo?
— Por isso vocês estão aqui, Detetives. Reitor Douglas Campbell.
O homem que me estendeu a mão tinha altura e peso medianos, cabelos grisalhos escorriam para trás das orelhas e faziam pequenos anéis nas pontas caídas na altura do seu pescoço, a armação de aço inoxidável do seus óculos era fina e preta e dava espaço para lentes retangulares que faziam seus olhos repuxados parecerem levemente maiores sobre seu sorriso de fácil acesso.
— Detetive Danny Williams.
— Comandante Steve McGarrett.
— Capitão Lou Grover.
Por um segundo observo Max içar sua coluna na direção do homem, com um sorriso fértil como se estivéssemos numa festa de fraternidade, e ele tivesse acabado de apresentar sua nova turma para um velho amigo.
— Esse são meus colegas que mencionei mais cedo, Douglas. — Diz Max, confirmando minhas suspeitas de que ele estava mesmo nos exibindo.
— Ótimo, Max! Eles parecem as pessoas certas para me dizer o que diabos isso... — O homem encara a parede com o rosto enojado e se volta até nossa direção. — O que diabos isso está fazendo na minha universidade!
Ele falava da mancha na parede como se ela fosse um jovem desobediente determinado a estragar pessoalmente a tranquilidade do seu dia profissional, e não os restos inorgânicos de um pobre coitado que fora morto ali.
— Com licença... — Peço, abrindo caminho entre Max e o Reitor para ter certeza se meus olhos não estão me traindo sobre algo no centro do sangue. — Tem um buraco na parede. Parece marca de tiro para você, especialista?
Aponto para Steve com a cabeça. Ele estreita os olhos e balança a cabeça.
— De novo com esse papo de que sou viciado em armas, Danno?!! — Ele resmunga enquanto se aproxima e bate o olho rápido na parede. — Não.
— Vocês dois, deem espaço. — Pede Lou com o pescoço erguido e cara de quem tem uma carta na manga prestes a ser jogada sobre a mesa. — O que tinha nessa parede era um prego sem cabeça de talvez 1¼ x 13 polegadas.
— Uau! Isso foi bem específico! — Diz o Reitor, impressionadíssimo.
— Específico até demais. — Comento, esperando Lou dar explicações.
— Tem um igualzinho ao que acabei de descrever segurando aquela prateleira ali. E outro idêntico ali... E ali. E eu sou um bom empreiteiro.
— Não se movam, garotos. — Diz Steve, olhando fixo para um ponto no chão atrás de todos nós. Ajeito minhas luvas e pego um saquinho de evidências de um dos muitos bolsos de sua calça cargo. — Esse é o prego que descreveu.
E lá estava, deitado sob a sombra do pé esquerdo traseiro do móvel, um prego velho e comprido como um charuto, manchado por sangue escuro.
...
O pedal do acelerador do Camaro era macio como uma tecla de piano, mas Beethoven não ficou famoso por apertar compulsivamente a mesma tecla como se tivesse morrido com a ponte do nariz debruçada sobre a nota. De toda forma, Steve continuava ali firme, devotado sobre a alavanca preta. Desconsiderei o primeiro carro que ele cortou, porque o motorista dirigia como se tivesse indo para sua própria cadeira da morte. Quando Steve infringiu o primeiro sinal vermelho, pensei que sua pressa poderia nos levar a um lugar bonito, romântico, ou talvez pelo menos um lugar reservado, uma fuga estratégica e apressada do trabalho para resolver o que ficou pendente noite passada, mas o pedido de desculpas não veio e passamos o segundo sinal.
Eu já havia desistido da aflição silenciosa de ficar calado enquanto Steve dirigia feito um piloto de corrida, sem motivo aparente. Cheguei até a separar os lábios e preparar um discurso mental sobre como eu tinha certeza que ele estava pensando em outra coisa que não no trânsito enquanto dirigia, e que se não havia se desvirtuado no caminho era porquê seu cérebro já havia automatizado a rota até a sede, depois dos anos. Um fragmento antigo meu ainda queria chamá-lo de maníaco, mas fui interrompido pelo bip-bip-bip estridente de mensagens se acumulando em seu celular.
Steve levou a mão direita ao bolso, deixando a outra fazer carreira solo no volante segurando bem no centro da parte superior, e o sinal se fechou exatamente quando o Camaro deslizou por baixo dele. Olhei firme para Steve e ele captou parte do meu desconforto porque disse:
— Amor, pode dar uma olhada no celular por mim?
Justamente quando ele me perguntava naquele tom de falso casual, seus olhos grudaram na faixa em que estávamos, apertando-os diante das placas e respeitando subitamente a velocidade e as cores dos faróis.
— Posso. Me parece uma ideia melhor que colidir com um poste.
Sorrio meio duro e fora do tempo, porque não quero necessariamente ser agressivo justo quando estou secretamente morrendo de saudade dele.
— É trabalho, Amor? — Ele desliza a mão pela minha bochecha.
Tento ficar indiferente ao seu toque, mas acabo deitando o rosto manhoso sobre seus dedos, meu corpo se acendendo sob a mínima proposta de contato físico. A sensação instantânea de prazer se perde em algum lugar atrás da inquietude que suas mensagens me provocam.
— Não é trabalho. Grace está dizendo abre aspas “Esse terno ficaria demais em você! Carinha com corações nos olhos. Carinha com corações nos olhos.” sobre uma foto que Samantha te enviou no que eu suponho que seja um grupo de WhatsApp sobre preparativos para o nosso casamento, grupo esse que eu não sabia da existência. Sam perguntou “Querem modelos de lingerie também? Tem modelos masculinos que ficariam incríveis em vocês!!!”. Steven?!!
— Bom, você não sabia da existência porque Grace fez pela manhã, mas se quiser peço para ela te colocar no grupo, meu amor. Vai ser legal!
— Legal?! — Vislumbro a janela do carro, procurando qualquer sinal de que essa conversa não está acontecendo. — Steve, tem uma adolescente no seu telefone oferecendo foto de lingerie masculina na frente da nossa filha!!!
— Oh, eu sei. Isso não foi legal. Mas a Sam é muito boa com design, e com certeza nessa altura a Grace já disse pra ela não falar sobre lingerie.
Não consigo ignorar a vontade de ler o restante da conversa. Grace disse “Samantha Crawford, apague essa mensagem ou seja banida! Carinha vermelha de raiva.” E logo depois: “Sam apagou essa mensagem. #incompreendida”.
— Olha, eu adoro a Sam, embora ela me assuste um pouco, mas desde quando a Samantha sabe mais sobre o nosso casamento do que eu?!!
— Você está com ciúmes de uma garota de... dezoito anos?!!
— O quê?! Não!! Por Deus, não! Só estou tentando entender essa lógica.
— Grace tinha horário vago pela manhã, eu estava fazendo o café enquanto você e Charlie dormiam. Samantha estava com Grace na lanchonete da faculdade, ela começou a sugerir coisas legais e Grace tinha que me repassar tudo como se fosse um pombo correio. Então ela decidiu criar um grupo e facilitar a comunicação entre todos os interessados.
Assinto com a cabeça. Até que faz algum sentido, então percebo. Todos os interessados. Ele acha que não estou interessado no nosso casamento?!
...
Quando entramos no Palácio, eu ainda flutuava em pensamentos do tipo “Como ele pode achar que não estou interessado nesse casamento se sou eu quem vai se casar com ele? Se meu pai vai me levar até o altar e Charlie carregar as alianças? Eu até comprei alianças de noivado que são totalmente caras e meio desnecessárias!”, mas quando entramos no elevador, tudo aquilo evaporou.
Aconteceu tudo rápido demais. Eu só bati o olho em Steve e percebi que ele usava aquela calça creme que ressaltada os músculos de suas coxas e se ajustava mais do que deveria em sua virilha, dando a ligeira impressão de que o conteúdo abaixo do tecido não se acomodava no pouco espaço disponível. As imagens que meu cérebro espalhou eram tão esclarecedoras sobre a pele por baixo daquela roupa, que eu não conseguia mais desviar minha atenção dele.
A luminosidade dentro do elevador era de um branco fluorescente que parecia azulado pela manhã, e fazia as manchinhas verdes e douradas em seus olhos se derramarem pedindo por minha atenção. Ele estava sereno, pensativo, a barba por fazer não tapava a pele curvilínea em seu maxilar.
Quem em sã consciência teria a oportunidade de beijar aquele cara e deixaria pra lá por estar dentro de um elevador ou em horário de serviço? Era a nova questão em minha mente, que me levou a conclusão de que eu era o único sujeito que poderia responder aquela questão de forma física. Apertei o botão que controlava o elevador onde estávamos, vi o pomo de Adão em seu pescoço saltar confuso sobre o que eu estava fazendo, enrolei meus braços em seu pescoço, meus dedos se seguraram pelas pontas atrás da curva da sua nuca e eu suguei seu lábio inferior para dentro da minha boca, senti o gosto do café forte e o frescor do creme dental, troquei meu foco para seu lábio superior, ele pousou as mãos no meu quadril, sua respiração tocando a ponta do meu nariz, suas sobrancelhas se curvaram gerando duas rugas entre seus olhos e eu já sabia que ele estava excitado, senti seu rosto se deitando e tratei de ir pela direção contrária satisfazer o desejo do beijo que se tornou tão quente antes mesmo da segunda volta, seus dedos já estavam apertando minha bunda e eu sentia uma fisgada abaixo do jeans, meu corpo se contraia e ondas se espalhavam por mim.
Depois de sentir sua língua contra a minha, sabia que precisava recuar antes que atingisse o ponto em que não conseguiria mais voltar atrás. Selei nossos lábios e voltei ao seu lado, ouvindo-o respirar fundo. O volume em sua calça beirava ao insustentável, os botões poderiam mesmo saltar a qualquer momento, por isso esperei mais um pouco antes de seguir.
...
Soltei o ar que havia prendido sem perceber nos últimos segundos, ao notar que dessa vez não havia recepção organizada na porta do elevador. Todos estavam amontoados em torno da mesa inteligente, exceto Lou.
Jerry havia integrado um laptop à larga mesa, para que pudesse usá-lo enquanto cedia à Kono o controle integral do computador chefe, onde podíamos ouvi-la digitar quando entramos. Chin estava debruçado ao seu lado e Adam de pé na ponta esquerda lendo as informações que apareciam na tela. Tani e Junior foram enviados para a faculdade Manoa, porque alguém precisava ficar de olho no comportamento dos estudantes uma vez que pessoas com identificações e maletas iam e vinham pelo campus, atraindo olhares curiosos e alimentando o êxtase dos jovens pelo novo.
— Como estamos por aqui? — Perguntou Steve, parando ao lado direito de Kono com o polegar encaixado no cós da calça creme e a outra mão lustrando o distintivo. Podia sentir que ele tentava parecer altamente concentrado, enquanto parte de si ainda estava suspirando no elevador.
— Max disse que demos sorte pelo material resistente do armário ter protegido as evidências na parede, caso contrário teríamos perdido tudo. — Disse Chin. — Ele acredita que a amostra não foi comprometida.
— Por sorte, parece que todos se esqueceram mesmo desse porão. — Completa Adam.
— Estamos esperando respostas de Eric, mas ele já nos adiantou que o sangue não está ali há menos de dois anos, então estamos filtrando desaparecidos que estudaram ou trabalharam naquela faculdade. — Kono comenta, sentada numa cadeira office colocada à mesa diante da notícia de sua gravidez. — Mas são muitos resultados improváveis aqui e ali.
Percebo que não estamos chegando há lugar algum nessa direção.
— E o antigo professor de química que encheu o porão de coisas nojentas? Quando ele saiu? E por que não levou aquelas tralhas com ele?
Jerry se atrapalhou por trás do laptop, empurrando os fones de ouvido redondos para o pescoço como um travesseiro de viagem em forma de U, ele levantou a mão como um aluno pedindo para responder à pergunta.
— Hunter Konani, o tal professor que o nosso Tony Stark acabou de mencionar. — Jerry sorri rapidamente e engole o sorriso quando não retribuo a gentileza. — Não encontro nada de relevante na ficha dele, além é claro, dele ser o único interessado em usar um porão como escritório particular... Embora é claro que nem todos que fazem isso são malucos! Enfim... ele tinha bons resultados e então, há dois anos, puff, se demitiu.
— Temos o endereço dele? — Perguntou Steve.
— Encaminhando pro seu celular em 3, 2, 1... Capitão.
O celular de Steve apitou, ele assentiu para Jerry num sorriso rápido.
— E Jerry? — Falei, de saída. — Meu nome é Danny e o dele é Steve.
— Rogers... — Tenho quase certeza que ouço Jerry cochichar.
— Ignorem ele. Noite mal dormida. — Steve, que já havia passado pela porta de vidro, colocou a cabeça do lado de dentro para comentar.
Esperamos o elevador chegar, e quando aconteceu, Lou desceu dele com a cabeça correndo de um lado pro outro e os olhos desconfiados sobre nós.
— Eu estava no hall esperando esse elevador há minutos! Sabem algo sobre isso? — Ele perguntou, bancando o policial para cima de nós.
— Sério?! Eu não faço ideia. — Respondo casual. — Você sabe, Steve?
— Nem imagino. Mas deve ser técnico, vou ver com a manutenção.
...
Fomos parar no bairro de Kaka’ako, que mais parecia um carnaval a céu aberto com seus muros cobertos por desenhos expansivos e super pigmentados. Passamos de frente para uma casa de sucos que fazia sucesso em parceria com os 30°C daquela manhã. A placa em metal indicava a cerveja artesanal vendida na esquina, cujo neon deveria ser ligado mais a noite. Não nos afastamos demais das muitas opções gastronômicas que provocavam o apetite, e já encontramos o olhar desapaixonado do homem.
— Podemos entrar? — Perguntava Steve, os dedos no distintivo.
O sujeito era comprido como um poste, usava óculos de lente grossa que não escondia seu olhar ansioso de quem não queria nos receber em sua casa. Sua camisa tinha qualidade distinta, mas estava puída em torno dos botões desbotados e trazia manchas arredondadas debaixo das axilas.
— Pode ser. — Ele concordou, após não encontrar maneira de recusar.
Quando botei o primeiro pé do lado de dentro, comecei a entender porque Hunter tinha suor acumulado nas rugas da testa. Sua casa era branca como o quarto de um manicômio e cheirava a água sanitária por todo lado, o sofá da sala carregava o mesmo contraste da camisa, parecia valorizado e até novo, mas sobre as almofadas, manchas desbotadas de esfregões árduos que pareciam acontecer com frequência. Havia uma pilha de revistas sobre artigos químicos na mesinha de centro, organizadas como cartas de baralho dispostas em uma mão de forma que só se pode ver um pedaço em diagonal que amostre parte do título de cada uma delas, pareciam estarem organizadas por ordem alfabética, assim como os livros da estante. Sobre a mesa, o computador branco centralizado, um número par de lápis amarelos que pareciam nunca terem sido usados, assim como a fita disposta no suporte e até as canetas azuis, vermelhas e pretas. Havia um armário no canto que lembrava um pouco os antigos armários do porão, mas esse estava conservado e era ocupado por pastas de plástico transparentes atoladas de papéis, clipes e legendas que os organizavam.
— Sentem-se, por favor. — O homem nos encaminhou para a sala, e apontou o sofá que provavelmente seria esfregado assim que nos levantássemos para ir embora. Dava pra notar manchas avermelhadas em seu pescoço e sua respiração incômoda quando nos sentamos lado a lado.
Ele se sentou numa poltrona de vime com acolchoamento branco gelo.
— Obrigado, Sr. Konani. — Agradeceu Steve, tentando ganhar a confiança do homem. — Não pretendemos tomar muito do seu tempo.
— O Senhor lecionou na Universidade em Manoa? — Pergunto.
— Sim. — Ele responde ficando pálido.
— Quando?
— De 2015 à meados de 2017... eu acho.
O homem cruzou os braços na frente do corpo, acho que ele tinha certeza. Quem sabe soubesse até o dia exato em que pediu a tal demissão.
— Três anos! — Steve comenta impressionado. — Gostava de lá?
— Sim. — Suas respostas monossilábicas deixam evidente que ele não quer falar sobre o assunto, então ficamos calados esperando e ele continua. — É uma faculdade de pesquisa. Gosto disso, fazer pesquisa.
— E por que saiu? — Pergunto, aproveitando sua deixa perfeita.
— Como?! — Seu joelho chacoalha e seus dedos comprimem as palmas das mãos.
— Se gostava do emprego, por que o senhor pediu demissão? — Pergunto e seu nervosismo me diz que posso chegar à algum lugar. O homem separa os lábios, vai me dizer o que preciso. Então um som agudo toma conta da sala, quebrando nossa conexão visual. É o celular de Steve.
— Me perdoem — Ele volta a cabeça para mim. — Preciso atender essa.
O homem respira aliviado pela interrupção e vendo que agora só tem um de nós em seu sofá, ele percebe que também pode fazer perguntas.
— Sobre o que é isso mesmo? — Seus dedos se fecham em seu joelho, agora firme de pernas cruzadas, escondido atrás de seu novo trunfo.
Graças ao maldito celular de Steve que está sempre pronto para tocar.
— Estamos interessados no antigo porão que o senhor utilizava.
— Oh... — Ele parece verdadeiramente surpreso. — O que tem ele?
— Armários, livros, potes. Nos disseram que pertence tudo ao senhor. Por que não os trouxe para casa quando se demitiu?
— Bom, eu recolhi aquele material enquanto professor da universidade, não pareceu justo... levar o acervo comigo. Poderia ser útil para os alunos.
— Mas os alunos não tinham acesso ao porão. Ou tinham?
— Acho que não, mas... talvez o novo professor pudesse... usar.
— Vejo que se importa com os alunos e gostava do trabalho. Por que o senhor se demitiu? — Insisto em minha pergunta, agora mais embasada.
— Eu só... estava cansado. É uma rotina pesada e eu... estava esgotado.
Ele estava mentindo. Isso ficou bem claro com as mãos correndo pelo seu nariz que devia coçar como se tivesse cheio de pó de mico. Mas a volta de Steve à sala com os olhos vidrados em Hunter, mudando sua postura elegante e delicada de um minuto atrás, foi ainda mais esclarecedora.
— Então não teve relação com o incidente no seu outro emprego?
O homem se encolhe na poltrona, os olhos minguados em seu colo.
— A queixa foi retirada... — Ele sussurra, franzindo os lábios fechados.
— Por isso demoramos um pouco para encontrar. Mas encontramos. Antes da Universidade do Hawaii em Manoa, você trabalhou no Colégio Leeward e foi demitido após receber queixa de agressão por um aluno?!
— Não foi bem assim que aconteceu... — O homem parece furioso. Talvez prestes a explodir, talvez só falte uma única fagulha fácil de acender.
— Isso faz a gente pensar. — Digo com um sorrisinho. — Quer dizer, eu sei que adolescentes nos deixam louco, mas daí a agredir um aluno?!
A veia em seu pescoço salta. Ele me odeia agora, mas pode valer à pena.
— Não foi bem assim que aconteceu! Eu já disse! Stuart era um idiota, um malandro problemático que deve estar atrás das grades hoje e não havia motivo para que o nome dele manchasse minha ficha se era ele o verdadeiro maldito depravado entre nós dois. Stuart vem de uma família disfuncional, faz de tudo para conseguir atenção e seu esporte favorito era provocar os professores. Ele descobriu que tenho TOC, e me pegou num dia ruim, tirou todas as minhas coisas do lugar, naquela época meu remédio não estava ajustado como precisava e eu perdi a cabeça. Depois que fui demitido do Leeward, procurei a família dele e ofereci um acordo, eu paguei para que retirassem a queixa, eles toparam em cinco segundos. Por isso estão aqui? Por causa de um delinquente juvenil que levou um único soco na boca que nem lhe arrancou um dente?
— Não. Não estamos interessados nesse garoto ou na agressão. — Tomo a frente da resposta, porque pela primeira vez ele não parece estar mentindo. — Seu antigo porão se transformou numa cena de crime, e ainda são as suas coisas lá dentro, você foi o último a ser visto entrando e saindo do local.
— Entreguei minha chave há anos e fui embora. Agora sou suspeito de um crime?!! — Hunter escancarou os olhos como nunca desde que chegamos.
— Isso depende. Vou perguntar uma última vez: Por que se demitiu?
...
— Chantageado?!! — Perguntou Kono com a expressão meandrosa.
— Ele não queria contar, mas viu que estava se tornando suspeito.
Steve deposita sobre a mesa um saco se evidencia lacrado, contendo a folha de papel ofício intacta e sem marcas de dobraduras, a mensagem escrita em caneta vermelha e caligrafia elegante mas apressada, diz:
“Achou mesmo que poderia escapar do seu passado? Você não pode. Conheço seu segredo, Hunter. Se não sumir daqui ainda hoje, todos vão conhecer também...”
— Alguém queria mesmo esse cara fora do caminho. — Falou Jerry.
— Acabei de falar com o Reitor Campbell. Segundo ele, Hunter Konani era um cara estranho, mas considerado por qualquer um, inofensivo e o único problema que apresentava era queixas recorrentes sobre o desleixo dos alunos quanto a higiene com seu material e sugeria regularmente o uso de uniformes. Fora isso, Hunter não trazia dor de cabeça, até um dia aparecer fora do seu juízo habitual, palavras do Reitor, dizendo que precisava se afastar. O Reitor tentou negociar e fazê-lo retornar às aulas após um período de férias, mas Hunter negou e saiu às pressas da sala, sem recolher suas coisas e não voltou mais. — Diz Chin, saindo de sua sala e se misturando a nós em torno da mesa.
— Então acreditamos nesse cara? Ou ele deu cabo da vítima, entrou em pânico e deu o fora o mais rápido possível. Então forjou esse bilhete conveniente pro caso de policiais baterem em sua porta? — Pergunta Kono.
— A casa dele parece cenário de uma propaganda de desinfetante, o cara é compulsivo, não conseguiria dormir sabendo que deixou uma mancha numa parede mesmo que fosse de suco de uva. — Respondo. — Ele teria limpado.
— Tem razão. — Afirma Steve. — Além disso ele é químico, não deixaria DNA para trás dessa forma grotesca. Temos que pensar em Hunter como uma testemunha em segundo grau e não um suspeito, se ele continuasse entrando no porão acabaria descobrindo e relatando que descobriu uma cena de crime.
— Precisamos saber quando isso aconteceu. — Concluiu Lou.
— E quem é o dono do sangue. — Completa Adam.
— Acho que estamos prestes a descobrir. — Diz Chin, percebendo que temos campainha, pois Eric acabou de passar pela porta dupla de vidro.
...
— Boa tarde, família! — Eric desfilou desnecessariamente jogando o quadril pros lados até a mesa inteligente, onde pôs a mão na barriga de Kono, que ainda não existia. — Como está minha força tarefa preferida e os minis Five-0, uh?
— Bem. — Responde Kono, empurrando a mão de Eric para fora.
— Eric. Pelo amor de Deus, quem é a nossa vítima? — Pergunto.
— Certo, Tio D. Quer dizer... D de Detetive Williams. — Ele pigarreia.
— Ele tá rabugento hoje. — Steve sussurra para Eric.
— Não dormiram a noite. — Completa Lou e Adam alimenta com um riso.
Meu sobrinho ergueu as sobrancelhas cheio de presunção, naquela cara típica de “hummmm, devem ter feito sexo a noite toda”. Quem me dera!
— Então, falando agora como o Doutor Russo. — Ele se empertigou e limpou a garganta. — O nome da nossa vítima é Victor Mauliola, que teria hoje 23 anos. Dado como desaparecido aos 21, em junho de 2017.
...
— Steve, por que estamos aqui? — Berrei no microfone em formato de azeitona preso aos fones de proteção auditiva.
— Bom, essa é a rota mais breve até Hilo.
— Não esse aqui. Por que nós estamos aqui?
— Porque o helicóptero do Kamekona sai mais barato e sem burocracia. — Steve vasculhava os medidores do painel e apertava um botão ou outro, me dando a sensação de que tentava apenas me evitar, usando a mecânica.
— Mais barato? Você não pagou um centavo. Mas também não é disso que estou falando. Por que estamos indo até Hilo?!!
— Ora... você sabe que é onde a vítima morava. Alguém tem que falar com o pai de Victor Mauliola, fazer uma notificação, bater um papo.
— Exatamente. Alguém. Não precisava ser eu e você.
— Isso é por causa do oceano lá embaixo? Semana passada você entrou numa piscina. Então acho que a Dra. Aponi veria isso como um belo avanço.
— Não é por causa do... — Estreito os olhos até ele e continuo fingindo que estamos em um simulador e que o oceano é apenas um tapete largo se chacoalhando. — Dá pra parar de virar o jogo contra mim? Eu estou falando de você. Você está distraído e ao mesmo tempo focado demais, está focando demais porque está distraído, quer estar em todos os lugares ao mesmo tempo; na sede, na cena do crime, na casa do professor e agora em Hilo!
Steve torce o pescoço para um lado, depois para o outro e morde a boca.
— É o nosso trabalho. — Diz ele, descrente do que está dizendo.
— É, mas também é o trabalho do Lou, do Chin, Adam, Tani, Junior...
— Seja lá o que você está sugerindo, eu não estou fazendo.
— Steve. Qual é? Somos só nós dois aqui, não tenta mentir pra mim.
— Omitir.
— Amor!
Ele acionou dois botões à direita do painel e puxou uma alavanca, me olhando pela primeira vez como se fizesse mesmo parte daquela conversa.
— Pode não ser nada demais, mas estou com um pressentimento ruim.
— Um pressentimento ruim? O super otimista Steve McGarrett?!!
— Recebi uma ligação da governadora. Ela não queria nada concreto, disse que andou ocupada com as eleições se aproximando e queria apenas checar se está tudo certo na equipe.
— Acha que o secretário Green tem alguma coisa a ver com isso?
— Acho, mas não tenho provas. Acho que ele não vai dar as caras por causa da ameaça de Charlotte, mas vai ficar de tocaia no nosso pé, esperando cometermos um único erro pra puxar o nosso tapete. Mas quer saber? Quero que esse homem se dane, Danny. O que me preocupa mesmo é que ainda nem assinamos os papéis da adoção, tenho medo dele intervir nisso. Tenho medo das coisas não saírem como o planejado, como... com o Charlie. — Nasce uma ruga em sua testa e ele gesticula como pode. — Tinha certeza que ele ia aprovar a ideia, assim como apoiou nosso casamento de cara! Não me preparei nem por um segundo pra sentir que estava arruinando sua vida para sempre.
— Estamos na mira da governadora? — Perguntei por instinto, não queria deixar o som eloquente das hélices do helicóptero tomar conta. — Quer saber? Podemos lidar com isso. Lidamos com a governadora Jameson que queria sua cabeça numa bandeja, lidamos com o governador Denning, que não deixaria essa caça às bruxas acontecer. Ele faz falta, mas vamos lidar com isso também.
— E o Charlie?
— É fofo como você prefere encarar a fúria do governo dos Estados Unidos do que seu filho de nove anos dando uma birra infantil.
...
Dener Mauliola nos abriu a porta com um nó na garganta, sabia que dois anos sem notícia do filho, era uma forma terrível de ter notícias do filho. Sabia que dois homens com distintivos na cintura não poderiam ser um bom presságio e sabia que a hora de encarar os fatos, havia chegado.
— Acharam o corpo do meu filho?
O homem era comum de tal forma que te colocava aquela sensação. Poderia ser comigo. Afinal via-se fácil, fácil que era apenas um sujeito desses que tenta dar o melhor de si, do tipo que se preocupa com tudo o que parece necessário, que faz tudo o que pode e mesmo assim, aconteceu.
— Por favor, sente-se Sr. Mauliola. — Pediu Steve.
— Quando meu filho sumiu, percebi rápido que a versão favorita da polícia era que adolescentes fogem o tempo inteiro. Eu disse não o meu filho. Eles disseram é o que todos os pais dizem. Odiava aquilo, aquela ideia de que se meu filho sumiu, era porque queria sumir. Queria me deixar sem um telefonema mesmo nos aniversários, na Ação de Graças? Ele não teria aparecido nem quando a avó faleceu? Não teria sequer ligado para casa? Um ano se passou e pensei adolescentes fogem o tempo inteiro, qualquer coisa era melhor do que acreditar que algo horrível aconteceu com meu filho e que um dia policiais claramente vindos de fora apareceriam com respostas. Olhando para vocês, eu queria ouvir que meu filho fugiu e que ele foi ingrato o suficiente para decidir não me ligar.
— Sentimos muito, Senhor Mauliola. — Disse de cabeça baixa.
Seus punhos se seguraram num reflexo quando seu corpo caiu sentado no sofá da sala, decorada pelos tantos porta retratos de pai e filho.
— Acharam o corpo do meu filho? — Ele repetiu a pergunta, a voz ainda mais angustiada e tenebrosa que da primeira vez.
— Não achamos o corpo. Mas achamos traços de DNA do seu filho.
— Meu Deus...
Os olhos de Dener regurgitaram da face, ele renegava nossa presença e nossas palavras, inflava as narinas e cravava as unhas nas palmas das mãos.
— Sabemos que é doloroso relembrar os últimos momentos que teve com seu filho, mas queríamos ouvir do senhor, aconteceu algo fora do comum?
— Eu já contei isso cem mil vezes aos policiais que não pareciam se importar, jornalistas que só queriam uma boa manchete, vizinhos e conhecidos curiosos. Por que tenho que passar por tudo isso de novo, agora com vocês?
— Porque nós também somos pais e nos importamos pra valer.
Dener precisou tomar fôlego andando em passos curtos até a janela fechada para chorar com um pouco de privacidade, depois encarou uma das fotografias onde um Victor mais jovem que Charlie segurava um peixe comprido de nariz achatado como as pontas retorcidas de uma tesoura fechada.
— Meu filho nunca quis ser astronauta ou... jogador de futebol ou um astro do rock. Todo natal ele pedia um bloco de papel e lápis de desenho com pontas específicas. Ele também não pendeu pro desenho, só gostava de desenhar uma coisa; casas. Começou com uma casinha de cinco palitos, até se tornar isso. — Dener espicha o tronco para fora do sofá, desdobra uma folha que havia sido cuidadosamente torcida até caber na carteira, e coloca o papel em minha mão.
— Ele tem talento. — Tomo cuidado com o tempo verbal, não quero um pai histérico nos enxotando para fora de sua casa. Entrego o papel à Steve.
— Ele criou essa casa? — Perguntou Steve, meneando a cabeça com os olhos vidrados em Dener. Sabia que Steve tinha alguma teoria em mente.
— Uh... — Os olhos de Dener ficaram temporariamente vidrados, não focalizavam ponto material algum, mas algo que atiçou minha curiosidade. — Sim... Meu filho tem cadernos e mais cadernos, cheio de casas assim...
Steve me olhou rapidamente com um aceno mínimo de cabeça. Ele não queria que eu forçasse Dener, queria que eu entrasse em seu jogo aos poucos.
— Senhor Mauliola, o seu filho tinha planos para aquele fim de semana?
— Eu trabalho numa imobiliária de automóveis, tínhamos inaugurado uma loja na sexta, véspera do desaparecimento do meu filho. Quando cheguei em casa, ele estava dormindo, mas eu fui checar. É um hábito, eles crescem, mas não crescem nunca... Ele acordou e me disse que não ia ficar pro fim de semana, como costumava fazer, ia se levantar cedo pra um acampamento da faculdade. Fizeram uns dois ou três acampamentos antes, os alunos se juntam supostamente pra criar laços fora do campus, mas aposto que deve ter bebida e namoro. São jovens. — Dener pesou os olhos. — Não procurei meu filho porque pensei que ele estava nesse tal acampamento. Quando ele não voltou pra universidade na segunda, descobri que não tinha acampamento nenhum.
— Alguma ideia do porquê ele tenha dito isso pro senhor?
— Sinceramente? Não. O Victor não é de mentir, sabe? Ele não tem vergonha do que quer e nem medo de correr atrás. Ele é quem é e ponto final. Sempre que quis algo, foi claro e direto ao ponto. Não imagino o motivo.
— Imagino que a polícia criou teorias. — Steve continuava guiando a conversa.
— Namorada, festas, mas tudo levava ao mesmo lugar. Adolescentes fogem.
— Consegue pensar em algum motivo para ele ir para Honolulu? — Dessa vez Steve nem piscou, e Dener engoliu a própria saliva movendo o pomo de Adão. Então soltou um não seco e disse que estava atrasado para o trabalho.
...
Sem sede e sem casa, nos empoleiramos numa salinha quente como o inferno da delegacia de Hilo. A polícia não fazia a menor questão de fingir que éramos bem vindos, não passávamos de forasteiros que pareciam querer saber mais que todos eles, ao tentar solucionar um caso que havia sido arquivado. A forma que encontraram de se livrarem de nossas caras brancas, foi nos jogar naquela sala apertada, onde o sol penetrava mesmo de persiana fechada e o ar simplesmente não tinha por onde circular, havia uma única mesa e cadeira, nos arrumaram outra cadeira avulsa e velha da sala de espera e uma pilha enorme de papéis.
— Uau. Devem estar espetando palitos em bonecos com nossas caras.
— Ignora eles. Só não querem ninguém xeretando a bagunça deles.
— E põe bagunça nisso. A Grace com cinco anos faria um trabalho melhor. Olha só isso; relatórios incompletos e folhas soltas pra todo lado. Consigo entender melhor agora a revolta do Dener com a postura dos policiais daqui.
— Arrá! — Steve berrou de olho no celular, então se recompôs. — Amor, você precisa ver isso aqui. Eu sabia que já tinha visto essa rua em algum lugar.
— É Honolulu... essa é a tal casa que o Dener carrega na carteira, não é?
— Sim, e essa imagem é antiga. No máximo 2010.
— Então o Victor é um garoto prodígio que faz plantas magníficas com treze anos ou... o garoto não criou aquela casa, só retratou algo que já viu.
Kono levou meia dúzia de minutos para descobrir que Dener havia morado exatamente naquela casa, pra onde o filho havia sido levado assim que nasceu. Tínhamos agora um leque de opções para Victor ir para Honolulu, ele havia morado lá por metade de sua infância, talvez tenha deixado amigos ou parentes para trás, talvez quisesse rever a casa, talvez tivesse um tesouro escondido ali. Jerry levantou os registros dos voos para Honolulu no dia do desaparecimento, e descobrimos que, não havia acampamento da universidade de Hilo, mas havia uma conferência que incutia os alunos de arquitetura, e os levaria para confraternizar e apertar as mãos de outros alunos e docentes na universidade de Honolulu. Era essa a conexão que precisávamos para traçar a rota de Victor.
...
Bati três vezes na porta do quarto da universidade de Hilo, a cada batida pensava em algo diferente; minha próxima consulta com a Dra. Aponi onde ela havia predeterminado que eu estava pronto para uma piscina olímpica, quatorze vezes maior em dimensão e profundidade do que o tanque redondo e plastificado onde eu havia me metido da última vez, Charlie e sua recusa silenciosa diante da ideia de ter um bebê daqui uns meses pra chamar de irmão e é claro, nosso casamento sem data marcada, mas cheio de ideias amontoadas no celular de Steve, junto quem sabe de um grampo colocado por Thomas Green. Finalmente abriram a porta do quarto e o cheiro doce e repulsivo de erva incomodou minhas narinas, meu último motivo pra cabeça latejar forte.
— E aí? Cês tão procurando o Bryan? Porque eu não sei dele não, caras.
— Senta aí e nunca mais me chama de cara. — Minha paciência se esgotou logo de início, já estava decidido que eu seria o policial mau, sinceramente detestava o tipo malandro que fuma no quarto da faculdade, compra trabalhos de garotos mais inteligentes com a mesada da família, esconde cigarro e droga na dobradura saliente da fronha e não deve tomar um banho há uma semana. O sujeito a nossa frente era Trevor O’Conor, e ele era exatamente esse cara.
— Calma, chapa! Eu não quero problemas com os rolos do Bryan, falou?
Busquei Steve com meus olhos impressionados com o tamanho da arrogância daquele garoto que em segundos havia colocado uma nota mental em minha cabeça: investigar quem diabos é Bryan e quais são os seus rolos misteriosos. Como sempre, Steve mantinha a expressão passiva, quase vazia diante de nós.
— Não estamos aqui pelo Bryan. O quanto conhece Victor Mauliola?
Trevor travou no tempo por alguns segundos, o olhar morto recaído sobre a cama ao lado da que seu corpo pendeu ao ouvir o nome do ex-colega de quarto.
— Ele... eh... ele era meu colega de turma, dormia nessa cama atrás de vocês e... ninguém sabe o que houve, ele sumiu faz anos... Quem vocês são mesmo?
— Five-0. É uma força tarefa que fica em Honolulu. Conhece?
— É tipo uma polícia, né?
— Eu me refiro à cidade. Quando foi sua última visita à Honolulu?
Victor tragou a saliva pela garganta com força.
— Uh... há muito tempo... não lembro direito, mas eu era criança, eu acho...
— O quão próximo era do Victor? — Steve continuava o interrogatório, enquanto eu vasculhava o quarto com os olhos, recolhendo fragmentos.
— Ah... a gente se dava bem, sabe? Nada demais. Ocupados com as aulas.
— Engraçado ouvir isso. — Invadi a conversa me dirigindo ao garoto que rolava os olhos de mim para Steve, torcendo para que ele me parasse. — Segundo as fichas, vocês foram aceitos no mesmo ano, se tornaram colegas de quarto desde o primeiro segundo, por dois anos... são o quê? Mais de seiscentos dias dormindo há um metro de distância e vocês só se davam bem? Só isso?!
— Ele era meu chapa, mas vivíamos em mundos diferentes. Victor passava as sextas a noite desenhando, enquanto eu ficava bêbado na piscina de alguém, se eu arrumasse uma gata e ela tivesse uma amiga, eu chamava ele pra chegar junto, mas ele nunca ia. Cheguei a pensar que ele não jogasse no meu time, mas acho que ele já tinha alguém, vivia trocando mensagens no celular a noite, mas já disse isso pra polícia. Mesmo assim, eu gostava dele, era o meu chapa, sabe?
Não havia sequer menção do nome O’Conor no relatório da polícia, quanto mais relato de que ele suspeitava de um envolvimento romântico da vítima.
— Então, se ele precisasse de você, ou você dele, vocês eram chapas, certo?
Steve deu de ombros, reforçando para Trevis a ideia de que ele podia se abrir honestamente, desde que estivesse apenas relatando sobre sua tal amizade.
— É. Éramos chapas, a gente se ajudava... mas depende... da situação, sabe?
— Por exemplo; — Caminhei até Trevis, minhas mãos dançando ao ar em gesticulações. — Temos uma conferência em Honolulu, e na lista dos alunos temos, advinha só? Você! Mas peraí, a história fica ainda melhor. Nós fizemos a lição de casa, e na mesma hora em que palestras longas sobre arquitetura aconteciam em Honolulu, você estava na casa de praia dos pais de Patty Farrell aqui em Hilo enchendo a cara, temos muitas testemunhas e fotos constrangedoras no Instagram. Mas antes que você nos explique como estava em dois lugares ao mesmo tempo, a história ainda não acabou. Tem mais. Dá pra acreditar que algumas pessoas não apenas vão para essas conferências, mas também fazem fotos, vídeos, registram tudo o que acontece por lá? Você não estava em Honolulu, Trevor. O seu nome estava na lista, mas Victor Mauliola foi no seu lugar. Então me diz, de quem foi a ideia? Você não queria perder a festa da Patty e o seu chapa resolveu te dar uma força usando a sua identidade e indo pra Honolulu?!
O’Conor não havia experimentado tamanho nervosismo desde que chegamos, dava para ver seu peito inflando em intervalos insignificantes, a pele do seu pescoço ficando mais pigmentada e seus dedos inquietos se apertando.
— Eu... não vou dizer mais nada sem um advogado. — Disse ele por fim.
— Não seja bobo, Trevis. — Disse Steve, indo contra a sua obrigação de acatar o pedido do advogado interrompendo sem desvios o interrogatório. — Não estamos aqui por você, queremos saber o que houve com o Victor. Apenas isso. Eu sei exatamente o que seu advogado vai te dizer: “fica tranquilo, você tem um bom álibi, eles sabem que você não estava em Honolulu, então apenas colabore com a verdade e tudo ficará bem”.
E assim Steve ganhou não apenas a confiança de Trevis, como sua versão.
...
Steve e eu marchávamos calados para fora da universidade, sacudindo nossas cabeças como cães se desfazendo da água do corpo, tentando a todo custo limpar nossas mentes do mal-estar da malandragem juvenil que Trevis exalava em seu antro repugnante de falsa sensação de poder e irresponsabilidade.
— Acha que toda universidade tem um imbecil como o Trevis O’Conor?
Minha voz soou mais honesta e preocupada do que pretendia, talvez por isso Steve tenha pensado bastante antes de pegar o celular e me responder.
— Quer ligar para a Grace, não quer?
Fiz que não com a cabeça.
— Pelo amor de Deus, sim!
Bati a porta de trás do primeiro taxi que cruzou nosso caminho ainda de olho nas tantas pilastras que serviam de cenário para o clima universitário em Hilo. Vi que Steve, do carona, sugeria ao contato de Grace uma chamada de vídeo.
— Se ela não atender, é porque está na biblioteca. — Ele me alertou.
— Ou ficando grávida de um Trevis qualquer. — Os olhos verdes de Steve abominaram minhas palavras. Pelo menos o taxista conseguia se divertir com isso, ele era um desses homens de sessenta que te espia pelo retrovisor, balança a cabeça e grunhe mesmo quando ninguém o dirige a palavra, pronto para se misturar na conversa. O ignorei, porque eu estava mesmo de mau humor.
Ouvi o tinir do celular avisando que a ligação foi aceita e repuxando a imagem de Steve na câmera frontal para o canto alto da tela. Se acomodando no espaço amplificado, a imagem espalhafatosa de Samantha tomava forma.
— Papai! — Ouvi a voz anasalada de Sam berrando entusiasmada.
— Sua filha? — Perguntou o taxista, diante da expressão embaralhada de Steve que aguardava a ligação de imagem ainda instável se reestabelecer.
— Uh... na verdade não. Oi, Sam! Cadê a Grace?
Sam prolongou uma vogal qualquer, enquanto cochichava algo com alguém ao seu lado, espichei o corpo e me enfiei entre os dois bancos da frente.
— Samantha? — Chamei. — Onde está minha filha, Grace Williams?
— Danno! — Respondeu Sam, com seu entusiasmo de sempre ao nos ver juntos. — Então... sabe o que é, gente? É que a Grace é uma menina ótima, entendam, e super responsável que está... dirigindo nesse exato momento.
Suas últimas palavras saíram de uma só vez, exprimidas numa voz aguda.
— O quê?! — Perguntei. Steve passou a língua entre os lábios.
Do som abafado que jorrava pelo auto falante do celular, pude ouvir o freio sendo acionado, a imagem trêmula focalizou o teto de um veículo e finalmente pude ver Grace, que parecia ter acabado de transferir os dedos do volante pro telefone. Grace desfrutava de idade suficiente para dirigir e de uma carteira de habilitação em dias, além de ter um carro registrado em seu nome, que decidimos guardar na casa dos seus avós em Jersey para raras ocasiões. Já a ideia de ter Grace de fato segurando o volante entre outros carros, e principalmente sem o meu conhecimento, se configurava num belo problema, desde que ela fez isso e acabou acidentada numa vala por duas horas, inconsciente, sem pedir socorro, sem conseguir ser rastreada, quase sem vida.
— Oi Danno! Antes de mais nada, eu amo vocês. E tenho uma surpresa!
— Grace. — Tomo fôlego. — Por que diabos você não está na universidade? E por que está dirigindo? E isso atrás de você é o Central Park?!!!
— O quê?! — Steve recupera o celular que eu havia tomado de sua mão. — Grace, meu bem, por que o Central Park está exatamente atrás de você... Ah!
Steve largou um suspiro numa mistura de compreensão e lamento.
— Então... — Disse Grace mordendo o lábio. — Sem suspense, né?
— Não força a barra, G. São detetives, lembra? — Mencionou Sam.
A imagem tremeu outra vez, o teto passou pela tela, dedos tornaram a imagem da câmera um vulto avermelhado embaçado com listras de digital.
— Oi gente... — Uma terceira voz se fez presente pelo auto falante. A voz soprada tomando coragem ao se impor em um tom rouco e bastante familiar.
— Charlotte?! — Perguntei por cima do ombro de Steve, que se solidificara diante do celular, como uma estátua de pedra tentando absorver o momento.
— Danny! Steve! Que saudade de vocês... espero não estar incomodando.
— Não, querida. Imagine! Só... não fazíamos ideia de que vocês... Como isso é possível...
Mal consegui formular uma pergunta, Steve se voltou para mim.
— Acho que eu sei. — Steve meneou a cabeça, rugas se formaram em seu pescoço quando ele se voltou para mim. — Posso ter comentado sobre Charlotte ontem, sobre Nova York e sobre o estágio no Central Park, então acho que...
— Decidimos fazer uma visitinha! Aproveitar o dia de Colombo, feriado comercial, nada de aulas, viemos conhecer a portadora dos futuros bebês!!!
— Samantha!!!
Acho que só me dei conta do plural que Sam havia utilizado quando Grace berrou o nome da amiga, completamente aflita num tom claro de protesto.
— Oops. — Disse Sam. — É óbvio que eu quis dizer futuro bebê. Vocês sabem que sou um pouquinho dislexa, né? Já devo ter comentado. Minha concordância é um lixo, não fazem ideia de como as letras se embaralham na minha cabeça! Parece um caça-palavras nível três. Ou nível quatro.
Silêncio. Foi tudo o que ouvimos. Até o taxista, curioso que pescava palavras e olhares de nossa conversa, conseguiu sentir o clima mudar drasticamente após o pequeno deslize de Samantha, que agora se esforçava em vão para encobri-lo.
— Bebês? Charlotte, o que a Sam quer dizer com... futuros bebês? — Perguntou Steve, pelo retrovisor vi seus olhos brilhando no mesmo ponto em que sua voz falhou já denunciando o embargo que a acometera.
— Charlotte... — Chamei. — Por acaso, fez o ultrassom das seis semanas?
Meus joelhos reclamaram, porque em algum ponto torci minhas pernas numa posição de puro desconforto para enfiar a cara no banco de Steve e ficarmos lado a lado com expressões patetas ao encarar a resposta de Charlotte que veio em silêncio, com lágrimas nas bochechas ela levantou uma fotografia quadrada desenhada pela mistura do preto com o branco, e a aproximou da câmera.
— Amor... — Foi tudo que Steve conseguiu dizer, sua palma da mão esquerda se dobrando como uma cuia sobre o banco, pedindo pela minha.
— Charlotte? Querida, por que tem duas bolinhas brancas aqui? — Agarrei a mão de Steve sem me dar conta que estava usando da força.
— Essas bolinhas brancas serão seus futuros bebês, no plural, são gêmeos!
Fomos a júbilo em segundos, entramos numa espiral de vamos ter dois bebês vamos ter dois berços vamos precisar do dobro de fraldas e Steve pegou uma guinada, para mim, inimaginável.
— Vamos colocar terninhos de três peças neles para o casamento! Podemos usar gravatas borboletas minúsculas! Vamos precisar de uma costureira!!!
— Não. Não podemos! — Minha voz endurecida parecia uma montanha rochosa em sobrestado à energia e vivacidade de suas ideias. Steve entornou o tronco, formando rugas em seu pescoço abaixo do sorriso ainda intacto de quem acreditava que eu só estava sendo bem humorado com uma falsa negativa. Mas bastou colocar os olhos em mim e seu olhar hesitou, ele engoliu o próprio divertimento e deu lugar a expressão perplexa que fez o taxista erguer as sobrancelhas, esperando por uma briga enervada entre dois homens.
— Como assim não podemos?!
— Não podemos porquê... — Cocei as rugas em minha testa, diante do óbvio que Steve me obrigava a declarar. — Não dá pra por roupinhas em fetos!
— Os fetos vão se tornar bebês e vão nascer, então vamos por roupas neles!
— Daqui há sete meses!!! Vamos esperar sete meses para nos casar?!!
— Podemos. Quer dizer, não marcamos data, certo?
— Exatamente. Não marcamos data. Você ainda pretende marcar data?!
— É claro que sim. Meu Deus! Do que diabos você está falando?
— Nada, Steve.
— Danny.
Eu não queria ter aquela conversa num taxi em Hilo com os nervos à flor da pele, um caso sem solução e ciente agora de que Grace estava ao volante numa estrada movimentada que ligava Nova York à Jersey, provavelmente ainda censurava Sam pela inconveniência, e Charlotte deveria estar perdida e solitária no branco traseiro do carro, quem sabe contendo um enjoo duplo pela gravidez.
— Depois, Steve. Você deixa tudo pra depois, deixe essa conversa também.
— Por favor, pare o carro. — Steve pediu com impaciência ao motorista, se dando conta finalmente de que tínhamos plateia e que aquilo era constrangedor. Ele saltou do carro com olhos esbugalhados para mim, me chamando para fora.
— Isso é infantil. Temos que voltar a Honolulu.
— E nós vamos. Assim que você me dizer porque estamos brigando.
— Não estamos brigando. Estamos discordando de coisas... fundamentais.
— Pelo menos concordamos que nosso casamento é algo fundamental.
Sorri desajeitado, sem conseguir simular direito minha ironia machucada.
— Acha que não me importo com o nosso casamento? Acha mesmo que não ligo? Que não sou “um dos interessados”, certo? Nem sou do time véu e grinalda.
— Eu nunca disse isso, mas se quer saber, não seria ruim parecer um pouco menos entediado com o que deveria ser o dia mais feliz da sua vida. Você nem finge que está empolgado, que é algo novo, já viveu tudo isso antes, não é?
— Nunca vivi isso antes, Steve. Ter me casado de forma imprudente com uma sociopata sabe lá quanto funcional e ter sido infeliz na mão dela não tem nada a ver com o que estamos vivendo. Isso é tão novo pra mim como é pra você.
— Então por que você parece tão... frustrado?
— Você levou dez anos pra dizer que me ama, eu fui envenenado pro nosso primeiro encontro acontecer e eu fico pensando que coisa terrível precisa acontecer pra você parar de postergar nosso casamento e simplesmente marcar a data. Você quer que a cerimônia seja perfeita, eu só quero que você seja meu, eu quero uma lua-de-mel longa, quero transar com você como se não houvesse amanhã. E não dá pra fazer isso com dois bebês lindos chorando ao lado!
— Uau... Então, você só está... com saudade? É só isso? Não estou presente?
— Não. Você só fala sobre tecidos e paletas de cores e agora quer estender isso por sete meses. Eu sei que isso é meio fofo, mas sinto que você está fugindo, se refugiando nos detalhes do casamento, e se esquecendo do noivo.
— É que... eu me sinto em dívida, Danny. Outro dia fui fazer a lista de convidados, fiz uma tabela com nossos nomes e um traço no meio. Que bobagem fazer isso. Fora os nossos amigos em comum, a minha lista se resumia a Mary, acompanhante de Mary e Joan. Nenhum pai biológico ou de coração para me levantar ao altar, Dóris provavelmente nem vai saber que estamos apaixonados, que vamos nos casar e que ela terá dois novos netos...
— Queria que ela viesse ao casamento? — Pergunto, curioso e solícito.
— O quê?! — Steve franze o cenho. — É da Dóris que estamos falando!
— Também estamos falando da sua mãe, aquela que lia Moby Dick pra você dormir.
— Eu... eu não sei, Danny. É irrelevante pensar nisso. Só quero que você entenda, não tenho parentes pra encher nosso casamento, então pensei em preencher tudo com tecidos e paletas. Mas o que me importa mesmo é você.
— Tudo bem. Eu me importo com nosso casamento, só estou com saudades.
Uma trégua sólida se estabeleceu entre nós, mas havia restado uma rusga do saber que ainda havia certo desamparo no olhar de Steve, assim como no meu.
...
— Vamos direto ao ponto, Reitor Douglas. O porão fica sempre trancado?
— Sim! Veja bem, os alunos são criativos e desde que o professor Hunter encheu aquele lugar com quinquilharias químicas, precisa ficar sempre vedado.
— E quantas chaves existem? — Me jogo na conversa.
— Uh... duas. Uma ficava com o Hunter, e outra... é da reitoria.
— Qual delas foi entregue ao novo professor de teatro?
A conversa tomava uma curva que claramente desapontava o reitor Douglas. O homem parecia disposto a falação sobre os alunos curiosos e suas manobras eficazes para conter os dramas adolescentes, mas a ideia de tratar sobre as chaves despertava um desacordo em seus olhos, e sumia de vez com seu sorriso.
— A chave da reitoria, é claro. — O reitor reergueu a coluna que havia se desprendido da cadeira, e ajeitou o colarinho do terno de risca de giz.
— Por que é claro? — Pergunto, usando um sorriso arrevesado.
— Bom... como eu disse mais cedo ao colega de vocês, Ho Kelly, Hunter foi embora com uma pressa absurda. Ele não chegou a me devolver sua chave.
O único problema era que Hunter havia deixado claro mais cedo que havia entregado sua chave. Steve me entregou um olhar confidente sobre isso.
— Onde ela está? — Perguntou Steve, com a expressão desconfiada.
— O quê? — O reitor coçou a cartilagem em arco da orelha direita.
— A única chave restante. Já que o senhor afirma que não tem a de Hunter.
— Oh, sim! — O reitor estremeceu, seus olhos lhe traíram correndo direto pra gaveta da sua mesa em L de madeira nobre cor de café forte. — Ela... ela foi usada para abrir a porta pela manhã, quando recebi Max e todos vocês.
— E onde ela está agora? — Insisti, enquanto Steve revirava os olhos amostrando para o reitor que sua negação já havia expirado nosso limite.
— Talvez esteja na porta?
— Nenhuma chave ficou na porta, Reitor. Fale logo que está na gaveta!
O reitor se encolheu diante meu tom alterado, mas em seu rosto vi a animosidade se formar. Toquei o joelho de Steve abaixo da mesa.
— Danny! — Steve me chamou a atenção. — Esse é o reitor dessa universidade. Se ele soubesse onde está a chave, já teria dito. Afinal, mentir para oficiais da justiça é facilmente tido como ocultação de provas do delito, o que é crime!
— Eu sei, eu sei. — Ergui minhas sobrancelhas. — São multas caríssimas!
— Dois a seis anos penal. — Steve acrescentou com um biquinho marcado.
— E é claro, você nunca mais pisaria os pés numa universidade.
Nossos olhos caem no colo do reitor que assente com firmeza.
— Tudo bem. Acabei de me lembrar que guardei a chave aqui na gaveta.
Em desânimo e apreensão, o reitor abre a gaveta e nos entrega a chave, os dedos sumindo abaixo da mesa, onde aposto que se retorciam na torcida vã de que fôssemos idiotas ao ponto de não notar o chaveiro com as inicias HK.
— Vamos aproveitar o momento de honestidade repentina, reitor Douglas. Essa é obviamente a chave de Hunter Konani. Onde está a sua chave?
— Eu... a perdi. — O homem amoleceu na cadeira como um sorvete ao sol.
— E o que fez? Trocou a fechadura? Deu queixa da perda da chave? — Perguntei e vi o reitor piscar sem parar evitando nossos olhos.
— Ele não fez nada. — Concluiu Steve. — Sabe quem a pegou, não sabe?
— Eu não posso acusar ninguém sem provas. — Ele conjectura.
— Verifiquei os registros de funcionários da universidade, reitor Douglas. O senhor tem uma equipe pequena de zeladores, mas parecem eficientes. Eles não tinham uma própria chave? Como faziam a limpeza do porão?
— Não faziam. Hunter fazia questão de limpar tudo ele mesmo, desde que...
— Desde que o quê? — O incentivo, visto que ele havia decidido se calar.
— Eu disse que os alunos são criativos...
— Eles não estavam interessados nas quinquilharias científicas, estavam?
— Não, comandante. O lugar vinha sendo usado como... um ponto de encontro para casais desesperados sem um lugar decente para... vocês sabem.
— Então, ofereceu o porão à Hunter, como forma de inibir as visitas? — Pergunto. Uma dedução que finalmente explica a habitação exclusa de Hunter.
— Hunter não se dava bem com os alunos. Eles eram bagunceiros e estavam sempre quebrando seus beques, foi vantajoso para ele também usar o porão.
— Isso explica algumas coisas. Mas e os zeladores? Não entravam no porão?
— Não! Eu já disse. — Disse o homem impaciente, buscando Steve como se dissesse que eu estava distraído ou era ignorante demais para acompanhá-lo.
— O engraçado em tudo isso, Reitor, é que hoje de manhã uma de suas zeladoras me ensinou exatamente como resolver a manha da porta do porão. Acho que o senhor vai se lembrar bem dela, caucasiana, um metro e meio, olhos levemente repuxados e escuros, um sorriso dócil. Maureen Brown, se lembra?
O reitor fechou os olhos profundamente, zunindo como um inseto.
— Maureen é eficiente no trabalho. Talvez tenha sentido vontade de seguir sua estima profissional e entrar às cegas no porão para checar a limpeza...
Steve estreitou os olhos para mim.
— Esse homem é inacreditável, não é? Se daria bem na política, senhor Douglas. — Digo, sorrindo e cavando um sorriso frutífero em Steve.
— Diga logo como Maureen conseguiu as chaves. Não oculte evidências. — Steve fez menção novamente a suas ameaças passadas.
— Como eu disse... ela é eficiente no trabalho e... Bom, minha mulher é uma senhora encantadora, mas nunca se deu com uma vassoura, por isso as vezes, em fins de semana livres, contratava Maureen para uma faxina em minha casa.
— Faxina? É assim que chamam ter um caso hoje em dia? — Pergunto.
O silêncio do reitor coloca uma pedra onde eu apenas jogava verde.
...
— Então, o reitor tem um caso com a zeladora e ela rouba a única chave que pode ter sido usada para a vítima entrar no porão? — Pergunta Tani elaborando com as mãos ao ar, tentando compreender aquela teia confusa.
— Sim. Só não fazemos ideia se a zeladora era a namorada de Victor Mauliola, afinal Maureen tem idade para ser sua mãe, mas nunca se sabe. — Dei de ombros, tentando captar a origem do que roubara o olhar de Steve.
— Junior, encontre Maureen. — Pediu Steve, um tanto quanto distraído.
— Disse que algo interessante aconteceu. — Instiguei Tani, enquanto Junior se afastava com seus olhos de águia e Steve continuava introspectivo.
— Uma professora. O nome dela é Broodrayne. Eu sei, eu sei. Ela tentou entrar no porão, ignorando as faixas de isolamento. Deu uma de João sem braço para tentar entrar, mas estava com os nervos à flor da pele.
— Eu também estaria se tivesse um nome desses. Traz ela pra gente, Tani.
Tani se foi com seu andar determinado de quem arrancaria aquela mulher pelo cabelo, caso julgasse necessário. Era minha chance de resgatar Steve.
— Onde você está, hein? Ah, me deixe adivinhar. Ideias pro casamento?! — Por trás do meu tom zombeteiro, eu realmente acreditava naquela ideia.
— Não, seu bobo. Não dessa vez. Escuta... pode não ser nada, mas Dener Mauliola disse que estava atrasado para o trabalho. Mas Samantha disse algo que eu não havia me dado conta, hoje é dia do Colombo. Geralmente me situo por feriado quando Charlie fica em casa, mas...
— A escola dele faz atividades recreativas nesse tipo de feriado! — Concluo.
— Exatamente. Mas uma concessionária... não tem porquê funcionar hoje.
— Talvez ele só quisesse nos dispensar.
— Ou demos a ele a informação que faltava ao perguntar sobre Honolulu.
— Acha que ele sabe onde está o... corpo do filho?
— Ou quem sabe o assassino do filho.
...
— É oficial. Dener Mauliola pegou um voo de Hilo para Honolulu. — Kono deu com as unhas curtas na mesa e se virou para nos encarar.
— Chin.
— Deixa comigo, McG.
Chin se coloca de pé num estalo, já retirando as chaves da moto do bolso.
Como numa corrida de revezamento, Adam adentrou a antessala no mesmo momento em que Chin em cortesia segurava a porta de vidro para o colega.
— Podemos não ter localizado o paradeiro de Maureen Brown, mas o histórico bancário dela fala por si.
Adam debruça sobre a cadeira de Kono, que apruma a cabeça para o lado lhe dando passagem e encaixa um pen drive do tamanho de um molar numa das entradas quase invisíveis da borda da mesa.
— Mas que merda? — Lou meneou a cabeça, o rosto impressionado. — Vou pedir agora mesmo minha demissão e passar a limpar corredores de escolas.
— Alguma chance de ela ter outro emprego noturno? Ou fins de semana?
— Vocês não acham bonitinho a inocência desse homem? — Perguntei, ciente que todos estreitaram os olhos em minha direção com sorrisos e reviradas de olhos.
— Bonitinho? — Steve sugou o interior das bochechas, se esforçando para não sorrir diante do meu irônico, mas ainda assim, elogio.
— Sim, meu amor. — Lou deu um cutucão no cotovelo de Adam, que ignorei. — O único segundo emprego dessa mulher se chama chantagem.
— Tô com o Danny nisso aí. — Mencionou Kono, dando zoom nas datas dos pagamentos da conta cheia de entradas e saídas em nome de Maureen Brown.
— Quem ela estava chantageando? — Perguntou Adam, de olhos fixos na quantidade de depósitos gordos que caiam na conta de Maureen.
— Acho que a pergunta é quem ela não estava chantageando. — Respondeu Lou. — É impressão minha ou são contas diferentes?
Kono movia os dedos com a agilidade de costume, que parecia agora mais afiada uma vez que sua capacidade se extinguia aos trabalhos sobre o teclado.
— O Reitor Douglas pode ser um cretino, mas ele é vaidoso, se preocupa com a reputação. Não queria que o porão se transformasse num bordel, não queria o nome manchado. Quando deu por falta da chave, Maureen tratou de manter o bico dele bem fechado. Provavelmente ameaçou contar para a esposa.
— É, o haole tem razão. E o silêncio dela não saiu barato.
— Então, Maureen rouba a chave do porão, ameaça Douglas e mostra que não está brincando, tira o dinheiro dele. E depois? — Pergunta Steve.
— O que não entendo é porque na metade de 2017, Maureen passa a ser bancada por outro número de conta. — Kono aponta com o indicador.
— Talvez a esposa do reitor tenha dado pela falta do dinheiro, ele teve de criar uma segunda conta para cobrir o rastro? — Sugere Adam.
— Ou se levarmos em conta a data, ela passou a chantagear o assassino. — Digo, com um formigamento de excitação incontrolável na voz.
— Kono, Jerry, quebrem o sigilo do banco, vamos precisar de nomes. — Finaliza Steve, com a mesma empolgação levemente contaminada pelo receio que sei ser fruto da ligação da governadora, nos colocando num campo minado.
...
A senhora Broodrayne equilibrava o azul da sala de interrogatório com um terninho acinturado em vermelho cereja em sua coluna perfeitamente ereta, de pernas cruzadas e um biquinho insolente poderia parecer apenas uma dama bem vestida, de olhar sensato demais para as correntes e a cadeira chumbada.
— Os cavalheiros não vão se sentar? — Perguntou a mulher numa tentativa descabida de cortesia e sedução barata.
— Os cavalheiros estão aqui a trabalho. — Respondi com um sorriso duro.
— A senhora trabalha na universidade de Manoa? — Perguntou Steve.
— Professora de história e teoria da arquitetura há quase uma década.
— Parece importante. Infelizmente acabou o chá com biscoitos. — Digo.
A mulher torce o tronco e aperta os joelhos ossudos em seu colo.
— A senhora participou do congresso de arquitetura e urbanismo que aconteceu na universidade em que leciona em junho de 2017?
— É. Eu sempre sou convidada a participar. A universidade quer demonstrar ser pró ativa a favor das minorias.
— Imagino que mulheres nem sempre ocupem cargos como o seu.
— Acredito que imagine mesmo. Inclusive, onde está a garota durona que me trouxe até aqui? Eu me sentiria muito mais confortável falando com ela.
— Eu já disse. Acabou o chazinho com biscoito. — Respondi, impertinente e desinteressado, com os braços cruzados na frente do corpo enquanto ela tentava me ignorar e era coibida a criar certa empatia por Steve.
— Conhece Victor Mauliola? — Pergunta Steve rápido como uma bala.
Os lábios da professora são fisgados para baixo em questão de segundos, ela engole a própria saliva e tenta dissimular a indiferença de um minuto atrás.
— Não.
— Talvez o conheça como Trevis O’Conor.
— Não conheço nenhum Trevis. Achei que só existiam nos filmes ruins.
— Preciso que se esforce um pouco mais. — Steve mostra a foto de Victor Mauliola que Eric nos encaminhou mais cedo quando identificou o DNA.
Os lábios dela tremem outra vez. Por trás da figura alegórica da megera dura e fria escondida sob ternos de corte perfeito, percebo um toque de dor.
— Não me lembro. É um aluno? Eu tenho muitos alunos.
— Troca mensagens tarde da noite com todos os seus alunos, professora? — Pergunto e percebo nos olhos dela a confirmação que precisava, junto da insegurança de quem não esperava que tivéssemos aquela informação.
— Estou sendo acusada de alguma coisa, Detetive?
— Afirma não conhecer Victor, muito menos Travis. Como explica isso?
Estendo minhas mãos como uma estante de partitura e mostro dois prints feitos por Kono mais cedo, da professora Broodrayne de sobretudo granizo conversando com pouca reserva e certa enervação com Victor Mauliola.
— Ah... isso foi há muito tempo. — A professora parece prender a respiração, enquanto faz uso de uma indiferença muito mais profunda que deveria para parecer crível.
— A senhora não respondeu à pergunta do meu parceiro. — Steve insiste.
— Eu não sou boa com nomes, mas me lembro do rapaz... um tino impressionante para ilustrações. Ele me procurou numa dessas convenções, queria elogiar um artigo que eu havia publicado na época. Um entusiasta.
— “Não vejo a hora de voltar para HNL. Já estou com saudades de você.”  — Escolho aleatoriamente da folha A4 em minhas mãos, onde Jerry havia impresso o registro telefônico que a polícia de Hilo optou por ignorar uma vez que não haviam encontrado o aparelho celular.
— São muitos elogios de fato, senhora Broodrayne. — Diz Steve entrelaçando os dedos na frente do corpo, paciente e amigável, enquanto se aproxima da professora e curva o pescoço em sua direção. — E tenho de concordar em algo, a senhora é muito inteligente. Então vamos direto ao ponto dessa vez, pode ser? Sabemos que mantinha uma relação pessoal com Victor Mauliola. Ele não era um aluno seu, estudava em Hilo, só aparecia durante as convenções. Imagino que usava os eventos como pretexto para vê-la.
Todo o silêncio da professora deixa claro que ela está ponderando, agora que percebe que sabemos mais do que ela previa.
— Tudo bem, isso não é crime algum de qualquer forma. — A professora prende os olhos numa das quinas da parede, o pensamento bem mais longe. — Eu havia acabado de publicar meu artigo, logo antes da primeira convenção.
— Quando foi isso? — Pergunta Steve, me aproximo interessado.
— 2015. Era segundo semestre, talvez setembro.
— Victor ainda não estava na universidade em 2015. — Digo.
— Não, mas eu não sabia disso na época. Ele era um dos formandos do colégio, eles também são convidados como uma espécie de marketing para angariar futuros alunos em nosso curso. Como eu estava dizendo, publiquei meu artigo, foram noites sem dormir, mas o resultado valia a pena. Só que uns babacas desgraçados do conselho estudantil não pensaram do mesmo jeito, colocaram defeito onde não tinha simplesmente porque estavam intimidados, vocês precisam entender que a disputa por cargos altos é selvageria pura. Eu estava exaurida, devastada pela afronta dos meus colegas, irritada pelo caráter patético daquelas alegações e... Victor apareceu com todo aquele fôlego jovem, mas um rosto bonito e maduro, e acima de tudo, entusiasmo e inteligência. Ele compreendia não apenas o meu artigo por completo, como a perseguição ao meu redor. Eu me deixei levar, saímos pra beber e ele percebeu que eu não iria adiante se soubesse que ele nem estava na universidade, então ele me disse que era calouro e naquele momento, isso bastou. Passamos uma bela noite juntos.
— Então ele se candidatou e concretizou o que começou com uma mentira; se tornou um calouro da universidade de Hilo e voltou na próxima convenção? — Perguntou Steve.
— Exatamente. Quando ele já estava dentro, confessou para mim que no passado era apenas um formando, mas já estávamos envolvidos e eu aceitei.
— Se ele já estava dentro, por que usar o nome de Trevis O’Conor para se infiltrar nas convenções até aqui? — Pergunto tomando lugar ao lado de Steve.
— Não sei ao certo. Tudo que sei é que Victor não queria que o pai soubesse que ele vinha para Honolulu. Algo a ver com o passado deles aqui na cidade. Em paralelo a isso, Victor tinha um colega de quarto idiota, cujos pais aumentavam a mesada sempre que ele parecia envolvido nos eventos estudantis, então Victor sugeriu o acordo e bom... parece que funcionou.
— É. Só que na última vez, algo não deu muito certo. Victor entrou naquele avião usando o nome de Trevis, mas esse Trevis nunca mais voltou. Ninguém investigou no lugar certo, porque o verdadeiro Trevis O’Conor está vivo e bem vivendo sua vida de farras em Hilo, enquanto Victor foi esquecido no tempo. — As palavras de Steve vão perfurando uma a uma a expressão rija da professora.
— Eu não o esqueci. — Sua voz tremula. — Eu nunca o esqueci, tá ouvindo?!
— Se isso é verdade, está na hora de dar a Victor a mesma paz que ele te deu quando compreendeu que você foi vítima de um sistema machista e competitivo. Dê paz a esse garoto e sua família e nos conte o que aconteceu. — O que deveria ser manipulação se torna uma súplica em minha voz já terna.
— É... essa é a hora que eu deveria pedir por um advogado, não é?
Troco um olhar rápido com Steve, pensando que posso tê-la forçado demais, mas Steve faz um gesto esperançoso e curto com os dedos.
— É o que a senhora quer?
A professora esfrega os dedos com brutalidade abaixo de suas narinas úmidas.
— Malditos advogados. Homens de terno e gravata nos mandando calar a boca e dizer sim, não ou não me lembro até que todos fiquem cansados disso. — A mulher bufa e põe fim na luta de segurar as lágrimas. — Eu não matei o Victor. É o que querem saber, não é isso? Pois bem, eu não o matei.
— Não é o que queremos saber. É o que você quer que saibamos. — Digo.
— Se quer nos convencer mesmo disso, conte tudo o que aconteceu.
A professora descruza as pernas e parece despir os olhos molhados e tristes.
— Sou a quarta filha de três homens. Minha mãe é dona de casa, meu pai tem uma oficina mecânica, os três filhos; advogados e homens estúpidos, babacas e decrépitos. Ninguém nunca esperou que eu teria um único diploma. Uma panela cheia de comida e roupas para lavar era só o que viam em mim. E eu quase cai nessa, engravidei jovem e tive um filho. Mas não ia acabar como minha mãe, ela me ajudou a cuidar do Jonas e eu estudava a madrugada toda. Cheguei onde cheguei subindo cada degrau com meu esforço, nada foi me dado de graça e eu não suportaria que tirassem isso de mim, entendam. Victor era pra ser coisa só de uma noite, mas ele não desistia fácil e eu me deixei levar. Não era necessariamente um problema porque ele sabia ser discreto e como sabem, morava muito longe, mas eu tinha medo que todos descobrissem, ninguém entenderia, para todos ele era apenas um garoto de vinte e eu uma professora de trinta. Ia fazer dois anos que estávamos juntos, do nosso jeito, quando cometi meu primeiro erro. Contei sobre meu relacionamento para uma amiga, ou para alguém que eu acreditava na época ser uma amiga.
— Maureen Brown? — Deduz Steve, pensando no acesso à chave do porão.
— Vocês sempre sabem de tudo, não é mesmo? — Ela pergunta um tanto quanto impressionada.
— Por que deixou de acreditar que Maureen era sua amiga? — Questiono.
— Quando contei pra ela, no alto na emoção por finalmente compartilhar aquilo com alguém, ela ficou admirada, não sei se por nunca ter me imaginado com alguém ou se por ele ser jovem e atraente. O tempo foi passando e Maureen grudou em mim como um carrapato, ela aparecia no meu apartamento em horários inconvenientes, as vezes queria dormir por lá. Queria forçar uma amizade estreita que nunca tivemos, como se fôssemos adolescentes, e o principal, Victor, ela nunca mais parou de tocar nesse assunto. Quando ela descobriu que ele viria para a convenção em Honolulu, Maureen surtou. Eu sabia que ela podia ser um pouco intensa e paranoica as vezes, mas ela realmente surtou, disse que eu tinha que terminar tudo com Victor. Eu a mandei embora, ela apareceu com fotos minhas e dele no meu apartamento, eu não fazia ideia de como ela tinha conseguido aquelas fotos e a mandei embora. No dia da convenção, ela apareceu na universidade com um envelope pardo e ficou sacudindo-o pelo salão, louca pra derrubar o conteúdo dele no chão e junto daquelas fotos, meu emprego e minha reputação, é claro. Eu cedi, disse que tudo bem, terminaria com ele, mas teria que ser depois e ela disse não. Eu não sei o que diabos aquela mulher maluca queria, mas sob pressão concordei. Terminei tudo no meio do salão, Victor... ficou consternado e confuso, daí essa cena que vocês trouxeram nas fotos, ele estava nervoso, eu não queria chamar a atenção, Maureen uma bela amiga como era me arrumou as chaves do porão, um lugar calmo e seguro para que pudéssemos conversar. Fomos até o porão.
A professora parou de falar, a tensão reverberando no ponto alto da sala.
— O que houve no porão? — Perguntou Steve com a voz severa. — Hellen?
Era a primeira vez que ele usava seu primeiro nome, ela o encarou dura.
— Foi um acidente, eu juro. — A professora se desfez aos montes de lágrimas que varriam sua face, sem nenhum resquício da mulher fria de alguns minutos atrás. — Victor estava confuso e completamente devastado, queria uma explicação plausível, sabia que eu não terminaria com ele sem um motivo. Eu estava triste e cansada, me sentia traída por uma amiga e não entendia a razão, se era inveja, se ela estava obcecada por Victor, por mim... Eu não dei o motivo para ele, não o verdadeiro motivo, não disse que haviam fotos, se dissesse ele tentaria me defender, só disse que sabíamos que àquela hora chegaria, que não tínhamos futuro juntos, que vivíamos em mundos muito distantes, literalmente distantes e que era o fim. — Hellen Broodrayne chora feito criança e sofre ao concluir sua história. — Ele me segurou pelo braço, não usou da força nem nada assim, só não queria que eu fosse embora, não aceitava minhas desculpas idiotas, eu me desvencilhei dele e...
— E...? — Eu e Steve perguntamos ao mesmo tempo.
A professora soluçou e sua boca parou aberta como num bocejo prolongado.
— Ele tropeçou, bateu com a cabeça na parede. Foi um único passo em falso no meio de todo aquele choro e desespero e de repente, ele caiu e não levantou. Eu fui até ele, estava escuro mas tinha sangue, ele não se mexia, eu gritava, ele não respondia. Tirei meu sobretudo, não sei exatamente o que passou pela minha cabeça, ele parecia com frio, joguei em cima do corpo dele, talvez eu não quisesse ficar encarando todo aquele sangue, os olhos fechados, os lábios presos num grito. Maureen apareceu, eu pedi que ela chamasse uma ambulância, ela me disse que cuidaria disso e me mandou ir embora, eu estava a isso aqui de dizer que não, eu tinha que ficar, ir junto dele para um hospital, prestar esclarecimentos, Maureen berrou para que eu fosse embora e me entregou o envelope. Eu fui.
Steve passou os olhos por meu rosto, avaliando minha crença na história. Dei de ombros, eu acreditava na professora, mas me parecia ainda inconclusiva.
— E depois? — Perguntou Steve.
— No dia seguinte procurei Maureen, eu estava arrependida, sabia que não devia ter ido embora. Ela me mandou esquecer o que aconteceu, esquecer o Victor, eu insisti por notícias dele, até ameacei chamar a polícia. Só que Maureen dobrou sua aposta, além de me ameaçar, ela decidiu me chantagear.
— Espera aí. Desde que descobrimos as chantagens, atribuímos a carta ao Hunter Konani à Maureen, a chantagista. Mas ela nunca se preocupou em manter o anonimato com suas vítimas de chantagem... — Steve coloca.
— Nem mesmo em esconder a cena do crime, afinal ela não limpou o local. — Corroboro para a sacada astuta de Steve.
— Porque tecnicamente, ela não estava lá. Você por outro lado, tinha um namoro escondido, um termino caloroso, uma chantagem em andamento e é claro, seu sobretudo enrolado num corpo. Você escreveu a carta pro Hunter!
— Vocês são bons... Mas sinceramente? Eu nunca teria espalhado o boato sobre Hunter, mas sabia que ele iria embora, como eu disse é selvageria pura. Tudo que arranquei de Maureen foi que não havia corpo algum no porão e que ela havia usado um móvel para esconder o estrago na parede. Nada mais. Tive dois anos para conferir o lugar, mas não tive coragem nem por um dia sequer.
— Por isso tentou entrar hoje. Ficou sabendo que uma mancha foi descoberta.
— Eu estava desesperada. Sabia que a circunstância não estava a meu favor.
— Steve assente para mim, ele não tem mais questionamentos.
— E o seu filho? A senhora parece trabalhar e estudar tanto, onde ele está?
Perguntei, ciente de que a pergunta não acrescentava na investigação, mas causava um rombo no rosto de solidão da professora.
— Com minha mãe. Mal consigo vê-lo desde o que houve com Victor, não consigo olhar nos olhos do meu filho há quase dois anos sem pensar que... o filho de alguém nunca mais vai voltar pra casa e eu... eu não o ajudei...
— Vai mesmo precisar de um advogado. — Diz Steve repentinamente seco. Algo me diz que a ideia da mãe covarde abandonando o filho por medo de seus próprios fantasmas o faz pensar em alguém que ele conheceu de perto.
A porta da sala azul range em nossas costas. Tani parece sem fôlego.
— Precisamos de vocês. — Ela nos chama com a voz enérgica e alta.
— O que houve? — Pergunta Steve, puxo a porta pelo lado de fora.
— Dener Mauliola desceu do avião antes de Chin alcançá-lo, ele pegou um taxi, Chin está na cola dele.
— Vamos. — Steve decide num pulo.
— Espera! Tem mais uma coisa. Brown é sobrenome de solteira e Maureen é um nome adotado. Seu nome verdadeiro é Amelia, e no passado, era Mauliola.
— Ela é a mãe do Victor? — Pergunto retoricamente. — É claro que é!
— É atrás dela que Dener está indo... Danny! O endereço! A tal casa!
...
A primeira coisa que notei foi que o muro de entrada havia sido levantado alguns centímetros com base na imagem por satélite que tínhamos visto, Steve já deu por falta dos vasos de plantas que rodeavam a casa no desenho de Victor. Mas não havia como negar que todas as duas versões se tratavam desta casa. Em especial por ser o destino final do passeio apressado de Dener em seu taxi.
— Senhor Mauliola. Preciso que pare onde está. — Disse Steve.
Ele havia vestido uma camiseta de algodão e seu uniforme de proteção. Nossa equipe se reunia em torno da residência e eu dava cobertura à Steve, parado ao lado de onde há um minuto atrás havia um taxi saindo às pressas.
— Comandante, por favor. Eu preciso saber o que houve com meu filho!
Disse o homem diante da porta, com a mesma camisa branca e calça social que usava em Hilo, agora superficialmente amarrotado e de feições esgotadas.
— Vai saber. Já chegamos até aqui, vamos descobrir o que houve com o Victor ainda hoje. Para isso, precisamos saber. Maureen é a mãe de seu filho? — Pergunto e noto a raiva e o medo se organizando no rosto do pai.
— Fiz de tudo para afastá-la do Victor e veja só no que deu...
— O que houve, senhor Mauliola? Por que decidiu por afastá-la do Victor?
— Porque ela é louca, detetive. Amelia Brown é completamente louca, paranoica, controladora e obcecada por deixar todos ao seu redor loucos como ela. Quando Victor tinha dois anos, eu trabalhava numa firma para um homem muito rico e carente, ele adorava beber depois do trabalho e jogar golfe aos domingos, e ele me adorava, mas Amelia não entendia, vasculhava minhas roupas, tinha certeza de que eu tinha outra. Numa noite fiquei até tarde preso com meu chefe e recebi uma ligação do hospital infantil, Victor tinha quebrado o braço. Ele só tinha dois anos, Comandante, vocês são pais, Detetive, o que fariam no meu lugar? Amelia nem se deu ao trabalho de inventar algo mais plausível do que dizer que ele caiu! Simples assim. Por isso fui embora, deixei a casa para ela e insisti que ela desaparecesse da vida dele e mudasse seu nome.
Fui tomado pela compaixão que sentia pelo pai que fez de tudo para proteger o filho dos males do mundo e acabou declarando derrota nas garras do passado. Aconteceu tão rápido como um galho seco se despedindo da árvore e sendo carregado em vai e vem até a poeira amarelada do chão. Dener que pisava um tapete puído que creio um dia ter trazido uma mensagem de gentileza, foi sugado para o interior da casa em movimentos estreitos, rápidos, e sem gerar resistência. Num segundo, Dener estava sob nossos olhos, e no outro a porta foi aberta, ele foi colhido como uma entrega de jornal e a porta bateu, antes que pudéssemos tomar qualquer atitude calculada que levasse em conta o desejo de Dener de arrancar pela raiz a verdade sobre o paradeiro do filho, e ainda que respeitasse o limite imposto pelo que se parecia uma pistola carregada nas mãos trêmulas que um dia responderam por Amélia. Por que demorou tanto? A ouvimos dizer.
— Gente! Vocês precisam ver isso! — Disse Tani em tom agoniado.
Com os dedos presos nos gatilhos, seguimos Tani e vimos Adam, Chin e Lou se reagruparem cobrindo nossas faltas na área da frente da casa. Nos fundos haviam canteiros maltratados de flores que não pareciam saudáveis o suficiente e um monte mais extenso de terra remexida que parecia com uma cova esvaziada.
— Droga! — Xinguei, já retornando ao meu posto.
— Kono, você conseguiu acesso? — Perguntou Steve contra seu ponto.
“Tenho visibilidade parcial. Estou com Jerry, ele tem o áudio, chefe.”
— Jerry, nos atualize.
“Ela parece louca, mas está sendo gentil. Disse que esperou muito por esse dia, o marido voltando pra casa. Ele a interrompe o tempo todo, quer saber do filho. Ela quer levá-lo até a sala de estar... ele aceitou, eles estão a caminho e... Droga!”
— Por que droga? O que houve?
“Chefe, é um corpo. Achamos o corpo do garoto e... o pai também o achou.”
A voz de Kono foi suficiente para desenhar em minha mente todas as dúzias de pensamentos torturantes que deviam estar rodeando a mente de Dener agora, mas nada disso seria suficiente para uma entrada forçada de uma equipe tática, que poderia substituir sozinha a gentileza de Maureen por hostilização violenta.
“Gente! O clima tá esquentando. Ele chamou ela de maluca e de assassina, ela diz que ele não entende, não entende que ela apenas queria se reaproximar do filho para que Dener voltasse, para que fossem uma família de novo. Ela ainda acredita nisso, mas ele... ele não consegue mais olhar pro corpo, ele vai sair.”
— Em posição! Nós vamos entrar em 3...
O restante da contagem foi feito nos dedos e aos sussurros, Steve pós a porta velha no chão com tamanha facilidade, entramos lado a lado já informados de onde estariam Dener e Maureen. Os demais checavam os outros cômodos, para evitar qualquer surpresa, eu e Steve seguimos em linha reta, como Jerry nos explicava no ponto, para onde Maureen chorosa apontava a arma para o marido.
Assim que pisamos na sala de estar, ignorei os detalhes perturbadores do corpo em decomposição deitado no sofá maior, calculei a distância mais segura que me permitia ficar próximo de Dener, mas ainda dar cobertura a Steve e é claro, não me tornar um empecilho no caminho da janela até a cabeça de Maureen. Kono sibilou em nossos ouvidos que tinha visibilidade total. Ela arriscaria um tiro daquela distância e provavelmente o resultado seria letal, mas Steve não autorizou, ele queria tentar convencer Maureen a dar um fim justo àquela longa história, que começou em morte mas não precisava acabar assim.
Dener tinha os olhos presos na figura decomposta deitada sem vida no sofá, acho que ele não compreendia que sua própria vida agora estava em risco ou isso já não o importava mais. Steve ofereceu a Maureen um acordo, ele pessoalmente se oferecia para garantir que Maureen recebesse a ajuda necessária para se reencontrar e não fosse condenada por nada que ela não havia feito, afinal ela não matou Victor Mauliola. Não diretamente. Por um segundo tudo parecia resolvido, Maureen sorriu diante as palavras de Steve, sentiu alívio em seu coração, mas no próximo segundo ela disse que havia matado ele sim, de toda forma ela era a única assassina de sua vida, e em lágrimas de culpa e arrependimento ela sentiu toda a dor que coube dentro de uma mãe que toma conhecimento da responsabilidade pelo fim trágico da vida do próprio filho. E então, um tiro. Um único e rápido disparo no canto da sua cabeça, que pensei ter vindo da janela direto do cano longo nas mãos de Kono, mas a janela estava fechada e o vidro intacto. Só então notei que o tiro veio de muito mais perto, Amélia, a mãe que havia se tornado um mero fantasma, assume o controle tomada pelo desejo de vingar a morte do filho, eliminando a única que o queria como moeda de troca, que ao longe sentia-se traída, com inveja do próprio filho, aquele quem tornou sua rotina monótona e a fez perder o marido Dener. Amélia matou de uma vez por todas a articuladora Maureen.
...
Steve deposita tanta fé nas energias que nos envolvem que eu e toda a equipe aprendemos a depositar também. Se tornou uma coisa nossa não deixar que os dias difíceis no trabalho fossem levados pra cima de nossos lençóis, sofremos pelo que merece nossas lágrimas, enterramos o que precisa de paz, mas sempre precisamos de algo mais, como saber que um pai vai se deitar pela primeira vez em dois anos sem se perguntar onde estará o corpo do seu filho perdido, então pensar na vaga ideia de que talvez ainda haja vida, e se culpar logo em seguida por não ter como responder suas perguntas e apenas poder ter esperança, não ter esperança, num jogo sem fim. Não mais. Ele tem suas respostas agora. E Amélia Brown sentiu o gosto da redenção pouco antes de partir. Até Trevis teve oportunidade de aprender uma lição, mesmo que seja sobre não ser omisso para camuflar seus erros. Hellen Broodrayne, que vai provavelmente responder ao processo em liberdade, decidiu não perder mais um dia longe do filho Jonas. Agora só nos resta erguemos nossas garrafas geladas que tilintam aos céus e seguimos em frente.
Posso ter abusado da ideia de seguir em frente, mas de vez em quando vale a pena arriscar um pouco, como esperar que seu noivo se levante para atender o telefone sob pretexto, é claro, de que precisa ir ao banheiro, e assim que ele sumir do seu ponto de visão, me levantar também, deixando Charlie sob os cuidados de Kono e Adam de novo e para Steve deixando apenas o recado enxuto de O Danny pediu para te dizer que vocês tem uma reunião urgente.
A demora de Steve me faz pensar que superestimei meu próprio recado. Uma vez que deixei Charlie com nossos amigos, pensei deixar claro que não tenho pretensão de ir para casa, e dizer que temos uma reunião me pareceu um recurso óbvio que o levasse direto até seu escritório, mas Steve não chega.
Estou lutando contra a ideia de ligar meu GPS para que possa ser facilmente rastreado ou quem sabe até telefonar e avisar que estou sem roupa alguma, mas finalmente ouço o tinir do elevador e passos que conheço muito bem.
É bobo a forma como meu coração dispara mesmo depois de tanto tempo. A porta se abre num rangido contido e vejo Steve, que oscila entre a ansiedade de entender o que está havendo com lapsos de medo da minha imprevisibilidade.
— Peço desculpas pelo atraso. — Steve fica ainda mais afoito ao notar minhas roupas dobradas sobre sua mesa e no topo uma bisnaga em gel branca.
— Desculpas recebidas, o pedido está em análise.
Me inclino de lado no sofá, ajeito o braço que me serve de travesseiro e a coberta mostra um pouco do meu peitoral despido. Steve se aproxima com um envelope em mãos e se agacha na beira do sofá.
— Me avisa quando for aceito? — Ele pede, sua mão se encaixando no meu rosto que ele puxa um pouco para si. Sua boca se abre diante da minha e sua língua se encaixa dentro da minha boca, sinto meus pelos se ouriçarem.
— Depende. O que tem dentro desse envelope?
Brinco com o primeiro botão da sua camisa, torcendo para ele ceder.
— Uma surpresa. Abra você.
Steve balança o envelope ao ar, o tomo e tento deduzir pelo volume o seu conteúdo, mas nada além de paletas de cores impressas visita minha mente.
— Uau! Eu bem que estava precisando dar uma atualizada na decoração do meu escritório! — Digo diante da fotografia ainda morna de Charlotte com um imenso sorriso acima da barriga ainda em formação, sobre sua pele a foto quadrada das duas bolinhas brancas, equilibrada por Grace e Sam, sorrindo de cada lado da barriga de Charlotte, nos lembrando que serão dois bebês.
— Que bom que gostou dessa. Porque a próxima vai pro meu escritório. — Diz Steve num tom defensivo. Passo a fotografia das três garotas para o fundo do maço pequeno de papéis em minha mão, e encontro uma linda lembrança. Charlie vestido como um pequeno aviador, na extravagante, mas excelente ideia que Steve concebeu de buscá-lo na escola direto para o helicóptero do Kamekona. Charlie gostou tanto do passeio que conseguimos extrair dele a verdadeira razão para seu desafeto sobre o futuro bebê, fruto da despedida forçada que viveu com Stan, que após o divórcio com Rachel se casou e teve uma nova filha. Charlie era jovem demais para absorver de forma saudável a ideia de trocar de pai e ainda saber que seu antigo desfruta agora de um novo filho. Não foi necessário mais que uma breve conversa sobre agregar a família, para que Charlie compreendesse que, embora fosse uma decisão nossa de aumentar a família, era indispensável que a decisão fosse aceita por ele. Uma vez que ele compreendeu que não seria substituído, passou a enxergar os lados positivos de ser o irmão mais velho assim como Grace havia nos tranquilizado no outro dia.
— Bom, o que eu posso dizer? Vai combinar com a decoração náutica de fuzileiro...
Quando passo a foto de Charlie para trás, encontro um papel timbrado com certa pompa que demoro para compreender o significado, e assim que minha ficha despenca em meu cérebro, perco as palavras que já havia escolhido.
— Esse seu silêncio é de surpresa boa ou ruim? — Pergunta Steve com a voz calma de quem sabe a minha resposta.
— Isso é... o que eu acho que é? — Escorro os dedos pelo papel, a fim de sentir em sua textura toda a dimensão gigantesca daquela proposta concreta.
— Aceita ser o meu marido, para me amar e respeitar, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza ou na simplicidade, para sempre meu amor?
A voz de Steve saiu calma e firme, cirurgicamente profunda. A voz de um homem que abandonava quaisquer magnanimidade para se tornar logo meu.
— Eu... aceito! É claro que... eu aceito. — Naquele segundo entendi que era mesmo sério. Eu tinha o papel em mãos que traria o sobrenome dele para meu nome. — E você... me aceita como seu legítimo marido para todo o sempre?
— Sim. Eu aceito. — Seu olhar inebriado procurou o meu, ainda um pouco incrédulo. Ele retirou uma caneta do bolso, que estava resguardada para isso.
— Oh Deus... isso é sério, não é? Não imprimiu isso do Google, imprimiu?
Ele sorriu e assinou Steve Jack McGarrett na sua linha pontilhada.
— É legítimo. — Ele me passou a caneta, num tom de desafio.
— Você por acaso roubou isso? Usou sua roupa de ninja essa noite?
Acho que Steve não me ouvia mais, ele estava vidrado em meus dedos que se moviam contra o papel.
— Acho que posso beijar o noivo.
— Pode fazer mais que isso.
E essa foi a primeira noite em que Steve foi o meu legítimo esposo. Naquela noite, celebrando nosso secreto casamento civil no sofá de couro preto do seu escritório, senti a plenitude assustadora que só pode antever uma tempestade.
...

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⏰ Last updated: Jul 07, 2020 ⏰

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