'umi kumakahi

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Foi quando as portas do elevador se juntaram no meio que senti. Começou como uma coceira que os dedos não conseguem alcançar e rapidamente se tornou uma inflamação que se espalhava por todo canto e eu não podia evitar.
— Você... tá sentindo isso?
Danny estreitou os olhos e respirou fundo, tentando todos os sentidos.
— Desinfetante de lavanda, eu diria. Mas o seu perfume é um tanto quanto mais atraente e fica chamando a atenção do meu olfato... — Ele parou de gesticular e sacudiu a cabeça. — Não posso pensar nisso. Você sabe, regra número 3.
— Não provocar um ao outro com olhares, toques e afins no ambiente de trabalho?
— Não! Essa é a regra número 2. Steve, você disse que tinha decorado!
— Amor, isso é bobagem!
— Amor? O que aconteceu com a regra número 5? Sem apelidos carinhosos!
Respiro fundo, tentando não quebrar mais uma regra quando abrir a boca.
— Danny, isso é bobagem. Quer dizer, não somos exatamente os precursores de um relacionamento com colegas de trabalho. A Kono e o Adam são casados, Tani e Junior com certeza tem um lance, por que precisamos de um estatuto de regras e condutas que não são de casal, quando somos exatamente um casal?
— Porque você é o chefe. — Ele arrumou sua postura. — Deles. Não o meu.
— O chefe? — Tentei controlar meu sorrisinho. — Oh, amor, isso foi sexy.
— Steven... acabou de quebrar umas três regras de uma só vez.
Ele inclinou o corpo pro lado contrário, mas sabia que eu estava certo. Sexy.
—  Voltando ao ponto inicial, não é o cheiro. É... essa sensação.
Apertei o botão que forçava o elevador a ficar parado e Danny suspirou.
— Não criamos regras para rapidinha louca no elevador porque achei que não fosse necessário! Isso é inadequado, anti-higiênico e... claustrofóbico! — Ele contou nos dedos enquanto falava, o corpo ainda me ignorando dolorosamente.
— Não é sobre sexo! Dá pra me escutar por um minuto?
Eu o segurei pelos ombros, até ele prestar atenção nos meus olhos e entender que havia uma enxurrada de pensamentos pingando em minha mente.
— Tem cinquenta e oito segundos. E eu juro que vou abrir essa porta. 
— Acordei essa manhã e você estava dormindo, sem roupa alguma, Danny. Em cima de mim e eu não conseguia me mexer, não conseguia sair do lugar.
Ele faz um beicinho lindo, a feição ultrajada ao se virar em minha direção.
— Podia... ter me rolado pro lado ou...
— Não é isso, seu bobo. Eu não conseguia parar de olhar pra você. Sabe aqueles quadros em espiral que você tenta desviar os olhos, mas acaba voltando? E é tão surreal que quando você para de olhar, o resto do mundo perde o foco por alguns instantes? Foi o que eu vi olhando pra você. Você é lindo e então, você abriu os olhos e uau... os seus olhos... e aí você sorriu, então tomamos café, eu, você, Charlie e Eddie, levamos o Charlie pra escola e agora estamos aqui, juntos... indo trabalhar... a nossa vida não é meio... maravilhosa?!
— Se pudessem engarrafar seu entusiasmo ao voltar pro trabalho, e vender, nós ficaríamos ricos... e nem precisaríamos trabalhar.
— Foi só essa parte que ouviu?
— Você tá feliz! Eu entendi. Eu também tô feliz! É isso? Essa é a sensação?
— É, eu tô feliz! Mas não é só isso... não é um copo meio cheio, Amor. —  Vejo quando ele separa os lábios para me repreender, mas acaba desistindo disso quando olha bem pra alguma coisa no meu rosto. — Eu tô transbordando e não consigo parar de pensar que podíamos... compartilhar esse sentimento...
Eu adorava aquele sorrisinho dele, como se ele soubesse que é o cara mais esperto na sala, como se soubesse ler meus pensamentos e talvez até gostasse.
— Babe, você quer fazer um filho. Somos adultos, podemos falar sobre isso.
— É que nós temos filhos, dois filhos lindos que eu amo e não quero que pensem que são insuficientes, porque não são. Mas sim, eu olho pra você e vejo uma criancinha tentando dar os primeiros passos pela casa...
— Eu sei que não sou muito alto, mas... — Ele sorri.
— Não seja adorável, isso me faz querer quebrar a regra número 1.
— Okay, qual a forma mais profissional de dizer isso? Quer um bebê gritando a noite toda? Ficando adolescente e batendo com a porta na sua cara?
— Quero, você não quer? — Senti suor brotando na minha testa e tinha certeza que o dia continuava fresco do lado de fora. — Eu tô sendo ridículo. É claro que você não quer. Por que ia querer mais um filho, já passou por isso!
— Hey! Não surta tentando adivinhar meus pensamentos porque isso me faz querer quebrar a regra número 1 também! Eu realmente gosto do que estou ouvindo. — Sua voz se torna suave. — Eu amo isso... só estou dizendo que... bebês fazem cocô, e gritam, e mamam as três da manhã e eles... eles nunca dormem, Steve. São pequenos mini-SEALS quando o assunto é resistência física, treinados pra deixar a gente completamente louco, e precisam de tempo e fraldas e atenção e mais fraldas.
— Então... você ama o que está ouvindo? Ama a ideia de ter filhos comigo?
— Amo. E essa conversa já saiu de todos os trilhos profissionais possíveis.
— Tem razão. Somos adultos e podemos falar sobre isso. Eu sei que eles precisam de atenção e muitas fraldas, e sei que nunca mais eu vou dormir na minha vida, mas... eu quero ter filhos com você, Amor. Por favor, pensa nisso?
— Vou pensar. Parece que você já pensou um pouco, então eu vou perguntar. Como dizer isso da forma mais profissional possível... O que pensou? Na gente se masturbar num copinho descartável e depois misturar o... material genético com uma pazinha como se fossem dois tons de tinta e ver no que dá?
Franzo o cenho.
— Quando você fala assim parece um pouco nojento e nada profissional, mas talvez, não sei... é uma opção, com certeza é, não pensei muito em como.
— Pense nisso, Comandante.  — Ele aperta o botão do elevador.
— Copiado, Detetive. — Eu o puxo para perto do meu corpo, seus lábios tocam os meus e lá se vai a regra número 1 e todas as que vem depois dela.
...
Quando o elevador se abriu, havia uma recepção a nossa espera.
Lou nos encarava com uma das pontas dos lábios elevados, Kono tinha os braços cruzados na altura do busto e Tani batia os pés impacientemente no chão. Chin e Adam tentavam ser discretos, por isso buscavam disfarçar o sorriso protervo em seus rostos, Jerry já não havia nascido para tamanha discrição.
— Bem vindos de volta! — Junior surgiu diante do elevador e cantarolou de forma cadenciada, como se houvesse um combinado implícito de que todos deviam dizer aquilo juntos, mas só ele o fez.
Não pude deixar de notar o bolo retangular em seus antebraços, a cobertura era branca e eu imediatamente soube que era creme de manteiga, Chin e Kono certamente se lembravam que era meu sabor favorito. No topo do bolo dois palitos de churrasco espetados seguravam a bandeirola que dizia com letras charmosas e curvilíneas: “Sejam bem vindos de volta, McDanno!”.
— Oh, isso é creme de manteiga?!
— O que ele quis dizer foi “Vocês são muito gentis, obrigado gente”!
— Tá corrigindo o chefe, é? — Sibilo para ele, que me fuzila com os olhos.
— Nós já íamos chamar a manutenção do elevador. — Diz Lou, nos avaliando.
Percebo Danny corando em silêncio e mordendo o lábio inferior.
— Vocês... estão aqui há... — Coço meu pescoço e sinto que devia calar a boca.
— Cinco minutos inteiros. O Junior ficou na janela esperando o Camaro aparecer. — Respondeu Tani e eu fico pensando em como na minha cabeça, nós havíamos ficado uns dois minutos e meio no máximo parados no elevador.
— Uau... cinco minutos?! — Pergunta Danny. — Vocês estão me zoando?
— Lorentz e Einstein agradecem pela comprovação. — Jerry percebe os olharem confusos se espalharem. — Teoria da relatividade. Vocês sabem.
— Ele está certo. Parece que vocês não viram o tempo passar. — Diz Chin.
— Vocês foram rápidos, se for pensar por esse lado. — Diz Kono.
Danny sorri de orelha a orelha, tímido. Eu amo aquele seu sorriso.
— Nós... só estávamos conversando! — Ele abre os braços, sem ser convincente. — Somos... profissionais. Apenas colegas de trabalho por aqui!
Estreito meus olhos em sua direção, sem esconder minha expressão de desdém.
— Uh... Quem é McDanno? — Pergunto e faço Danny revirar os olhos.
— Já te disse, Amor- Opa... Steve, eu já te disse que é 2020! As pessoas shippam casais. McDanno somos nós dois, juntos, como um... casal.
— Eu sei, mas queria ouvir da sua boca. — Sorrio. — Colega de trabalho.
— Idiota. — Ele me dá uma cotovelada e eu dou uma piscadinha.
— E você, vem cá me dar um abraço. Parabéns! O Danno me contou! — Puxo Kono para um abraço. Ela deixa um soquinho no meu ombro e me abraça de volta. — Tô tentando não chorar, então, como você está se sentindo?
— Obrigada, Chefe. Eu me sinto como se tivesse comido camarão estragado por uma semana inteira, mas acho que daqui uns meses vai valer a pena.
— Vai sim, se precisar de uns dias... é só falar comigo.
— Devia ouvir o Chefe. — Adam se lança na conversa e me puxa pra um abraço.
— Ah, por favor, não fiquem lembrando esse cara que ele é o Chefe. — Danny comenta, passando o braço em torno do ombro de Kono.
— Parabéns, irmão! Você vai ser um excelente pai!
— Obrigado, Steve. Pode mandar a Kono ir pra casa tomar chá?
— Eu assino embaixo disso, Prima.
— Eu não preciso de cama e chá, pensar nisso me deixa enjoada.
— Eu poderia conviver com isso. — Comenta Danny, pensativo.
— Diz isso porque não é você quem está esperando um bebê. — Fala Tani.
Eu olho imediatamente para Danny e ele pra mim, como dois imãs se procurando exasperados. Lou estreita os olhos em nossa direção com urgência.
— Hey, o que diabos foi isso?! Eu vi isso!
— Uh... Chin, a Abby voltou pro HPD? Duke estava enlouquecendo sem ela. — Danny muda o assunto, descaradamente.
— Voltou. E advinha só? Levou a Quinn com ela. Se deram muito bem como parceiras e agora não se desgrudam mais nem dentro de casa!
— E aquele olhar? Eu ainda não esqueci, meninos. — Insiste Lou.
— Eu não vi olhar algum, mas sei que quero um pedaço de bolo! — Digo.
— Não coma demais. Muito açúcar vai te deixar agitado e não preciso disso.
— Danny, você parece a minha esposa. — Comenta Lou, aceitando a provisória da dupla mudança abrupta de assunto na nossa conversa.
— Porque a Renee com certeza representa o lado racional da relação. — Danny rebate, gesticulando com o braço como um verdadeiro italiano.
— Bom, eu chamo de outro nome. — Lou responde e me oferece o punho para um soquinho, eu estou no meio do caminho para aceitá-lo quando Danny me fuzila com os olhos e acho melhor recolher minha mão enquanto é tempo.
— Racional, meu amor. Tem toda a razão. — Comento desesperadamente.
— Escolha inteligente, McGarrett. Já entendeu como funciona o casamento.
Nossos amigos riem da piada de Lou e eu dou o meu melhor para manter uma distância elaborada de Danny, que diga-se de passagem, está lindo como sempre. Estamos no segundo pedaço do bolo, quando meu telefone toca.
— McGarrett. — Atendo e quando desligo Jerry já entendeu o recado.
— Avante, Avengers! A festa acabou, vistam seus uniformes.
...
— Temos um corpo na orla de Ala Moana. Tani, Junior, vocês vão comigo e com o Danny. Chin, fica por aqui e eu ligo assim que tiver mais informação. Kono, o Jerry vai adorar dividir a mesa com você. E Adam, fica de olho nela.
— Ótimo. — Respondeu Kono, bufando.
Essa era a parte do trabalho que eu não conseguia sentir falta. Saber que a vida de alguém havia sido levada, era exatamente o oposto do que minha mente vinha pensando desde que acordei. Eu estava programado para pensar em vida.
Tentei focar no volante do Camaro, que finalmente estava de volta em meus dedos e essa era a parte divertida do trabalho, poder cortar outros carros no sinal e quando necessário, subir na calçada ou fazer manobras arriscadas que num filme exigiriam o uso de dublês e checagens extras no airbag do veículo.
— Você tá adorando isso, não tá?
— O quê?! Furar uns sinais de trânsito? — Sorrio de lado.
— Isso também, mas eu estava me referindo aos reservas vindo pro time oficial. Quer testá-los, é isso?
— Bom, meu amor, como te dizer isso sem te deixar convencido?
— Regra número 5, Steven!
— Nós estamos no carro, as regras não se aplicam no Camaro.
— Há controvérsias, estamos no carro à trabalho, então regra número 5.
— Okay, Danny, você tem razão. Ouvi dizer que eles fizeram um excelente trabalho e quero ver como se saem em campo com a gente.
— Você adora o Junior, ele é um mini você. Mas não se esqueça da Tani, essa garota vai longe.
Distendo meu pescoço até encarar firmemente seus olhos.
— São como filhos, não podemos ter predileções.
— E lá vem você falar sobre filhos, de novo.
— Muito cedo?
— O sol nem se pôs. Quem sabe no jantar?
— Devíamos sair pra comemorar e chamar todos essa noite.
— E o que vamos comemorar? — Ele sorri, profissionalmente.
— A) A gravidez da Kono. B) O nosso retorno e C) Ainda está em aberto.
— Tudo bem, temos mesmo muito o que comemorar. Independente da C.
Estávamos na via central de uma avenida larga, e como não estávamos em perseguição, respeitei o sinal fechado para não gerar atrito no trânsito. Quase como uma recompensa por minha atitude zelosa, Danny pousa a mão em minha perna e balança os dedos em zigue-zague sobre ela. Eu aperto sua mão.
...
Sempre que o telefone toca, eu sei que algo ruim aconteceu. É o preço que estou disposto a pagar para fazer meu trabalho, mas tem coisas que não dá pra se acostumar. Tem imagens que você não esquece, ficam presas na sua mente como fotografias corroídas que grudaram na tinta da parede e não adianta, elas não saem, e você pode pintar por cima, mas sabe que os resíduos não vão sair.
— Droga. — Danny sibilou e levou a mão à boca.
Notei quando Tani reclinou o corpo na direção contrária, e Junior era o único ali que ainda conseguia manter o foco. Eu já fui assim como ele um dia, mas não conseguia mais. Não conseguia ficar indiferente ao que precisava ver.
— É só um garoto... — Tani comentou.
— Deve ter a idade da Grace. No máximo. — Danny comentou, e de alguma forma parecia que ele estava lendo meus pensamentos mais profundos.
— Vamos... — Eu sabia que precisava manter a linha firme, mas ela tremulava na minha boca. — ...esperar a Noelani, ela já deve estar... chegando.
Danny me olha e parece que naquele momento nós só temos um coração, eu sei o que ele está sentindo, ouço sua voz na minha cabeça perguntando como estou, e dizendo “eu sei, eu sei” antes que eu consiga responder “eu também”.
— Overdose. — É só o que Tani diz.
E então eu me dou conta de que ela tem razão. A pele dele é lívida como uma folha que não foi usada e de longe consigo ver as marcas de agulha em seu braço, cortes verticais em seu lábio carcomido de dentro pra fora e manchas esverdeadas em forma de discos tortuosos sujam sua camisa cinzenta com os números 1975 em letras garrafais, vômito. Não deixo de notar em seu braço esquerdo uma pulseira trançada a couro com um pingente prateado no formato de uma pequena estrela-do-mar. Em vertical, uma frase tatuada acompanhando a trilha de veias quebradas em seu antebraço, leio e não a esqueço mais.
Junior encaixa cada dedo de sua mão na luva e me olha, quase que pedindo permissão, eu assinto. Ele tateia o corpo rígido e encontra uma carteira no bolso da frente do jeans molhado até os tornozelos pelas ondas mais bravas.
— O nome dele é... Patrick Holmes. Vinte e um anos.
Pego meu celular no bolso, e dou mais uma conferida em Danny, os olhos parecem ter morrido um pouco desde que chegamos, passo a mão em suas costas quando me viro para falar no telefone. Ele nem se mexe, está tão abatido pelo jovem caído no chão, que nem ao menos se deu conta do oceano atrás de si.
“Chin. O nome da vítima é Patrick Holmes... preciso que cheque se foi dado como desaparecido.”
“Nada, McG.”
“É só um adolescente! Ninguém se deu conta do sumiço dele?!” — Minha boca poderia ser confundida por alguém distraído com um sorriso agora, mas o sentimento é de repugnância e consternação, aquilo não faz o menor sentido.
“Chin. É o Danny. Encontra os pais desse garoto.” — Diz Danny antes de desligar o telefone que eu mal vi sair da minha mão e ir parar na dele.
— Oi pessoal, desculpem o atraso. O trânsito estava louco. Bem vindos de volta vocês dois! — O som da voz de Noelani é o único que ainda preenche a cena do crime, além das ondas do mar que parecem sentir a vida saindo do corpo estendido na areia, como se elas quisessem se esticar e levá-lo de vez.
— Obrigado, Noelani. — Dou um sorriso rápido e social, ela logo entende.
Poucos minutos nos separam das primeiras impressões da Dr. Cunha.
— De acordo com o resfriamento do fígado e a temperatura alta local, eu diria que a hora da morte aconteceu das quatro as seis da manhã. Mas concordo com vocês, não foi homicídio direto, foi uma overdose. Preciso de um exame clínico, mas quer um palpite? Esse garoto deve usar há um bom tempo.
— O que é isso na mão dele? — Pergunta Danny, observando os dedos fechados do garoto em torno de algo plástico que reluz sob o ângulo do sol.
Noelani desenrola os dedos sem vida e encontra um saquinho tão pequeno que não acomodaria mais que duas moedas, dentro dele raspas irregulares que parecem pedaços de gelo, no saco plástico uma cobra enrolada como um fio.
— Metanfetamina. — Noelani confirma minhas suspeitas. — Conhecem esse símbolo? — Ela entrega o plástico nas mãos de Tani, que o recebe dentro da luva e o encaixa dentro de um receptáculo plástico para evidência criminal.
— É cristal com certeza.
— Então, ele estava injetando isso? — Junior completa.
— Sim. Os usuários costumam derreter e injetar, mas não conheço a cobra.
— Cobra? — Perguntou Danny. — Eu já vi isso antes. No Hilton, Steve.
— Os comprimidos que você interceptou do Doug Sylar.
— Pegamos o traficante, não o fabricante. — Falou Junior.
— Não por muito tempo. Vamos bater um papo com o Doug. — Digo.
— Temos que falar com os pais desse garoto, Steve. — Diz Danny.
— Eles dois vão. Vocês acham que dão conta disso?
— Claro, chefe. — Responde Junior, Tani assente.
— Não acho que ele saiu de casa ontem. Olha só essas roupas deterioradas mesmo antes da hora da morte. — Danny observa com seu olhar clínico, separando as manchas recentes do rasgo e as escoriações que parecem antigas.
— Tem razão. Tem um abrigo, um acampamento aqui no parque de Ala Moana, vejam se alguém reconhece o garoto, podem nos dar uma dica sobre de onde vem as drogas.
— Vamos lá. — Disse Tani.
...
O clima dentro do carro estava nublado. Nuvens de pensamentos pesados sobre minha cabeça e outros achatando Danny, até ficarmos calados e enclausurados ao ponto de o volante não ser mais suficiente. O problema nem era entre nós, mas acho que quando um garoto morre, o problema é de todo mundo. Como se o mundo ficasse doente ao ponto de permitir que acontecesse.
— Pedi demais pros dois? — Pergunto, porque o silêncio é sufocante.
— Talvez. — Danny pondera. — Mas eles merecem a oportunidade.
— Não é nosso trabalho julgar as pessoas, mas...
— Eu sei, vinte e um anos e nenhum boletim de ocorrência.
Danny sacode a cabeça em negativa, a incompreensão estampada no rosto.
— Devíamos ligar para a Lorna Standal. Talvez ela saiba de algo novo.
— Tem razão. Vou, profissionalmente, enfiar a mão no seu bolso da frente.
Sorrio de lado e elevo o corpo até ele conseguir acessar meu telefone.
...
“Lorna, aqui é o Danny Williams. Loiro, gato, gay, ligando do hawaii.”
“E o Steve. —  Completo com um sorriso. — Tudo bem em Nova York?”
“Oi, vocês! É, as coisas estão caminhando por aqui. E o Hawaii? E vocês dois?”
“Nós estamos... — Olho para Danny enquanto falo. — ótimos, e noivos.”
“Wow! Meus parabéns! Vocês merecem toda a felicidade do mundo e eu não estou falando da boca pra fora.”
“Obrigado, Lorna! Mas infelizmente, estamos ligando por outro motivo. Esbarramos num caso de tráfico de drogas com aquele símbolo da cobra que encontramos no Hilton.” — Diz Danny.
“Pensamos que talvez você pudesse colaborar com nosso caso.”
“Interessante isso acontecer agora. Eu posso sim colaborar, depois que voltei para NY, pedi transferência pra narcóticos. Nunca encontrei o fabricante, mas há duas semanas, interceptamos um carregamento de uma substância líquida com aquele símbolo, é ainda mais nocivo que a cocaína e a metanfetamina, é desomorfina.”
“Desomorfina... isso é krokodil, não é?”
“Sim, Steve. Não conseguimos descobrir de onde o carregamento vinha porque não tiveram sobreviventes, mas agora com a ligação de vocês, penso que possa ter vindo daí.”
“Faz sentido. Por isso. Oahu teria acabado no calendário do Doug.”
“Vamos perguntar pra ele. Lorna, obrigado pelo apoio. Pode nos encaminhar suas informações por e-mail?”
“Claro. E parabéns de novo! Eu vou aguardar meu convite para o casamento!”
“Você, com certeza, vai receber um convite dourado, Lorna. Obrigado por tudo!” — Danny responde, e sei que ele está agradecendo pelo caso no Hilton.
...
Era impossível entrar em Halawa, sem ser contaminado pela energia das vidas encarceradas, pisar os pés ali fazia você se sentir imediatamente preso. Toda prisão tem um sentimento de culpa e horror pairando sob o concreto.
Assinamos a ficha de visitantes e esperamos que levassem Doug para uma sala reservada. Pedi por um pouco de privacidade e passamos pela porta.
— Oh, eu me lembro de vocês! — Disse Doug com um sorriso amarelo no rosto. No fundo era verdadeiro, a solidão das selas causava esse efeito.
— Nós também lembramos de você. É o idiota que tentou traficar cocaína no lugar errado na hora errada. — Disse, com os olhos firmes em Doug.
Ele engoliu em seco. Queria uma abordagem mais amigável.
— Ficamos curiosos, Doug. O que te trouxe até a ilha? Não foram as praias, foram? — Danny perguntou, cruzando as mãos sobre a mesa.
— Pra falar a verdade, foram as garotas bonitas. — Ele sorriu provocador, então atrelou as sobrancelhas no alto da testa, num sorriso dissimulado. — Me perdoem... eu já estava me esquecendo, vocês não curtem garotas, não é?
— Você não vai querer brincar com a gente, Doug. — Digo me levantando. — Sabe o que mais tem nas praias além das garotas bonitas? Um corpo de um jovem que morreu com a sua droga na mão. Tem a sua marca.
— Opa! Eu estava bem aqui algemado e comendo comida ruim. Seja lá o que esse garoto usou, não tive nada a ver com isso. — Ele ergueu as mãos.
— Não sei se o juiz vai concordar com isso. O que acha, Parceiro?
— Acho que tinha uma cobra desenhada nos comprimidos no seu bolso, e hoje tinha o mesmo símbolo na metanfetamina de alguém que tá no necrotério. Sabe do que juízes não gostam, Doug? Coincidências. Mesmo símbolo, mesma droga, mesma ficha policial, mesmo traficante de merda apodrecendo na cadeia.
— Acho que você é o policial bonzinho, então vou falar com você. — Ele aponta pra mim. — Eu nunca vendi cristal. Só vendia coca e minha loja fechou!
— O policial bonzinho tá louco pra meter a mão na sua cara. — Respondo. — Mas você tem cinco segundos pra dar um nome pra gente.
— O que eu ganho com isso? Redução de pena ou-
Danny se levanta e em segundos seu punho está cortando o rosto de Doug.
— Um nome! — Danny sibila segurando Doug pelo colarinho da camisa laranja e eu mantenho os olhos firmes em seus dedos, pronto para segurá-lo se for necessário.
— Calma, calma! Eu não sei o nome dele, mas tenho um endereço.
...
— Tani ligou. Ninguém falou sobre a droga, mas se lembram do garoto. Eles estão indo falar com os pais dele agora. — Disse Danny, assim que o alcancei na saída da penitenciária. — E o endereço? O que você acha?
— O Jerry está fazendo uma verificação por satélite. Vamos esperar ele concluir, sondar o que tem no lugar, então vamos até lá com reforços.
— Você está diferente, Steve. E não é a barba. — Ele se senta no banco do carona e puxa a porta com a mão de costume, ainda sinto seus olhos em mim.
— Diferente... — Refleti um pouco. — Isso é algo bom ou algo ruim?
— É algo bom. — Ele sorri para mim, então sacode a mão direita. — Aí....
— Eu tenho um recado pra você. — Seguro sua mão e analiso os dedos avermelhados, que se chocaram contra os ossos do rosto de Doug.
— Um recado pra mim? — Ele pergunta e eu beijo seus dedos. — Uau... que chefe atencioso você é! — Dessa vez, ele não resiste à minha aproximação.
— Sou, né? Tenho um recado do seu noivo. Ele disse que quer te levar para almoçar e que... está morrendo de saudade do Loirinho dele. Você aceita?
— Se o meu chefe concordar com isso, eu confesso que tô louco pra beijar aquela boca... — Danny lubrifica os lábios, os olhos grudados nos meus.
— Oh Deus... seu chefe acabou de concordar com isso... — Eu o beijo.
...
Um sino apitou quando passamos pela porta dupla de vidro do Senia, a placa da entrada denunciava os números no cardápio, mas eu estava disposto a arriscar. As mesas de madeira rústica, continham cada uma, um enfeite branco em formato de vela com a boca derretida pela metade, de onde guardanapos brotavam como folhas de palmeira se esparramando para todos os lados.
Danny escolheu uma mesa no canto esquerdo, onde podíamos ignorar a única cadeira disposta e nos sentar no sofá acolchoado em formato de arco que contornava o móvel. Nos sentamos de frente um para o outro, à minha esquerda uma parede de tijolos maciços sujos, propositalmente, com tinta clara e espetados por pequenos vasos arrojados que comportavam cactos ouriços.
— Pode me dizer que isso não vai cair na nossa cabeça? — Pediu Danny.
— Ainda bem que tenho bons reflexos. — Respondi, e ele revirou os olhos.
— Boa tarde, senhores! Fiquem à vontade, eu sou o Hani! — Disse o garçom de pele lisa e cabeça calva, usando uma camisa social branca e avental azul marinho. Sua feição era fleumática, como um sino de vento tremulando ao sol.
— Obrigado, Hani. Será que pode nos arrumar um pouco de gelo?
Peço, e Danny exibe os dedos escoriados e avermelhados ao ar.
— Não somos arruaceiros, isso, meu amigo Hani, é trabalho!
— Claro, senhores! — Hani assente e some por trás do balcão de madeira.
Sinto os olhos de Danny em mim, estreitados como se ele olhasse para uma equação matemática comprida e labiríntica, mas talvez um desafio gostoso.
— Pode me fazer essa pergunta com palavras dessa vez?
— Posso. Por que estamos num restaurante chique no horário de almoço?
— A resposta está dentro da pergunta. Nós viemos almoçar, meu amor.
Mordo o lábio e ele levanta o indicador, abrindo a boca para a tréplica, quando Hani aparece com um balde de gelo e o pano mais limpo que já vi.
— Obrigado, Hani. — Danny agradece, recebendo o baldinho de gelo, eu apanho a toalha e a estendo na superfície da mesa mais próxima de mim, coloco algumas pedras de gelo no centro e as empacoto fechando as pontas do tecido.
— Cachorro quente também é almoço, mas estamos prestes a pedir... — Ele desliza a almofada do indicador pela lista de pratos de entrada no cardápio, e faz um som de sucção entre os dentes. — Tuna Talaki?!
— Tuna Talaki? Você que manda, Anjo. — Faço contato visual com o garçom. — Hani? Por favor, vamos querer Tuna Talaki para começar.
Hani para ao lado da nossa mesa, a postura invejável. — Vinho, Senhores?
— Meu chefe me mataria. — Danny sussurra. — Brincadeira, ele é ótimo. — Ele me diz assim que Hani se vira com um sorrisinho no rosto. — Um pouco misterioso apenas, ainda bem que meu trabalho é ser bem convincente ao fazer perguntas. — Danny me mostra os dedos vermelhos numa falsa ameaça que termina num sorriso manhoso. — Por que estamos aqui, Amor?
Deito o braço sobre a mesa e peço por sua mão machucada.
— Porque o seu chefe te leva a lugares horríveis, ossos do ofício. Mas eu, seu noivo, quero recompensar isso, mudar o cenário um pouco, te fazer pensar em outras coisas... — Digo enquanto encosto o tecido gelado em seus dedos.
— Outras coisas?! — Ele deita a cabeça no ar, com um sorriso nos lábios.
— Não estou falando disso. Ainda. Eu juro, só queria mudar os ares.
— Mudou, só esqueceu de contar isso pro seu celular de chefe.
Ele aponta com a cabeça para meu celular vibrando sobre a mesa. Junior.
— Vou te recompensar por isso também. — Digo, me levantando da mesa.
Não é algo que percebo de imediato, mas ao me afastar da mesa, não consigo prestar atenção em mais nada que não seja os olhos dele, exatamente como aconteceu pela manhã, é magnético e impetuoso o jeito como ele me olha, as ideias que faz brotar na minha mente, o jeito como ele me torna algo especial.
Preciso me desculpar com Junior, e o faço repetir tudo o que ele disse.
Quando volto a me sentar, Danny está finalizando uma conversa com Hani, mas ainda não há pratos em nossa mesa.
— Tudo bem?
Ele pergunta, e só então me dou conta que devo estar um pouco abatido.
— Falaram com os Holmes. Ah, é trabalho, eu não quero estragar o-
— Não, tudo bem. — Ele segura minha mão. — Eu quero saber, Amor.
— Eles acreditam que a mãe do garoto sofre violência doméstica, o pai é alcóolatra. É a situação que nós sabemos, respinga direto no filho.
— É, algo assim passou pela minha cabeça, mas eu desejei estar errado.
— Tani disse que foi intransigente com a mãe do garoto. Que indiretamente a incentivou a denunciar o marido, dar um basta nas agressões. — Suspiro.
— E como reagiram?
— Junior conteve a situação com um pedido de desculpas e foram embora.
— Ela é passional, Amor. A marinha transforma os soldados em armas, é bom ter alguém que lembre o Junior que ele é um ser humano orgânico, sabe?
Acaricio sua mão e volto a pressionar o gelo em seus dedos.
— É impressão minha ou estamos nos projetando nessa conversa?
— Se eles não se matarem no processo, vai valer a pena depois.
— Então... valeu a pena pra você? — Me debruço e beijo as costas dos seus dedos, dando um tempo da pedra álgida prestes a adormecer sua pele.
Hani nos interrompe, entregando uma caneta e um copo à Danny.
— Obrigado, Hani. Você é o melhor!
Ele recolhe os dedos dos meus e recebe os dois itens em suas mãos, ignora meu olhar interrogativo e destampa a caneta entre os dentes. Com a mão direita, traça alguns riscos no copo descartável, que não consigo ler daqui.
Quando ele tapa a caneta e a deposita sobre a mesa, seus olhos assuntam o copo e então recaem nos meus, é um olhar quente, intenso e apaixonado, se olhares pudessem ser quantificados, teria um universo inteiro dentro daquele.
— Valeu a pena pra mim. — Sua voz soa mansa, terna, enquanto ele arrasta o copo descartável sobre a mesa, e seus dedos um pouco inchados giram o copo pela boca, até que as letras estejam viradas para mim, onde leio “Eu topo”.
— Você top- — Antes de concluir a frase, meu coração dispara. — Danny...
— Pois é, o mundo tá cheio de lugares horríveis, Steve, mas seus olhos falando daquela criancinha trocando passos dentro de casa? Esse foi o melhor cenário que eu vi hoje, e sabe aquela sensação? Eu também tô transbordando!
— Uau... você topa... Danny... você tá dizendo que... — Engasgo um pouco.
— Eu tô dizendo que quero fazer filhos com você. — Seus olhos brilham.
...
E, depois de comida japonesa, alguns beijos trocados por cima da palmeira de guardanapos virgens, e algumas declarações de amor que iam e vinham como aviões, voltamos pro trabalho.
— Uh... não é a primeira vez que vocês me dão esse endereço, sabia?
Foi o que Jerry disse quando pisamos na logo da Five-0 colada no piso.
— O quê?! — Perguntou Danny.
Kono, Chin e Adam já sabiam da resposta, dava para perceber em seus semblantes de que estavam mais cientes que nós de alguma forma.
— É o endereço que arrancaram do traficante? — Junior dizia, notando os dedos de Danny, enquanto ele e Tani chegavam em nossas costas.
— É. — Respondi. — Jerry, seja mais específico.
— Era uma vez uma força tarefa chamada Five-0. — Jerry enunciou e Danny me olhou um pouco impaciente. — Há quatros anos, eles receberam uma denúncia de que Gabriel Waincroft foi visto num prédio abandonado em Chinatown.
Ouço um grunhido escapar do suspiro de Chin e entendo seu desalento.
Danny e eu fomos até a mesa inteligente. Encaramos o endereço numa caixa de texto no canto da tela, e finalmente as imagens. Nos entreolhamos.
— Eu não vou pular do telhado de novo. — Danny resmunga.
— Não vai ser necessário. Jerry, o que vamos encontrar do lado de dentro?
— Além do lixo, do grafite e dos desabrigados e drogados? Não faço ideia.
— Vamos ter que ir até lá para descobrir. — Diz Kono, se levantando.
— Valeu a tentativa, Irmã, mas você fica. — Danny responde. — Se quiser, te faço companhia.
— Danny, você vai comigo. Junior, Tani, Chin e Adam, vamos até lá.
— O que eu perdi? — Lou acabou de passar pela porta e em segundos reconheceu o prédio na tela diante de nós. — Eu conheço isso. De novo não...
— Olha pelo lado bom, você vai dirigir o seu carro e não o da SWAT.
Danny respondeu, enquanto caminhávamos os sete para o elevador.
...
A primeira coisa que me lembrei quando estacionei o carro foi do que senti naquele terraço. Danny gritava comigo, me convencendo de que minha ideia de pular no telhado vizinho era estúpida, e eu sabia que ele tinha razão, mas era nossa única chance porque logo ficaríamos sem munição. Eu disse algo idiota, parte de mim queria deixá-lo irritado até ele se encher de adrenalina e isso ajudar a garantir que ele alcançaria o outro lado. Mas outra parte se enrijeceu na hora, minha consciência se debatendo no crânio; E se ele não conseguir? E se ele cair? Acabei dizendo que o amava, como sempre eu acabava fazendo. Chamando-o de amigo para camuflar minhas verdadeiras intenções, como um covarde faria. Dizendo metade das palavras, e engolindo as comprometedoras por minha traqueia fechada, como um alérgico tentando digerir seu veneno.
— Eu e Danny vamos na frente. Junior e Tani, vocês serão nossas sombras. Chin, Lou, Adam, fiquem do lado de fora, espero que não precisem entrar.
A partir daí nossa comunicação se resumia a gestos e olhares. Empurrei a porta e senti a mão de Danny apertar meu ombro, me dizendo que eu podia seguir. As paredes vestiam rabiscos e desenhos coloridos, o chão quase forrado por panfletos velhos, guimbas de cigarro e outros resíduos que não serviam mais.
Determinamos uma escada de distância de Tani e Junior, nossa retaguarda, o que significava que quando pisávamos num andar, eles ainda estavam abandonando o último pavimento.
No primeiro andar só encontramos tralhas e alguns colchões sujos. No segundo, haviam pessoas jogadas nos cantos como toalhas arremessadas após o banho, olhos que não pareciam não funcionar direito, pele enrugada, roupas manchadas, cortes na boca, braços ossudos e cheios de manchas roxeadas.
A imagem do corpo do garoto voltou em minha mente, seus cabelos salpicados de areia, seus dedos encolhidos como garras fechadas, a tatuagem. Apertei os olhos e continuei a andar, passávamos entre aquelas pessoas doentes, viciadas e era como transitar entre árvores, alguns nem percebiam que estávamos ali, outros nos ignoravam como se fôssemos um sonho confuso.
Sinalizei para Tani e Junior ficarem de olho nas pessoas, embora no fundo eu soubesse que não ofereciam perigo para ninguém além de si mesmos, não estavam mais no comando de seus corpos, eram hospedeiros de um parasita.
Continuamos a subir grupos os degraus, quando pisamos no terceiro piso, recuei o corpo para trás da parede e trouxe Danny junto de mim, porque vi uma sombra se mover rápido demais para ser apenas mais um viciado procurando refúgio. Danny entendia meus movimentos num estalo assustadoramente ligeiro, já estava em posição, os olhos ágeis, prontificados.
Entramos no andar, mais pessoas caídas aqui e ali. Nos escondemos atrás de duas pilastras de sustentação paralelas, há cerca de um metro uma da outra. Um senhor com roupas sujas olhou direto para nossas armas e distintivos, então seus olhos procuraram algo na mesma direção da sombra que eu havia visto, quase como uma confirmação, ouvimos o primeiro tiro correr entre nós.
— FIVE-0! — Gritei. — TODO MUNDO PRO CHÃO!
Deslizei as costas contra a pilastra, buscando visibilidade. Mais um tiro. Vi a sombra se mover rumo as escadas e ouvi os passos, o segui, Danny colado em minhas costas, nossos passos pareciam amarrados subindo juntos pela escada. Ouvimos a porta do terraço ser aberta, acabamos voltando pra onde não queríamos chegar, o mesmo teto de onde eu não me declarei da outra vez.
Passamos pela porta, Tani e Junior deviam estar correndo pelas escadas quando atiraram na nossa direção de novo. Os tiros vindos dos dois homens escondidos atrás das pilastras de concreto, as cabeças aparecendo e sumindo além dos canos largos, o mesmo esconderijo que usamos há quatros anos.
— Você disse que não íamos subir no telhado, Steve! — Danny resmungou.
A imagem dele gritando que meu plano era estúpido voltou a minha mente.
— Disse que não íamos pular daqui. Não subir! — Eu o corrijo.
Somos obrigados pelos tiros a nos agachar atrás dos dutos da ventilação, caixas de metal do tamanho de uma casa na árvore, que ficam bem à esquerda da porta de acesso, de onde o reforço não deve demorar a surgir. Enquanto isso trocamos mais alguns tiros, vejo o concreto do chão ao meu lado se esfarelar ao ser atingido, me lembro de novo de quatro anos atrás e me sinto um covarde.
— Danny... eu preciso te dizer uma coisa.
— Não é uma hora muito boa, Steve.
Como se quisesse comprovar seu argumento, Danny derruba um dos atiradores que grita de dor antes de colidir com o chão e ficar estático.
— Eu... — Me levanto para conseguir visibilidade, o outro cara atira em minha direção, ouço o concreto recebendo os buracos da bala em seu corpo. Atiro de volta, ele consegue se esconder há tempo. Eu me abaixo de volta. — Eu preciso falar, desculpe, mas acho que não quero fazer o plano do copinho...
— Você não quer mais ter filhos comigo?! — Danny abre os braços, confuso. Vejo de relance seus olhos decepcionados, mas não posso prestar atenção nem o beijar como gostaria, porque como ele disse, é um péssimo momento.
— Não é isso! — Grito e puxo o gatilho mais duas vezes, meu pente reclama sem balas. Pego um novo preso ao colete, enquanto Danny se levanta ágil e atira contra o homem, que permanece agachado em segurança. — Tem razão, não é uma boa hora...
Danny revira os olhos.
— Com certeza não é, mas já começou, termina o que ia dizer!
— O mundo é cheio de lugares horríveis, você disse isso. E é verdade, tem muita criança por aí precisando de pais. Eu não quero reproduzir mais uma, não me importo se vai ter meus olhos ou o seu cabelo, eu só quero cuidar... quero abraçar alguém, dar uma família pra quem talvez nunca tenha uma.
— Quer adotar um filho?
— Quero. — Olho rapidamente pra ele.
O homem está ficando sem balas, o lugar fica silencioso, ele espia por trás do concreto, aponta a arma em nossa direção e entendo imediatamente seu plano, ele mergulha até a próxima pilastra para apanhar a arma do seu comparsa, enquanto gasta as últimas munições tentando me acertar, mas sou mais rápido e vejo quando ele cai sem vida no chão.
Corremos na direção dos corpos. Ambos mortos. Danny respira fundo.
— Podemos adotar. — Ele sorri pra mim. — Não exatamente agora saindo desse tiroteio... a gente precisa de um tempo pra organizar o casamento e tal.
— Eu te amo. — Eu respondo de imediato, o coração pulando feito louco.
— Eu te amo também. — Seu olhar avista algo além de mim, ele aponta com a cabeça, giro o pescoço e vejo. Não estamos sozinhos. Há mais alguém no terraço.
No mesmo segundo, a porta por onde viemos se abre. Tani e Junior. Faço sinal para eles, estendo o indicador e o anelar, para que fiquem onde estão.
Por trás do último duto de ventilação, vejo um tornozelo juvenil escapar, meias brancas, o rosto de um panda na borda de cima com orelhas saltando para fora da costura e all star. Me aproximo com cautela, Danny no meu encalço.
Desvio da parede de metal e a vejo encolhida como um cão assustado. Dez dedos finos e trêmulos erguidos ao ar sobre as palmas de suas mãos, os olhos azuis enlameados pelas lágrimas grudadas em fios de cabelo em seu rosto.
— Hey! — Digo e me agacho na sua frente. — Você está bem?
Ela assente com a cabeça, Danny sinaliza com o polegar para Tani e Junior, e depois se agacha ao meu lado, enquanto o reforço checa os corpos no chão.
— Eu sou o Danny. Esse é o Steve. Qual o seu nome?
— Charlotte... — Sua voz se esconde dentro da boca.
— É um nome bonito. Quantos anos tem? — Pergunto.
Ela olha para as armas em nossas mãos, eu engancho a minha no coldre.
— Dezoito...
— Okay. Que tal sairmos daqui, hein? — Danny estende a mão para ela.
Charlotte usa uma camisa amarela, a manga cobrindo todo o seu braço até metade das mãos, é impossível identificar se ela também tem furos por toda lado. Sobre a camisa, um macacão jeans largo de barra dobrada, deixando os tornozelos a mostra, seu cabelo faz ondas tímidas acima dos ombros num dourado mel que acaba acinzentado nas pontas. Suas sobrancelhas são fartas, lábios rachados, mas sem os cortes e maus tratos que a maioria carrega.
De pé, ela fica quase da mesma altura que Danny, onde se apoia ainda trêmula e caminha pelas escadas, eu vou ao lado, carregando sua mochila.
— Descubra quem eram os caras no terraço. — Falo para Junior.
Do lado de fora, Tani acolhe Charlotte, ambas sentadas na calçada.
— As roupas dela são de marca, Steve. O tênis original.
— Acha que ela fugiu de casa, assim como o Patrick?
— É exatamente o que eu acho. Talvez eles se conhecessem.
— Isso é uma droga, Danny. São só crianças...
— É, literalmente uma droga.
Tani se levanta e diz que vai estar por perto. Me agacho na sua frente na calçada, e Danny se senta ao lado dela.
— Charlotte, precisamos te fazer uma pergunta. — Digo. — Você tem casa?
Ela nega com a cabeça, o olhar nos pés que vão de um lado pro outro.
— Família? — Danny pergunta e ela nega novamente.
— Você... conhece alguém chamado Patrick Holmes? — Pergunto e é como um reflexo, seus olhos correm pros meus e seus dedos tremem a todo vapor.
— Ele tá encrencado? — Sua voz tremula pra fora dessa vez, seu medo é tão sólido que quase posso tateá-lo como o concreto do chão.
Nego com a cabeça. Seus lábios tremulam, ela procura Danny do outro lado.
— Sinto muito... — Ele diz.
Seus punhos se fecham, os braços se encolhendo contra o próprio corpo, vejo as lágrimas se organizando dentro dos seus olhos, suas narinas se dilatando e sua respiração pesada, seu corpo inteiro trêmulo como se contivesse um grito.
— Não... O Patrick tá bem... por que essas caras? Vocês acham que... não...
— Sinto muito, Charlotte. Ele era seu amigo, não era? — Pergunto.
— Por que tá falando dele no passado? Ele tá bem! Você tá me ouvindo?!
Ela está em choque. Pego o celular e procuro pela foto da ficha do Patrick.
— Esse é o Patrick Holmes? — Mostro a foto pra ela, ela chora.
— Talvez... quem sabe seja alguém muito parecido... não é o Patrick!
— Ele morreu, Charlotte. Overdose. Queremos ajudar você agora.
— NÃO! NÃO É O PATRICK! ELE NÃO... NÃO PODE SER ELE...
Ela se levanta, nós nos levantamos também.
— “Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos-”
— “daqueles que não sabem voar.” — Ela completa minhas palavras e cai sentada de onde acabou de se levantar.
O corpo inteiro se entrega ao choro. Ela se apoia em mim e Danny ao mesmo tempo, as mãos em nossos braços, como se fossemos duas bengalas.
Ao perceber que é o Patrick, porque li essa frase tatuada no corpo dele.
...
— Como está? — Danny pergunta, já no banco do carona do Camaro.
Vejo os olhos de Charlotte desencorajados pelo retrovisor, ela parece tão triste que dá para ler seus lábios, quando ela tenta mentir e dizer que está bem.
— Vocês... são um casal? — Ela pergunta num tom gentil.
Não era a pergunta que eu esperava ouvir, mas seus olhos criam coragem para se mexer pela primeira vez, como se a curiosidade trouxesse vida à eles.
— Nós somos. — Respondo e não consigo deixar de passar os olhos pelo rosto de Danny enquanto confirmo.
Charlotte sorri rapidamente, como um raio no céu, quando você começa a prestar atenção nele já sumiu bem na sua frente.
— Era isso que você e o Patrick...? — Danny não consegue completar a frase.
— Vocês já devem ter visto aquelas fotos com dois cisnes encostando os bicos até formarem um coração. Cisnes são animais monogâmicos, ficam com o mesmo parceiro a vida inteira, e quando um deles morre, o outro fica tão triste que só espera a morte chegar. Vocês me lembram cisnes, ou cavalos marinhos, que são ainda mais radicais, eles literalmente deixam de comer e de se mexer, para morrer mais rápido.
Danny e eu cruzamos o olhar, completamente calados, sem saber o que dizer.
— Desculpem. Isso foi... totalmente desagradável de se dizer. Eu gosto de animais, tagarelar sobre isso é a única coisa que me acalma.
— Não, tudo bem. Eu falo sobre beisebol, ele fala sobre armas!
— Eu não falo sobre armas!
— Amor, você não está me ajudando. Dirija.
Danny responde, em parte eu sei que ele só quer arrancar um sorriso de Charlotte, porque já deu pra notar que ela gosta de saber que somos um casal.
Ela sorri, então tudo bem ele ficar pegando no meu pé.
— O Patrick tem uma igual. Foi você quem deu? — Pergunto, quando vejo ela esfregar entre os dedos ansioso uma estrela do mar prateada em sua pulseira de couro trançado, exatamente igual a do corpo de Patrick Holmes.
— Foi, mas respondendo a outra pergunta, não somos um casal. Nós não somos cisnes, nem cavalos do mar, nem mesmo... estrelas do mar.
— O que vocês... são? — Danny faz a gentileza de manter o tempo verbal da conversa da forma que Charlotte consiga conversar sem desabar em lágrimas.
— Outro dia, li uma noticia. Um gatinho preto muito dócil chamado Fun, fez amizade com uma coruja arisca e desconfiada, de nome, Gebra. Eles moram na Catalunha e dizem que é possível vê-los caçar juntos. É isso que eu e Patrick somos ou... éramos. Espécies diferentes que querem coisas diferentes, mas ele era o único amigo que realmente me conhecia e não sei porque nos dávamos bem.
— Nós sentimos muito. — Diz Danny, e eu assinto pelo espelho retrovisor.
— Eu posso... vê-lo? O Patrick... — Dizer o nome dele transcende o choro.
— O irmão da nossa amiga conseguiu uma vaga num lugar seguro pra você... passar a noite, descansar um pouco. Podemos voltar e te levar para ver o Patrick.
— Obrigada... Vocês são boas pessoas. Queria que tivessem conhecido ele. O Patrick tinha uma frase pra cada momento, estava sempre anotando seus pensamentos. Sempre um passo à frente do restante do mundo...
...
Deixamos Charlotte sob os auspícios de Koa, irmão de Tani, num quarto tranquilo com toalhas limpas, comida e um cartão com nossos telefones. Sabíamos que ela poderia ter alguma informação útil e que a veríamos de novo, mas naquele momento seria cruel tentar arrancar mais alguma coisa de sua vida.
Passamos pela sede, e fomos sem desvios para a escola buscar Charlie.
— Hey, Steve! Você ouviu algo como “Eu estava morrendo de saudade de vocês!”??? Porque daqui eu não consegui ouvir nadinha!
— Eu não ouvi nada daqui também. — Respondo. Eu e Danny nos viramos para o banco de trás, onde Charlie sorri com as bochechas rosadas.
— Eu senti saudade de vocês. Amo você e amo você! Podemos comer?
Charlie sorriu com aquela carinha que ele sabia que conseguiria qualquer coisa. Paramos numa lanchonete, e comemos cachorro quente enquanto Charlie contava sobre seu novo professor de inglês e sobre a aula de educação física.
Quando voltamos ao Camaro, Charlie se jogou no banco e se espetou em algo.
— Será que a Grace perdeu isso aqui?
Ele estendeu a mão entre mim e Danny, que trocamos um olhar urgente ao identificar na pequena mão de Charlie, a pulseira de couro com a estrela do mar prateada, que segurava agora um papel enrolado como um pergaminho, que dizia:
“Steve e Danny,
É notável que são pessoas boas e bons policiais. Não pude dizer a vocês toda a verdade, mas sei que estão procurando pelo laboratório clandestino de drogas. Seja lá o que for, isso matou o Patrick e eu acho que sei onde fica. Tem algo estranho acontecendo no sótão do prédio onde vocês me acharam, em Chinatown. Espero ter ajudado. Obrigada.
Charlotte.”
— É claro... por isso os dutos de ventilação estavam ligados!
— Filho, você é um gênio. — Danny diz a Charlie e eles trocam um soquinho.
Liguei imediatamente para Chin, ele e Lou pediriam suporte do Duke e cercariam o local, até que chegássemos. Danny pediu que Kono e Adam nos encontrassem em casa, eles chegam antes mesmo do motor do Camaro esfriar.
— É melhor treinarem com um modelo vivo do que com um boneco de plástico. — Diz Danny, quando abrimos a porta para os dois entrarem.
— Bom argumento. Eu tô com fome, vou assaltar a geladeira. — Diz Kono.
— Charlie, o que acha de ir ligando o vídeo game pra gente subir e jogar umas partidas, hein??
— Tudo bem, Tio Adam. — Ele faz um high-five com Adam. — Te amo Danno e te amo Papai Steve! — Ganhamos beijos e abraços, e ele sobe as escadas.
— Oh, “papai Steve”? Isso foi adorável! Preciso mesmo de um sanduíche!
É a última vez que ouço a voz de Kono, então o som da geladeira na cozinha.
— Fui promovido. — Respondo. — Aqui o chefe é o Danno. É ele que manda.
— Bom garoto. Mas então, o que aconteceu pra tirar as crianças da sala?
— Tani tem mais informações. Parece que a Charlotte sumiu do abrigo.
...
— Mal tem uma hora que saímos daqui, deixamos a Charlotte nesse quarto, ela parecia tranquila. O que aconteceu?!
Pergunto enquanto vasculho debaixo do colchão da cama do quarto número 5. Danny espana o travesseiro, mas sinto que ele não está na mesma sintonia que a minha. Sinto seus olhos em mim, quando Junior responde envergonhado.
— Sinto muito, Senhor. Devíamos ter ficado de olho nela mais de perto.
Esfrego as mãos pelo rosto, tento ver com clareza, mas parece que levantaram uma parede entre mim e as respostas que procuro nesse caso.
— Identificaram os atiradores do terraço? — Arranco a primeira gaveta da cômoda.
— Ambos fichados por tráfico, entraram e saíram da cadeia a vida inteira. Eu vou... ver se a Tani descobriu alguma coisa. Senhor. — Junior esquiva a cabeça para longe do quarto, e sai às pressas pela porta entreaberta.
— Hey. — Danny segura meu braço. — Qual o problema com você?
— Deixamos a Charlotte aqui, Danny. Bem aqui. E agora ela sumiu!
Danny varre o quarto com os olhos e volta correndo até mim.
— Amor, você precisa se acalmar! 
Alguma coisa no tom de alerta na voz de Danny fazia eu me odiar.
— Pensei que eu fosse o chefe aqui!
Minha voz ficou aguda no fim da frase, como se faltasse fôlego para aquelas palavras idiotas serem lançadas pra fora da minha boca previamente arrependida. A minha voz sim fazia eu me odiar muito mais que a dele poderia.
Danny enviesa a coluna, assimilando o que acabou de ouvir. As pontas de sua boca repuxam para o chão, num biquinho que me faz sentir vergonha de mim.
Ele vai até a porta e a fecha num baque seco não muito alto, mas que reverbera em ondas densas dentro do cômodo, me sinto ficando cada vez menor.
— Não vou te deixar fazer isso com você mesmo, comigo ou com a gente, nem mesmo com o Junior. O garoto endireita a coluna cada vez que você chega! Já reparou isso? Ele mascaria cianeto se você pedisse! Que droga, Steve! Não estamos na marinha, estamos em casa, na nossa ilha! Esse é o nosso trabalho, e você é o chefe, não um comandante de nariz empinado que vai mandar alguém fazer cinquenta abdominais até você se sentir menos culpado! Eu conheço você melhor do que ninguém, sei que esse caso tá mexendo com a sua cabeça, comigo também. Mas vamos resolver, vamos ajudar a Charlotte.
Meu corpo se dobra até que eu me perceba sentado na cama em que deixei aquela garota sozinha mais cedo. Danny se senta ao meu lado, a mão na minha, numa imposição de dedicação severa que me deixa fraco como papel molhado.
— Desculpa, Amor... eu vi os olhos dela mais cedo, eu me vi dentro dos olhos dela. Vi aquele menino assustado, sem família, sem apoio, sem nada. Não quero falhar com ela, não quero falhar com o Junior e a Tani, nem com o Charlie, Grace, muito menos com você, com a gente. Obrigado por não usar esse momento pra duvidar de quem eu sou, mas pra me lembrar quem eu sou.
— Eu amo você, Steve. Tentei separar isso do trabalho, e advinha só?
Seus olhos reluzem sob a luz baixa do sol, como dois segredos sendo contados na ponta da minha orelha, algo que só eu posso ouvir.
— Não dá. O trabalho é uma parte sua, e eu amo todas as suas partes.
— É, eu me sinto do mesmo jeito. Vamos achar a Charlotte, tá bem?
Assinto e beijo a curva de seus dedos. A porta se abre no timing perfeito.
— Ela não é usuária! — Diz Tani passando ofegante pela porta. — A clínica faz um exame toxicológico quando recebe pacientes. O resultado é parcial, mas não tem sinal algum de droga no organismo dela. A Charlotte não é usuária.
— Então do que ela tem tanto medo? — Danny pergunta buscando a mim.
— Tani, se colheram uma amostra dela, ela deve ter assinado alguma coisa.
Corremos até o balcão. Acontece que Charlotte não tem dezoito anos, ela tem dezessete, e seu sobrenome é Green, assim como Thomas Green, secretário de estado do governo do Hawaii, o que espero ser uma infeliz coincidência.
Enquanto peço Jerry para descobrir quem é Charlotte Green e como ela conheceu Patrick Holmes, vejo Danny varrer o hall de entrada com os olhos, que estão sempre alertas como câmeras de vigilância, e ele sempre encontra.
— Quem tem acesso a esse quadro? — Danny pergunta, caminhando até o lado interno do balcão folheado a madeira.
Atrás dos cabelos retos da recepcionista, um quadro de avisos, no canto esquerdo, um papel idêntico ao bilhete enrolado que Charlotte nos deixou, um papel amarelado com linhas horizontais. No topo da página vejo um coração, mas quando me aproximo, são bicos de cisne tão próximos que parecem um só, a mesma caligrafia arredondada com letras bem desenhadas, que dizia:
“Steve e Danny,
Me desculpem por não ter esperado por vocês. Desculpem pelo desenho horroroso, o Patrick que era o artista... e eu percebi que a minha versão do gato Fun, não tem sete vidas. E tudo o que me resta, é recolher o que sobrou. Ele ia gostar de ser lembrado.
Charlotte.”
— Ela foi atrás do Patrick. — Diz Danny.
Alcanço meu celular no bolso, já a caminho do Camaro, e ligo para Noelani.
“Noelani, uma garota chamada Charlotte, loira, dezessete anos, te procurou?”
“Não, Comandante. A única visita que recebi foram dos pais da vítima.”
“Charlotte é amiga do Patrick. Se ela aparecer, não hesite em me ligar!”
“Tudo bem, eu ligo.”
“Espera. — Pede Danny. — O que foi encontrado junto com o corpo dele?”
“Os pertences foram anexados ao caso, mas além das drogas, isqueiro e seringa, apenas a carteira quase vazia e algumas canetas esferográficas.”
— Por que ele tinha caneta se não tinha papel? — Pergunto e meu cérebro sussurra as palavras de Charlotte. — Ele estava sempre escrevendo. Ela não foi atrás do corpo...
— Foi atrás do que ele escreveu. Não tinha mochila com ele... Chinatown!
Os dedos de Danny correm para o celular, batemos as portas do Camaro. Junior e Tani aceleram ao nosso encalço, Danny liga para o contato de Chin. Ouço a chamada cair na caixa postal e o pneu cantar quando entro na HI-92. Danny engancha os dedos em torno da alça de segurança do banco do carona. Trocamos um olhar frenético, ligo a sirene e piso fundo no acelerador. Danny telefona para Lou, o celular no viva-voz, e cada toque parece o momento certo para ele atender e dizer está tudo bem, mas ele também não atende. O carro salta num quebra-mole, pois não consegui reduzir há tempo, entrando na Awa St.
— Eu sei que já falei isso antes, mas você vai acabar matando nós dois!
— Desculpa, meu amor. — Pulo pra faixa da esquerda, que é contra mão, mas está mais livre que a da direita. — E por favor, aperta o seu cinto!
— Odeio quando pede isso. Pode pelo menos nos matar na faixa correta?!!
...
Dez minutos depois, vimos o prédio de onde tiramos Gabriel Waincroft baleado há quatro anos, e de onde tiramos Charlotte algumas horas mais cedo.
— Isso não é nada bom... — Danny comentou retirando o cinto do corpo.
Estacionei o carro perpendicular aos tracejados que decidiam o tamanho das pistas, havia uma barricada de viaturas policiais a nossa frente, Duke segurava um rádio digital e caminhou célere em nossa direção assim que nos viu.
— McGarrett. Williams. Não deu pra esperar vocês. Atiraram na gente.
— Cadê o Chin e o Lou? — Perguntou Danny, já sacando sua arma.
— Entraram com Abby e Quinn, escoltados por duas unidades
Ouvi o estalo seco dos tiros cortando o ar, como trovões além da janela.
— Duke, você viu uma garota jovem, camisa amarela e macacão?
— Não. Evacuamos o local, não havia ninguém com essa descrição.
O estrondo que cortou o céu dessa vez não era oco como balas faziam, o som que ouvimos foi tônico, pesado e grave como o impacto de um monstro caminhando, correndo em nossa direção em forma de chamas alaranjadas que se espalhavam rápido como a massa negra e tóxica que ela carregava.
Abby e Quinn saltaram pela porta em nossa direção, a pele de seus rostos parecia ter sido riscada por carvão. Ouvi a voz de Lou dizendo para recuarem, ele e Chin foram os próximos rostos que vimos, correndo entre os policiais.
— O que aconteceu aqui?
— Algum gênio achou inteligente colocar fogo nas drogas! — Disse Lou.
— Tem material inflamável lá em baixo, Steve. — Falou Chin.
— Duke, precisamos evacuar a área. AGORA!
Toquei as costas de Danny e gritei para todos se afastarem dali. Eu estava no meio da rua, quando senti o celular vibrar contra minha coxa direita. Como sempre, o frio na espinha me alcançou, sabia que não era uma notícia feliz.
O número era local, mas eu não o conhecia. Atendi o telefone.
“Eu não consigo... respirar... desculpem ter fugido...”
“Charlotte? Você está no prédio?!”
Danny ouviu minha voz em meio aos gritos e ficou estático no meio da via.
“Eu me... escondi no terraço... estou na... escada do...”
Ouvi sua voz ficando distante, seguido por uma batida e a ligação caiu.
Danny enfiou a arma no coldre, as mãos correram do cabelo pro seu rosto, os olhos atentos em mim, como sempre estiveram, por dez anos sem descanso.
Eu não queria decepcioná-lo, não suportava mais a ideia de fazer isso.
— Eu te amo muito. — Passei os dedos por seu rosto, suas pálpebras se fechando com força quando ele sentiu meu toque e entendeu o que eu ia fazer.
Corri para dentro da porta, ouvindo meus colegas gritarem meu nome.
A fumaça se espalhava pelo ar como neblina fazendo cerco em tordo das nuvens, até você não saber mais onde as coisas começam e onde terminam, mas havia uma única trilha a direita que ainda não havia sido tomada pelo fogo, foi o caminho que tomei enquanto puxava a gola da camisa para cobrir meu nariz e boca. O segredo era não inalar a fumaça e de preferência não ser engolido pelas chamas. Cheguei mais rápido do que planejei no primeiro agrupamento de escadas, quanto mais subia, menos fogo encontrava no caminho, pois ele vinha de baixo, já a fumaça era rápida e parecia sempre um passo a minha frente.
— Charlotte? Você consegue me ouvir? — Gritei por ela por dois andares.
Nada.
Eu não tinha tempo para vasculhar cada canto e colchão, peguei meu celular e disquei para o último número que havia me ligado, fui tomado pela esperança quando ouvi que o celular dela respondeu, mas não conseguia ouvi-lo chamar.
Talvez Charlotte tivesse desmaiado, talvez seu celular estivesse no modo silencioso, mas talvez eu só tivesse procurando no andar errado. Cheguei ao terceiro andar e também não a encontrei. Lembrei que ela falou sobre escadas, e quando passei pela porta de acesso para o último conglomerado de degraus, ouvi a melodia aguda tilintar entre o som das chamas nos farejando, o celular estava caído em um dos primeiros degraus, Charlotte um pouco acima, desmaiada, sem movimento, o rosto caiado, salpicado por suor e riscos cinza.
— Charlotte...
Ela tentou abrir os olhos, mas só conseguiu vacilar as pálpebras até perder a consciência em meus braços, joguei a mochila verde que ela carregava nas minhas costas, sabia que devia pertencer a Patrick, e desci até o segundo andar. A chama já havia alcançado a escada que daria acesso ao primeiro, e minha cabeça latejava, meu corpo requisitava o ar e ele queimava meus pulmões. Eu precisava chegar ao primeiro andar, mas não havia uma passagem desimpedida.
Apertei os olhos, procurando derrubar aquela parede em minha mente. Eu precisava salvar Charlotte, mas era como Danny sempre me dizia, eu não poderia ajudar ninguém se me matasse primeiro, e eu também não podia ser o soldado que não voltava pra casa, que não pensava em quem eu estava carregando pro túmulo junto comigo, o homem que eu levaria junto comigo.
Danny. Eu tinha que voltar pra ele, eu tinha que atravessar o fogo por ele.
Abracei Charlotte contra meu corpo, tentando esconder seu rosto em meu peito. Eu ia saltar. As escadas eram afuniladas, mas os andares largos, se eu conseguisse atravessar, poderia ter alguma chance de nos tirar com vida daqui.
Minha cabeça latejou de novo, uma pancada mais forte dessa vez, senti que estava caindo, focalizei meus pés em meio a névoa, eu ainda devia estar de pé.
Então ouvi alguém chamar meu nome. O desespero em sua voz mansa.
— Steve? Steve?! STEVE?
— Danny?
— Steve? Onde você está?
— Escada... Danny, você precisa-
Ouvi o som de algo escapando em jato, e senti quando algo lutou contra as chamas que tremeluziam com raivam, mas se abaixaram de malgrado em minha frente, nos dando passagem. Saltei, sentindo o vapor quente tentar assar a pele que cobria minhas pernas. Senti novamente que estava caindo, a cabeça como um sino de metal sendo badalado, mas ele me aparou, me manteve de pé.
— Fica comigo! — Danny me puxou, me mostrando a direção, o jato do extintor em sua mão de novo tentou abrir caminho pelas chamas, elas estavam muito mais decididas no primeiro andar, sendo cuspidas sobre nós como se saíssem da boca de um dragão. Outro jato e ele se desfez do extintor quando pulamos pela porta, no último segundo senti as chamas voando atrás de nós.
Lou segurou em meus ombros, me guiando até uma ambulância parada na esquina, Chin fez o mesmo com Danny, há meio metro em minha frente. Alguém tentou pegar Charlotte do meu colo, mas eu não conseguia soltá-la.
— Eu peguei você... você vai ficar bem... — Tentei dizer, mas a tosse seca e insistente tomou posse da minha voz.
Alcançamos a ambulância, minha cabeça latejando, o mundo ficando escuro, quando senti o ápice da explosão, o chão parecia mole e dessa vez eu caí. Danny ajudou a aparar Charlotte e deitá-la no chão ao meu lado, sinalizando para os paramédicos, ele se ajoelhou do meu lado, senti sua mão em meu rosto e vi seus olhos se debruçarem até mim, o azul tomando conta de tudo, do vermelho do fogo, do cinza da névoa, dos pontos pretos em minha vista. Eu só podia ver ele.
— Eu não respondi na hora. — Ele chorou. — Eu te amo também, tá bom?
Assenti para ele, apertei seus dedos, senti algo sendo fixado em meu rosto e ouvi Charlotte tossindo fraco ao meu lado, quando a colocaram numa maca.
...
Abri os olhos que reprovaram a luz que vazava pelas frestas da persiana da janela que eu não conhecia. Vi as paredes em branco gelo, a cor se repetia no pano fino que parecia cobrir meu corpo e na etiqueta em meu braço. Senti os dedos dele em torno da minha mão, Danny estava sentado numa cadeira colada a cama do quarto do hospital que eu acabava de reconhecer como o Queens. Seu rosto debruçado sobre o antebraço, cuja mão estava atrelada na minha.
Havia algo de angelical no que eu via, algo que me fazia querer guardar aquela imagem, não numa foto digital, mas dentro de uma lembrança só minha. Sabia que suas costas reclamariam quando ele acordasse, porque estava dormindo torto como um arco de balões de festa, aposto que seu braço já deve estar dormente e mesmo assim ele não se desfaz da minha mão. Mesmo dormindo, fora de si, ele não se desfazia de mim, mesmo dentro de um incêndio, ele não aceitava me perder, ele me segurava até eu saber que ele me amava.
Senti aquele aperto na garganta, uma espécie de sufoco caloroso, lágrimas querendo sair, a boca seca e isso me fez tossir, acabei acordando Danny, que levou uns segundos pra me ver de olhos abertos e se levantar preocupado.
— Steve... você tá bem? Tá sentindo alguma coisa? Quer um pouco d’água?
— Uhun... — Tento segurar a tosse para amenizar sua preocupação.
Danny desemborca um copo descartável do túnel de plástico preso na parede, o posiciona abaixo do filtro e aperta a alavanca ainda de olho em mim.
Tomo um gole da água e pigarreio, ele se senta ao meu lado na cama.
— Como está?
— Apaixonado por você. — Respondo, e ele sorri. — E você, está bem?
— Eu inalei menos fumaça que você, dessa vez você venceu, Steve.
— E a Charlotte?
— Bem, mas... inalou mais fumaça que nós dois. Ela deve acordar logo.
Puxo Danny até ele cair deitado em meu braço e eu sentir sua respiração quente se misturar na minha, tentando driblar o desconforto da hospitalização.
— Me desculpa... eu sei que tenho pedido desculpas demais ultimamente, mas eu não quero te decepcionar, eu tô com tanto medo de te perder, Amor... te perder pro cara dentro de mim que sentia que precisava entrar naquele prédio.
As sobrancelhas enlouradas caíram sobre seus olhos, seus lábios se apertaram e ele segurou meu rosto entre as mãos, passando as unhas pela minha barba. A porta do quarto se abriu um segundo depois.
— Desculpa interromper. — Era Junior, a postura ereta do soldado. — Charlotte acordou, ela está agitada e só quer falar com vocês dois.
...
— Eu não posso ficar aqui! — Sua voz saia como uma tentativa de sussurrar, que mais parecia um grito de socorro num engasgo misturado com pavor.
Ela tentou se levantar, mas eu sabia que ela não deveria fazer isso. Me aproximei de um lado, Danny do outro. Charlotte estava apavorada, mas por alguma razão que eu ainda não entendia, ela se sentia segura com a gente, suas mãos se penduraram em nossos braços, ela pretendia nos usar como guincho para tirar o corpo ainda sonolento da cama, mas se desmanchou em lágrimas.
— Hey, está... tudo bem... — Sabia que minha voz não parecia convincente quando minha garganta arranhava as palavras como um disco velho.
— Podem me tirar daqui? Por favor... me mantenham presa, eu sou uma testemunha de alguma coisa, posso ser útil, só não me deixem nesse hospital...
— Querida, nós estamos aqui. Não vamos te deixar sozinha, mas precisamos saber o que houve. Você fugiu de casa? Seus pais podem estar preocupados...
Sabia o que Danny estava fazendo. Jogando os pais dela na conversa como se coloca uma minhoca na ponta do anzol, para testar sua reação a menção deles.
— Não, Danny. Você não conhece os meus pais. Eles, com certeza, estão preocupados, mas não comigo. — Seu rosto se enrijece na hora. — Eles estão preocupados com a filhinha deles, com a manchete que os jornais vão escrever se descobrirem que a filha do secretário de estado se envolveu num incêndio, o que as pessoas vão pensar se souberem que a garotinha deles dormiu sob o mesmo teto que uma dúzia de viciados? Se souberem que meu melhor amigo morreu de overdose? Se souberem que a garotinha deles gosta de garotas?
— É disso que está fugindo? Dos seus pais? — Pergunto e ela assente.
— O Patrick sempre se deu bem com pessoas em geral, eu não. Antes do Patrick, eu era mais solitária que o Cyprinodon diabolis, ou peixe-do-buraco-do-inferno, é um peixe de dois centímetros que só existe numa caverna no deserto do Mojave e se alimenta do calcário da parede que o cerca. Em palavras que devem fazer mais sentindo para vocês, eu era a menina rica que não se encaixava, e ele o garoto prodígio que consegue uma bolsa integral num colégio caro. Ele era duas turmas mais adiantado que eu, e nós não parecíamos ter nada em comum, mas éramos como almas gêmeas. Eu gostava de garotas, ele de garotos, eu estava sempre sozinha numa casa grande demais e ele sempre precisando de um lugar pra se esconder da própria vida.
“Nossas vidas se encaixavam, faziam sentido juntas, mas ele conheceu as drogas antes de me conhecer, elas chegaram primeiro e demarcaram território nele. Ele ficou viciado em metanfetamina, e as doses nunca eram boas o suficiente, acho que eu perdi o Patrick antes de o conhecer, quando ele usou pela primeira vez, mas achei que... Eu pudesse trazer ele de volta, ele sempre voltava, sabe? Chorando, vomitando, desesperado, mas sempre voltava. Nos últimos tempos tudo ficou pior, ele teve convulsões, a cabeça dele parecia... um carro velho com o motor que demora para pegar, ele adorava escrever, mas de repente começou a esquecer coisas bobas, até sua caligrafia ficou diferente.
Eu tive uma ideia estúpida um tempo atrás. Fingi pros meus pais que éramos namorados, eu vestia o Patrick como um manequim de loja, dava pros meus pais tudo o que eles queriam, em troca eles me deixavam em paz. Dei uma filha hétero, normal, que namorava um garoto rico. Uma grande mentira. Meus pais gostavam mais dessa mentira do que de quem eu realmente sou. Até que o Patrick apareceu um dia chapado demais e começou a falar toda a verdade.
Eu não uso droga, nem álcool, não gosto de entorpecentes, mas aquele momento... foi tão cru e inspirador, como um tapa na cara quando você está em choque. Eu precisava disso, alguma coisa mudou pra mim e eu decidi que não ia mais mentir, não ia nunca mais fingir ser alguém que eu nunca vou ser... Parece bobagem, eu sei, o drama da menina carente, esquisita e mimada? Eu sei. Mas a sensação é de que se eu era a única capaz de ser eu e se não estava sendo, eu ia acabar desaparecendo, a mentira era como uma droga que cai direto na alma.
Patrick via a mãe ser agredida ou acabava no papel dela, em primeira pessoa. Meus pais nunca me agrediram fisicamente, eu me envergonho do que vou dizer, mas parte de mim acha que teria sido melhor do que ouvir o meu pai dizer que preferia uma filha delinquente ou uma vadia promíscua grávida do que lésbica, ou da minha mãe dizendo que é tudo uma fase boba, mas que não devo levar a sério porque vão me causar rugas de estresse e eu preciso de um rosto jovem pra conseguir um bom partido, como um dia ela deve ter feito.
Amanhã eu vou ter a maior idade, só preciso fugir até a 00:00, e assim eles não conseguem me embarcar a qualquer custo pra esse acampamento integral inconstitucionalista que acredita poder curar jovens homossexuais. Eu não vou pra esse lugar, não vou me submeter a essa caça às bruxas. Eu normalmente teria fugido daqui quando acordei. Mas sabem por que eu tô falando a verdade? Porque pela primeira vez na vida, eu tô falando com pessoas que me escutam e que entram num prédio em chamas pra me salvar, vocês merecem a verdade.
Mas por favor, entendam, eu não posso ficar num hospital. A essa altura, já checaram meus documentos e falaram com a secretária do meu pai. Sei que vocês vão pensar no meu quadro clínico, mas o meu pai não vai hesitar em me tirar daqui, porque ele pode me colocar num avião com oxigênio ou seja lá o que os médicos disserem, só pra conseguir me tirar da ilha enquanto ele pode!”
...
Fechei a porta do motorista com a força calculada de quem estava com pressa, mas não tinha nada a esconder. Vi Danny fazer o mesmo no carona, apagar o LED do teto, passar o cinto e o motor roncar com a mais serena normalidade para um carro de policiais que levava no banco de trás, uma jovem menor escondida sem permissão legal ou sequer liberação médica para isso.
A garagem do Queens fazia uma curva em forma de jota e nos levava direto para a rua Miller, onde entrei à direita e continuamos visualizando o prédio extenso em altura e comprimento enquanto o contornávamos por trás. Apenas no final da rua Lusitana, a imagem de onde devíamos legalmente não ter saído, sumira dos meus olhos e do espelho retrovisor e pude sentir uma espécie de alívio patético, porque quanto mais distante, mais ilegítima nossa rota se tornava.
O caminho até a sede não levou mais que seis minutos, mas o silêncio de Danny, fazia parecer que eu estava há uma semana dirigindo o Camaro. De toda forma, ele não precisava de palavras para eu saber o que ele estava pensando. Steve, você perdeu o juízo de vez. Era isso que ele diria se estivéssemos sozinhos naquele veículo, e eu sei que seria só o começo e que ele estaria coberto de razão, assim como sabia que se ele não cancelasse o casamento e desistisse de me ter como pai dos seus filhos, eu seria um cara de muita sorte.
Mas a sorte estava acabando, estacionei o Camaro e passamos uma camisa larga sobre os ombros de Charlotte, como se isso fizesse qualquer diferença.
Lou, Jerry e Chin estavam lado a lado escorados na mesa quando entramos, o semblante de quem procurava respostas na tela diante deles foi substituído pelo espanto e pelas novas perguntas que pairavam sobre suas cabeças.
— Vocês não deviam estar num hospital agora mesmo? — Perguntou Lou.
Encarei Lou sem saber o que dizer, Danny pigarreou piscando demais.
— Pois é. — Foi tudo o que eu consegui dizer.
— Você está bem? — Chin se direcionou à Charlotte. — Sou Chin Ho. Você não estava muito bem da última vez que nos vimos.
— Charlotte... — Ela não se sentia confortável em compartilhar seu sobrenome. Chin apertou sua mão, Jerry e Lou se apresentaram logo depois.
— É porque a fumaça escura é cheinha de monóxido de carbono. Por isso você teve muita sorte por ser a nova protegida do Capitão e do Stark aí.
Lou estreitou os olhos para Jerry. Chin balançou a cabeça sorrindo fraco.
— Ótimo. — Pontuou Danny. Embora sua voz me conferisse paz e tranquilidade, naquele momento um medo crescente grudou dentro de mim. — Agora que estão familiarizados, Steve, será que podemos conversar a sós?!
Fiz contato visual com Chin para que ele tomasse conta de Charlotte, e ele assentiu com a cabeça. Lou nos encarava desconfiado e Jerry fingia que não era com ele. Charlotte não queria ficar longe de nós, então eu precisei avisá-la que só íamos até minha sala e que ela poderia confiar em todos os três presentes.
Danny fechou a porta atrás de si e puxou as persianas, eu me sentei no sofá preto e passei as mãos pelo rosto, sacudindo a vista cansada dos meus olhos.
— Você... — Ele mordeu a dobra do indicador direito. — Perdeu o juízo?!
Cruzei os braços sobre o peito, mordi o lábio e respirei fundo. Esperei.
— Não está satisfeito em sequestrar adolescentes? Vai agir feito um?
Apertei os olhos e busquei qualquer tipo de pedido de perdão em seu rosto.
— Não respondi porque sabia que você tinha mais a dizer. E sim, eu sei tudo o que você vai dizer e a minha resposta é “você tem razão, Danny”. Mas o que eu poderia ter feito? Entregado aquela menina pros pais jogarem por aí, em algum lugar onde ela não seja mais problema deles? Onde ela seja treinada dia e noite até obedecer a uma dúzia de leis rígidas e se esquecer de quem ela é?
Vejo a centelha de ternura brilhar nos olhos dele, que se senta ao meu lado.
— Eu sei, Steve. Eu sei, eu sei, eu sei! Não me transforma no vilão dessa história, porque eu entendo. Droga, você não tinha escolha, não quer que a sua história se repita com ela. Acha que eu quero? Acha que eu teria deixado ela lá? Mas um de nós tem que se lembrar que nós acabamos de conseguir provar que sou pai do Charlie, não posso sair por aí cometendo crimes e perder ele de novo!
— Não vai perder. — Encaro seu rosto, percebo que Danny está temeroso, a língua correndo entre os lábios, os dentes mordendo ora parte de dentro da bochecha, ora os lábios tensos. — Tira o dia de folga. Eu cometi um crime. Sozinho. Não você. Não a Five-0. A Lola não ajudou. Eu fiz tudo sozinho. Vai!
— Acabou de me mandar embora do que exatamente, Comandante?
— Eu nunca te mandaria embora de nada na minha vida. Eu quero você. Quero o Detetive Williams no trabalho, quero o Danny ao meu lado no carro, quero meu noivo no jantar, quero você na cama, no altar, quero todas as suas partes.
— Mas...?
— Mas não é só um de nós que pensa no Charlie. Eu me levanto no meio da noite, depois que você dorme, e vou até a porta do quarto dele porque de repente preciso ver ele respirar, preciso ver o peito dele subir e descer. — Sinto o sorriso passar correndo pelo meu rosto. — Nunca me senti assim, frágil como um pedaço de papel molhado, e estar vulnerável nunca foi tão bom. Eu olho pro Charlie dormindo e... tenho essa sensação de que o milagre já veio. Não tem do que reclamar, do que chorar, não tem dor nem ferida no mundo. Só tem essa sensação de que o milagre já aconteceu, há cada vez que ele respira. Essa é a sensação. Vem de você, da sua família, dos seus pais, dos seus filhos, toda a paz em mim vem de você, Danny. Eu não quero perder tudo pro cara que tem que correr na direção do fogo, mas se eu tiver que escolher um de nós dois... eu sei muito bem quem vai ser a minha escolha. O Charlie não vai ficar sem você, meu amor.
— Você sente que está perdendo algo pro cara que corre pra dentro do fogo. Talvez você tenha interesse em saber que enquanto você dormia no hospital, eu fiz umas pesquisas... quer adivinhar sobre o que eu andei pesquisando, Steve?
— Me internar num hospício? Sobre um novo emprego pra você me deixar?
— Adoção. — Perco a minha falsa confiança, perco o sorriso que mascarava toda a dor e o medo que eu estava sentindo, perco até a serenidade do olhar e sinto as lágrimas afunilando o caminho do ar dentro da minha garganta. — Algo que inclusive pode ser um processo lento, principalmente para um casal homoafetivo, então devíamos assinar logo os papéis e fazer isso o quanto antes. E Steve, você está dando crédito demais pro soldado dentro de você. Quem disse que entrar no fogo por uma garota que você mal conhece e ao mesmo tempo conhece tão bem é coisa de fuzileiro naval? Quem disse que tirar essa garota de um hospital é coisa do soldado? Nem todos os atos heroicos dentro de você vem do soldado. O Steve homem, o Steve marido e o Steve pai, esse é o verdadeiro herói em você, e eu nunca vou deixar esse cara pra trás.
— Como você sabe disso, Danno? Como distingue o fuzileiro do Steve?
— É simples. Por que entrou no fogo? Por uma medalha de honra ou porque precisava salvar uma aquela criança? Só um pai se queima por um filho, Steve.
— Quer dizer que você não desistiu de mim? Do casamento e da adoção?
— É. Quer dizer que não tem eu ou você. Nós estamos juntos até o fim.
— Eu te amo tanto, Daniel. — Puxo seus ombros até conseguir abraçá-lo.
— Eu também te amo muito, Steven. Agora vamos, temos um caso pra fechar, bandidos pra serem presos e uma Cinderela pra ser salva até às 00:00.
...
Os propulsores dentro do meu cérebro queriam muito mais que um abraço apertado, na verdade aquela era uma dose perigosamente baixa de Danny para o meu sangue, eu queria tanto beijá-lo, queria ao ponto de quase pedir pro fuzuê que ouvimos além da porta esperar uns minutinhos e começar daqui a pouco.
Derrapamos apreensivos para fora da sala, minha cabeça produzindo uma dúzia de explicações apavorantes sobre o que se passava do lado de fora. Contudo, nenhuma ideia que perpassou minha mente tinha a mínima conexão com o que realmente se passava ao redor da larga mesa inteligente.
A mochila verde, que eu já havia presumido pertencer à Patrick, estava aberta sobre um dos cantos da mesa e vários cadernos de folhas cróceas ocupavam as mãos de Tani e Junior, que soltavam progressivamente nomes próprios ao ar, como se lessem uma lista de compras, que Jerry habilmente digitava sobre a mesa e clicava Enter na mesma velocidade, armazenando pesquisa ao lado de pesquisa, ele jogava todos os nomes no nosso sistema.
— Quem são esses? São as anotações do Patrick? — Perguntei, confuso.
Danny já estava debruçado sobre o ombro de Tani, verificando, ele mesmo.
— Não vai acreditar no que é isso. — Disse Chin.
— Morris Kekoa. — Junior lançava mais um nome ao ar.
Jerry digitava com os dedos ágeis e os olhos em contemplação.
— Isso, McGarrett, é inédito mesmo por aqui. A nossa vítima acabou de nos entregar os nomes de todos os envolvidos nesse esquema de tráfico. — Falou Lou, com uma ruga no meio das sobrancelhas, como se tivesse acabado de expor um Royal Flush liquidando uma rodada de poker.
Danny se aproximou de Charlotte e espiou o caderninho em sua mão.
— Steve. — Ele sacudiu a mão me chamando. — Conhecemos esse aqui.
Parei sobre a outra alça do macacão de Charlotte e li “Doug Sylar”.
— Eu disse que vocês precisavam conhecer o Patrick. — Ela falou, dessa vez o sentimento de admiração e estima sobrepôs à tristeza da perda recente.
— Sempre um passo à frente, como você disse. — Digo para ela.
— O Holmes não é à toa. — Diz Jerry encarando todos aqueles nomes espalhados pelo brilho elucidante do computador.
Chin solta uma risadinha baixa e modesta e o restante da sala segura o riso. Olho para Danny que sorri de lado como se dissesse que somos todos idiotas, mas Charlotte começa a rir e o sorriso cresce gradativamente para Jerry.
— Você não tem ideia de como o Patrick ia te adorar só por dizer isso.
Acabamos todos rindo juntos, enquanto identificamos quem é quem na larga lista que Patrick Holmes nos deixou de bandeja em suas anotações. Assim como Doug, mais alguns nomes já estão atrás das grades, e outros, como os dois atiradores do terraço, estão mortos. Mas o tal Morris Kekoa, no topo da pirâmide desenhada por Patrick, ainda estava livre de qualquer acusação. E ele não apenas havia morado em NY, como tinha endereço atual em Honolulu.
Era Morris Kekoa o nome que faltava ser riscado na lista dos homens livres, A equipe vestia seus coletes pretos, e recarregava os pentes de suas armas.
— Chefe, quer que acompanhemos a prisão ou... ficamos por aqui? — Junior perguntou, tentando não encarar Charlotte diretamente quando disse por aqui. Notei que Tani se empoleirou ao lado dele, as mãos na cintura, de prontidão.
Danny me olhou com aprovação, porque certamente ele já conhecia minha resposta, que devia estar escancarada no meu olhar num idioma que só ele sabia ler. Então, assentiu com a cabeça me incentivando a fazer aquilo logo.
— Eu quero me desculpar por ter cobrado tanto de vocês dois o dia todo. Quero que saibam que o Patrick nos deixou a resposta, mas vocês encontraram. Estou orgulhoso do trabalho de vocês e quero que executem a prisão do Kekoa. Eu e o Danny temos outras coisas pra resolver, e vocês vão precisar disso.
Estendo as duas mãos e vejo seus olhos se acenderem sobre os distintivos em forma de quadrilátero de pontas muito arredondadas e brilho lustroso.
— Peguem logo. — Danny espalma as mãos. — Vocês mereceram isso.
— Obrigada, Chefe! — Tani recolhe sua insígnia com um sorriso largo que poderia iluminar um bairro inteiro.
— Me sinto honrado, Comandante. — Junior me dirigiu a palavra com tamanho respeito, a coluna impecável como Danny havia frisado mais cedo.
— Pode me chamar de Steve, garoto. Não estamos na marinha agora.
Ele me estende a mão, eu o puxo pra um abraço e Danny sorri ao lado de Tani. Ficamos apenas eu e ele no sofá preto, enquanto Charlotte se senta na poltrona e travamos uma reunião em meu escritório.
— E depois que o relógio badalar à meia noite? — Danny pergunta.
— Eu vou para Nova York. — Charlotte apoiava os antebraços nas coxas, os ombros jogados pra frente, fazendo as curvas do cabelo fino se debruçarem sobre as maçãs do seu rosto.
— Nova York?! — Perguntei. Um pouco desapontado, tenho que confessar.
— É. Eu fui aceita numa universidade legal, Queens. Vou estudar sobre biologia e quem sabe não consigo um estágio no Central Park? Posso me deparar com um coiote no bronx, águias carecas no queens, falcões de cauda vermelha em manhattan... nova york é um zoológico gigante à céu aberto.
— Parabéns, Charlotte! — Danny sorriu de forma paternal em direção à menina. Me senti bem ao ver a forma como ele estava orgulhoso dela, porque eu me sentia da mesma maneira, e sabia que para Charlotte aqueles poucos minutos onde dois adultos sentavam apenas para ouvir suas histórias e planos, podiam mudar o rumo de toda a sua vida e nunca mais fugir do laço da sua memória. — E o Central Park? Eles seriam malucos se não aceitassem você!
— Se... por acaso vocês passarem por Nova York, prometem me visitar? — Charlotte tinha um rosto bonito e cândido, com feições que sempre pendiam pra baixo, a boca, os olhos, sobrancelhas. A vida havia feito isso com ela, e dava pra sentir quando ela dizia algo pela primeira vez, quando ela pediu uma coisa a qual não estava acostumada, dava pra sentir que éramos importantes pra ela.
— Nós vamos até Nova York pra te visitar, eu prometo. — Digo e no meio da promessa, minha garganta fica estreita porque a vontade súbita de chorar é mais forte, e Danny percebe pois desliza a mão pelo sofá, até tocar a minha.
— Já te contei que sou de Nova Jersey? — Danny suaviza nossa conversa.
— Ah não! Quando ele começa a falar de Jersey, não para mais de falar!
— Steve, essa sua imagem de “eu odeio Jersey” não cola mais comigo. É sério. — Ele balança a cabeça, como quem diz dá pra acreditar nisso?! — Nós estávamos lá há poucos dias, e ele ficava dizendo como adorou minha cidade.
— Sabe que ter nascido lá não faz de Jersey sua cidade. Não sabe?
— Meu Deus, que cara chato! Resumindo, Charlotte. — Ele inclina o corpo na direção da garota, me excluindo da conversa, mas a mão continua na minha. — Jersey fica colado em Nova York, você vai ser sempre bem vinda na casa dos meus pais, a nossa filha, Grace, mora em Jersey e ela vai adorar você!
— Obrigada... Ela tem muita sorte por ter vocês... São quantos filhos?
— Dois. A Grace que acabou de entrar na faculdade também, e o Charlie que tem nove e mora com a gente, então espero que você conheça ele antes de ir.
— Ah, temos uma amiga em Nova York! O nome dela é Lorna, e ela ajudou nesse caso... se não se importar, posso pedir pra ela te dar uma força por lá...
— Claro, Steve. Eu não sei mais como agradecer tudo que estão fazendo...
— Simples. Só continue sendo você. Temos orgulho de quem você é.
Digo, e ouço de longe quando o ar escapa com força por seus lábios e ela funga, leva as mãos ao rosto onde abaixo das lágrimas, nasce um sorriso lindo.
— Ah, vem cá. Anda. — Danny a chama para o sofá, ela se empoleira entre nós meio sem jeito, eu passo o braço por seu ombro e Danny segura sua mão.
— Obrigada... — Ela sibila de novo e chora o quanto precisa chorar, seja pelo melhor amigo que pela primeira vez não vai voltar quando o sol se pôr, e chora porque seu mundo cinzento foi sacudido e virado de cabeça pra baixo.
— É isso que a família faz, não é? — Diz Danny, tateando meu rosto.
— É. É isso que a família faz. — Respondo e beijo sua mão em meu ombro.
Charlotte finalmente sorri, ainda engalfinhada entre nós como uma criança escondida por baixo de um tecido esticado como o teto de uma barraca caseira.
— Tem mais uma coisa...
Antes que ela possa dizer mais, ouvimos vozes alteradas ficando mais perto.
Danny se vira num estalo e espiamos juntos pelo vidro, de onde não conseguimos visualizar coisa nenhuma, mas entendo que alguém saltou do elevador em nosso andar com a voz algumas oitavas acima do tom natural.
— É a voz do meu pai... — Charlotte sibila com a respiração inquietante.
...
Apaguei a luz do meu escritório, me sentindo um trapo por deixar Charlotte, depois de todas as noites solitárias de sua vida, escondida num cômodo escuro. Alcancei Danny quando ele já estava de conversa com o homem que entrou vestido a rigor, cheio de marcas caras cobrindo a pele do seu corpo largo, e com a cara de poucos amigos, acompanhado por uma mulher esguia com pérolas por todo lado. Eram um típico casal infeliz que vivia num porta-retrato de ouro.
— Tudo bem, Senhor. Vamos ao meu escritório e tratamos sobre isso. — Disse Danny, uma das mãos apoiadas no cinto, a outra apontando o lugar que ele mencionava tentando atrair os pais de Charlotte pra outra esquina, distante de onde a filha se encolhia com a cabeça entre os joelhos até sumir no sofá.
— Eu quero falar com quem está no comando. E quero falar agora! — O homem respondeu, sacando rápido que Danny só estava ganhando tempo.
— Comandante Steve McGarrett. É comigo que quer falar. Pois não? — Ofereço minha mão para um aperto, o homem aceita e dirige o corpo em minha direção, cativado pela patente que ofereço de bandeja em suas mãos. Em seguida, sua esposa repete o gesto me olhando como se quisesse flertar.
Danny respira fundo, o corpo impassível ao meu lado, encarando o casal.
— Acredito que seja desnecessário me apresentar, mas sou o Secretário de Estado Thomas Green, e fui informado que estão com minha filha, Charlotte. — Ele se empertiga quando expõe seu posto no governo, se sentindo auto elogiado ao declarar sua profissão. E logo, murchando irritado ao notar que nenhum de nós dois moveu uma ruga diante sua proclamação.
— Acredito que não seja necessário dizer, mas como pode ver não estamos com sua filha. E estamos no meio de uma investigação ativa nesse momento.
O homem semicerrou os olhos mas tentou simular indiferença.
— Sabe o tamanho da lista de advogados que tenho em minha agenda, Comandante?
— Imagino que seja longa e que sejam os melhores, senhor Green. — Respondo, e percebo que minha dissimulação de indiferença o enfurece.
— Está certo, Comandante. Devo lembrar que Charlotte ainda é menor de idade, que vive sob nossa responsabilidade, a qual oferece uma mansão com tudo o que qualquer adolescente gostaria de ter. Não sabia que a força tarefa está tão interessada em satisfazer os caprichos de uma menina que quer chamar a atenção!
— Licença, mas o Detetive Williams, que a propósito sou eu, tem uma pergunta pra você. Quantos metros quadrados deve ter uma mansão... talvez dois mil? Como você conseguiu em dois mil metros quadrados não oferecer um único centímetro onde sua filha pudesse simplesmente ser a garota maravilhosa que é?
— O quê?! — O rosto inchado do homem fica vermelho como um tomate maduro. — Está insinuando que negligenciamos a criação de nossa filha, Detetive? Tem noção da injúria que está cometendo nesse momento?
Danny não abaixa a cabeça e o conheço demais para saber que ele não vai procurar manobras evasivas para fugir daquela conversa. Ele destrava o coldre, o homem da um passo para trás assustado, Danny apenas retira a arma e logo em seguida o distintivo da cintura e bate com as mãos em meu peito, onde aparo seus pertences, sem surpresa nos olhos que ainda vislumbram o casal atordoado.
— Esse não é o Detetive falando com o Secretário. É um pai falando pra outro. E como pai, eu não ligo nem por um segundo pro seu cargo no governo ou pra sua lista de advogados. A Charlotte não desistiu de quem é e eu também não vou.
— Quem diabos você pensa que é? Vai permitir isso, Comandante?!!
— Eu sou o cara por cima de quem você vai ter que passar pra mandar a Charlotte pra um acampamento que promete curar a honra daquela menina.
O homem vira o rosto para mim, me desafiando diante a postura de Danny.
— E eu sou o cara que viu o corpo de um adolescente parar no necrotério porque as drogas foram o refúgio que ele encontrou pra fugir dos pais. Ser gay não é uma escolha, Thomas, mas ser autêntico é e foi essa escolha que salvou a vida de sua filha, que não a levou pro necrotério junto do seu amigo. Eu sou o cara que entrou num prédio em chamas pra salvá-la e não vou desistir dela agora.
— Vocês lá sabem o que é ter uma filha adolescente pra virem me ensinar alguma coisa? Já imaginaram o que é ter alguém assim dentro de casa? Acha que alguém vai levar ela a sério desse jeito? Acha que ela vai ser aceita por alguém?
— Já que perguntou, nós temos uma filha adolescente, senhor. — Respondo.
— Ela tem quase a mesma idade que Charlotte e seria um prazer ser pai de uma garota tão inteligente e especial como a sua filha. — Danny completa.
— Vocês tem uma filha? Vocês são...?
— Gays. É isso ai. Ele é gay, eu também sou gay. Pode falar, não é palavrão.
— Temos orgulho de quem somos, senhor. E temos orgulho de Charlotte.
— Thomas, vamos embora? — Pede a esposa que até então estava calada.
— O governador vai adorar saber disso. — O homem sibila entredentes.
— Quer o meu celular para falar com ele? — Ofereço com sarcasmo.
A mulher, acuada, puxa o marido pelo braço. Sabe que é hora de desistir.
— Jogamos golf no mesmo clube. Tenho certeza que ele vai se interessar. Podem ir se despedindo desse Palácio. Isso não é trabalho pra gente como vocês.
Ouço passos atrás de mim, fecho os olhos porque sei o que significa.
— Não, pai! — Grita Charlotte com os punhos fechados sob os braços enrijecidos de raiva e medo. — Você não vai fazer nada contra Steve e Danny!
— Charlotte. Jesus! Você está parecendo uma pedinte. Olha isso, Thomas!
Diz a mulher com o rosto horrorizado, indo até a filha e lhe dando um abraço de madame, cujos braços não tocam verdadeiramente a garota, que esmorece.
— Achei que tinham dito que não estavam com minha filha! Vamos, Charlotte.
O homem se da por vitorioso e cabeceia para que Charlotte o acompanhe.
Ela continua atrás da linha formada por meu corpo ao lado de Danny.
— Eu disse não! Não vou com vocês e você não vai prejudicar eles dois!
— Não tem escolha, garota. Eu sou o responsável legal por você! Vamos!
— Você vai recolher toda a sua arrogância e prepotência e vai embora daqui. Vai parar de me usar em suas campanhas, vai me deixar em paz pra seguir com a minha vida longe de vocês, e nunca mais vai tocar nos nomes Steve e Danny!
— Você enlouqueceu, garota? Está usando as ervas daquele seu amiguinho?
— Aquele meu amiguinho está morto, e eu só estou aqui tendo essas última briga com você, porque esses dois homens foram em poucas horas mais pais pra mim do que você foi a vida inteira! — Seu queixo treme, ela chora lágrimas que pareciam estar armazenadas há anos, e elas impulsionam as palavras a voarem por sua boca, abrindo mão de qualquer freio, ela cospe tudo sobre os pais. — E se você procurar o governador para prejudicar essa força tarefa por descriminação, eu vou de porta em porta procurar cada tabloide, cada jornalista e cada paparazzi dessa ilha e vou contar tudo o que eu sei. Pode esperar por manchetes sensacionalistas, e eu te garanto que vou ter toda a atenção que quero!
— Do que está falando, Charlotte? Nunca fizemos nada com você, minha filha!
— De tudo, mãe. Eu estou falando de tudo. Quer que eu seja mais específica? Estou falando do dinheiro dos contribuintes que acabam nas mãos dos cirurgiões plásticos que moldam o seu corpo. Eu estou falando das escapadinhas que o meu pai dá com a secretária que não tem muito mais idade do que eu. Eu estou falando que a filha de vocês é sim gay, e tem mais, tem muito mais. Eu tentei não ser eu, tentei não ser quem sou, tudo pra negociar com vocês um pouco de amor, mas veja só como isso terminou. Eu, dezessete anos, há quase um mês morando na rua, tomando banho em banheiro público e dormindo com dezenas de viciados, quase morri hoje num incêndio numa fábrica clandestina de drogas, perdi meu melhor amigo por overdose e advinha só? Quando tentei ser a filhinha querida de vocês, foi com o Patrick que eu contracenei e se agora eu estou fazendo tudo isso é porque não quero cometer o mesmo erro que vocês, e negligenciar um filho. É tudo o que queria, delinquente, gay e... grávida de um cara que está morto de tanta metanfetamina que ele injetou pra fugir dos pais agressores. Essa é a história e não vai adiantar trocar o canal, todos vão trazer a mesma manchete. A menos que saiam agora por essa porta e esqueçam quem eles são e quem eu sou.
Charlotte havia se transformado num pequeno canhão. Os anos de passividade, inércia e omissão eram juntos a grande granada que armava o tiro, incendiado pela pólvora vinda da opressão e discriminação dos próprios pais. E agora sua maior idade vindo a tona determinava o horário da espoleta. A descoberta da gravidez, Charlotte decidir sair de casa e ir morar nas ruas, com o pai do bebê que agora está a caminho de ser liberado para a cerimônia final... Fogo! A cordinha é acionada e agora o martelo bate, a fagulha queima a pólvora da munição e a granada é cuspida num tiro reto e curto até seus pueris pais. Como todo grande tiro, o coice de seu lançamento de palavras a empurra para trás. Charlotte cambaleia entre nós, eu e Danny a cercamos e sua respiração só retorna a um compasso aceitável, quando seus pais se viram e vão embora, percebendo que sua simples permanência no mesmo cômodo a estava sufocando, e que não haveria canhão maior para ser lançado de volta sobre ela.
...
Era uma noite de contemplação. Daquelas em que as estrelas parecem terem sido colocadas com cuidado acima de nossas cabeças, de forma que não fosse preciso retorcer o pescoço para ter sempre meia dúzia delas diante de si.
— Menino. Pelo bem da sua saúde, um menino! — Dizia Lou para Adam. Entrando na aposta sobre o bebê de Kono e contrapondo o palpite de Danny.
— Vai ser uma menina. Eu já disse, sonhei com isso! — Danny retrucou.
— Lá vem você com esse papo de vidência! — Kono respondeu sacudindo a cabeça em reprovação.
— Irmã, o haole tem razão dessa vez. Há uns anos atrás uma vidente me disse que o Kane aqui seria o maior empresário dessas terras paradisíacas. — Falou Kamekona, pedindo validação de seu primo Flippa que sacudiu a cabeça confirmando a informação enquanto colocava um pedaço farto de peixe na boca. Chin deu tapinhas simbólicos nas costas de Kono.
— É, prima. Não dá pra derrubar esse argumento. — Ele debochou.
Do outro lado da mesa, Nick Demarco, ou se preferir, The Kid, recontava pela enésima vez sua história sobre ter sido mentoreado pelo Frank Sinatra em pessoa. Ter trazido Lola, Linda e Charlotte ao bar pela primeira vez, deu a Nick a chance de aprimorar sua história por três vezes seguidas na mesma noite.
Por alguma razão, aquele falatório desenfreado e, por vezes, mirabolante de Nick, caía como uma luva sob os sussurros que Tani e Junior trocavam, ou sobre a imagem bonita de Adam encarando a barriga de Kono e provavelmente imaginando o que estava se passando com o pequeno serzinho ali que criava vida. Eric também contava alguma história do outro lado da mesa, eu só podia ver ele mexendo os lábios na direção de Noelani, Max e Jerry, que vez ou outra abriam a boca desacreditados ou cerravam os olhos perdidos em algum ponto. Lola estava cansada, além de ter nos ajudado a escapar do hospital, havia dobrado plantão, e Linda estava dividida entre Lou e Kamekona que ensinavam receitas completamente opostas sobre algum prato que envolvia carne seca.
Nick continuava a verborragia, nesse momento para Charlotte, que segurava o rosto entre as mãos e sorria sonhadora se imaginando dentro daquela história, talvez pensando no que Patrick diria se tivesse sentado bem ao lado dela, ou quem sabe pensando nos famosos que ela viria a conhecer em Nova York, embora eu soubesse bem que ela estava mais interessada nos animais.
Já era quase meia noite e Charlie dormia debruçado sobre meu ombro esquerdo, minha desculpa perfeita para ficar em silêncio, só observando cada pedaço da nossa Ohana e sentindo a gratidão invadindo meu peito, a sensação de missão cumprida por ter sido, ao lado de Danny, uma espécie de cola que juntou todos esses corações quebrados, dentro de um único grande o suficiente pra acolher todas as formas de amor e vida que surgisse em nosso caminho.
— Você tá bem, Amor? — Perguntou Danny, à minha direita, esgueirando o corpo em minha direção e enlaçando nossos dedos, enquanto avaliava meu rosto. Senti o sorriso se espalhando em mim, ficando maior do que eu pretendia, espichei a cabeça um pouco e ele terminou de romper o espaço entre nós, senti seus lábios se intercalando nos meus perfeitamente, como duas peças feitas sob medida.
— Eu nunca estive melhor. — Respondi, quando nos afastamos.
Senti falta de um burburinho no ar, era Nick que havia se calado e nos olhava surpreso, os olhos meio estatelados e só então percebo que ele não sabia, ainda.
— Então... — Ele disse, musicalizado. — Tá rolando, finalmente?!
Danny ergue a mão direita, exibindo sua aliança de noivado, e eu o imito.
— Saberia disso se tivesse ido ao aniversário que te convidei outro dia.
— Eu tinha um show, mas saibam; não perco esse casamento por nada! — Ele diz e continua nos encarando. Espero Nick voltar a falar sobre Sinatra, mas ele parece distante e ainda sem tirar os olhos sobre mim, diz: — Talvez você não saiba disso, mas sua mãe sempre soube que vocês acabariam juntos.
— Dóris?! — Tento não parecer tão afetado, mas engulo em seco do mesmo jeito e sinto as batidas do meu coração andarem depressa sob minha camisa.
— Você só tem uma mãe, garoto. E ela deve estar bem orgulhosa por aí.
— Você acha mesmo? — Pergunto, meio duro, mas sem conseguir evitar.
— Dóris pode ser um grande mistério, mas sempre disse que vocês formavam um belo casal e que sabia que o Danny era a pessoa certa pra você.
— Ela disse isso?! — Pergunta Danny, não menos surpreso que eu. — Uau!
— É o queridinho da sogra, Williams. — Nick responde. E como se não tivesse acabado de soltar uma bomba atômica na mesa, se vira para Abby e Quinn, que acabaram de chegar, e vai contar sua história mais uma vez.
— Uau... — Danny diz outra vez, agora com o rosto virado para mim.
— Uau. — Respondo, sentindo seu polegar correr nas costas da minha mão.
23:55 avisa meu relógio. Danny faz sinal para o garçom trazer o champagne.
Todos pegam suas taças e fazem silêncio, porque não quero acordar Charlie.
— Hoje foi um dia difícil, mas um dos mais importantes da minha vida, e pra falar a verdade... acho que a maioria dos dias importante são assim. Não dá pra desatar uma coisa da outra, a cicatriz faz a gente se lembrar do que aconteceu, mas não precisa ser uma lembrança ruim. Eu conheci cada um de vocês de uma forma diferente, mas teve uma coisa em comum, todo mundo perdeu algo no caminho, todo mundo entrou na vida um do outro meio caindo, tropeçando, mas a gente se ajudou a levantar e continuou junto depois disso. É isso que faz da gente família, estar por perto para tentar aparar o outro antes dele cair.  Eu tenho muito orgulho de ter vocês como Ohana, todos vocês. Eu espero que você seja muito feliz! Você tem uma família aqui, Charlotte, seja bem vinda!
Entendo minha taça de champagne e Danny é o primeiro a retribuir.
— À Charlotte! Parabéns e seja bem vinda a nossa... Ohana italiana!
Em torno da mesa, nossos amigos repetem palavras de boas-vindas e felicitações à Charlotte, até que fique bem claro que ela tem um lugar cativo entre nós. Ela estende a taça com refrigerante e oferece um brinde ao amigo Patrick, então abraça Danny pela cintura com força e chora com gratidão.
— Meia noite. Você é livre, mas por favor não desapareça das nossas vidas! — Peço, e recebo um abraço de Charlotte que suspira aliviada e toma possa de sua maioridade e liberdade num sorriso exageradamente bonito.
— Eu... disse mais cedo que tinha mais uma coisa que queria pedir a vocês. — Charlotte puxa sua cadeira para perto, eu e Danny nos inclinamos para ouvi-la com atenção e o restante da mesa continua a noite sem nós.
— Pode nos pedir qualquer coisa. — Digo, segurando Charlie contra meu ombro enquanto arrasto de leve a cadeira na direção de Danny e Charlotte.
— Ela sabe disso, mas você precisa deixar a garota falar! — Danny resmunga, apenas para arrancar um sorriso imediato de Charlotte e consegue.
Percebo que ela tem lágrimas nos cantos dos olhos enquanto nos observa, mas o sorriso é muito maior e denuncia que são lágrimas bem aventuradas.
— No Jardim Zoológico de Berlim tem um casal de pinguins, ambos machos, os nomes são Skip e Ping. Skip era o mais durão, uma espécie de macho alfa entre eles e Ping... um tanto quanto mais delicado. — Ela olha de mim para Danny e solta um riso meio frouxo e rouco, a primeira risada de Charlotte. Então sua expressão se torna mais serena quando ela respira fundo e segue. — Além deles, tinha uma pinguim fêmea de nome Orange, que é um nome ótimo a propósito, e ela nunca, nunca, nunca mesmo tinha chocado um ovo na vida dela, então vocês podem imaginar como ela deve ter ficado assustada ao descobrir que tinha uma pequena vida tomando forma dentro daquele ovo... e ela... colocou aquele ovo no mundo, mas... sabia que não seria ela a chocá-lo... porque ela não estava preparada, e em algum lugar eu acho que ela sabia que queria o melhor para aquele pequeno pinguim e o melhor lugar pra ele seria sob as asas de quem pudesse aquecê-lo com todo o amor que ele possa receber. Skip e Ping... aquele casal de pinguins-reis que queriam tanto ter filhos que cuidavam de pedras arredondadas na esperança de algo sair de dentro delas... foram eles juntos que cuidaram daquele ovo, eram eles o destino daquele penguinzinho...
— Por que está contando isso pra gente, querida? — Perguntou Danny, com a ponta do nariz vermelho e o queixo trêmulo sob o choro que lhe coçava a face.
— Porque vocês são os meus Skip e Ping, e eu quero ser a sua Orange...
Duas ruguinhas se formaram no canto de cada um dos olhos de Charlotte, e agora haviam lágrimas entre suas pálpebras, mas tudo nela era um sorriso.
— Você... — Tentei, mas minha voz saiu tão embargada que me fez tomar nota de que eu estava perdendo água pelos olhos com o rosto atônito.
Ela sacudiu a cabeça de cima pra baixo várias vezes, estava certa disso.
— Meus pais se casaram por um tratado, um negócio bem feito. Os pais do Patrick se casaram porque a mãe ficou grávida e queria uma casa pra morar. Vocês vão se casar porque se amam e eu ouvi a conversa naquele terraço, e aquele ponto de interrogação na minha cabeça se tornou um ponto final sólido e brilhante quando eu vi vocês, vinte e quatro horas podem ser muito claras. E sei que o Patrick iria querer o mesmo, a última frase que li em seu livro dizia “No fundo de um buraco ou de um poço, acontece descobrir-se as estrelas”. O dia de hoje foi o poço mais fundo que pisei e vocês dois as estrelas mais brilhantes. A pergunta é... vocês querem... serem os pais desse... pequeno pinguinzinho?
Meus olhos correram para Danny, que me olhou de volta como se pequenos diamantes tivessem invadido sua retina, e nesse momento, Charlotte entendeu.
— Você... tem certeza que... — Tentei perguntar.
— Tenho. — Ela se apressou em responder com toda a convicção possível. — Eu vou pra Nova York, mas quando tiver perto de nascer, volto. Vocês podem acompanhar toda a gravidez, e quando nascer, o bebê é de vocês.
— Temos... — Danny tinha dificuldade em organizar a própria voz. — Um monte de detalhes para conversar... você vai pro outro lado do oceano afinal... mas... — Ele se levantou e agachou a coluna bem na minha frente, os dedos se enrolando na minha barba. — É uma decisão maior que um restaurante... — Ele olhou dentro dos meus olhos, sentia meu rosto sendo lustrado, ele sabia minha resposta, não precisava de nenhuma palavra escapando da minha boca. — Charlotte. — Ele se voltou para ela. — Somos os seus Skip e Ping.
— Vamos ter um bebê... — Sibilei tão baixo que eu mal pude me ouvir. — Vamos ter um bebê. — Dessa vez, Danny me ouviu e pôs o rosto no meu.
— Temos a nossa letra C para comemorar. Nós temos nossa letra C!
— Eu te amo! Vamos nos casar e vamos ter um bebê... vamos ter um bebê... — Não conseguia mais parar de repetir aquilo. — Vamos ter um bebê!
Toda a mesa se calou por um segundo. Sorrisos largos e olhos estatelados se espalharam no rosto de todos, que voltaram a si com toda a intensidade que podiam, se exaltando em palmas, lágrimas, gritos e muitos abraços.
— Vamos ter um bebê. — Danny disse por fim, me abraçando apertado.
— Vamos ter um bebê. — Respondi caindo na cadeira, e tentando acalentar Charlie em meu ombro, enquanto Danny se debruçava sobre minha cadeira para colar os olhos nos meus e me beijar. — Vamos ter um bebê, meu amor...
Abri os olhos e vi nossa Ohana sorrindo juntos na mesma sintonia, Charlotte sorria a cada vez que repetíamos aquela frase tentando assimilar tudo o que ela carregava em sua cauda, e falando em cauda, a estrela-do-mar no braço dela resplandeceu sob a luz das estrelas incutidas sobre nossas cabeças, soprando para nós que o destino pode ser maravilhoso se você souber para onde olhar.

***

mas o gosto da sua boca ...Where stories live. Discover now