'elima

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— Tá bom, Steve. Eu preciso dizer isso: O Noah me lembra muito você!
— O quê?! Você tá dizendo que pareço o Ryan Gosling?
— Não! Não o Ryan, mas o Noah. Olha só, quem eu conheço que é maluco suficiente pra deitar no meio da rua e ficar esperando um carro passar?
— Falando em carro, Senhor Danny Williams. Reparou que a Allie dirige igualzinho a você?!
Danny solta uma risadinha anasalada tão encantadora que me arrependo por não estarmos nos falando por vídeo-chamada.
— Juro que tô morrendo de rir por você me comparar com alguém que nunca pegou num volante. Sendo que é você quem nunca me deixa pegar num volante!
— O mesmo temperamento. Vocês devem ser parentes!
— E você com certeza tem o sangue dos Calhoun correndo nas veias.
Um dos raros intervalos de silêncio se fez entre nós.
— Me lembra uma coisa. Por que estamos conversando por telefone e vendo filme em casas separadas? Você poderia ter vindo.
— Porque um: sempre sou eu quem vou pra sua casa, mas hoje não dá, tenho que buscar o Charlie mais tarde na casa da Rachel. E dois: porque você é pão duro e não gasta gasolina pra vir até aqui.
Era verdade. Mas o motivo de eu estar fazendo Danny vir até mim era bem simples: ele tinha namorada e eu não. E já faz bastante tempo desde que decidi que prefiro ficar longe e até esquecer se o nome real dela é Amber ou Melissa. Não preciso testemunhar sua presença. Em outras palavras, gasolina cara.
— São bons motivos. Só acho que talvez a gasolina fique mais barata que essa ligação.
— Como se fosse você quem está pagando.
— Quer saber? Tenho uma ideia. É um ótimo momento pra testarmos o presente que te dei de aniversário.
— Nem pensar. Eu não vou fazer isso.
Fui até a escrivaninha sem dizer mais nada. Peguei a caixa na primeira gaveta e abri, retirei o walkie-talkie de nova geração e longo alcance e comecei a falar sozinho porque sabia que Danny não ia aparecer.
— Câmbio. Allie Hamilton, você pode me ouvir?
O aparelho só registrou estática. Por um segundo achei que Danny estava lá, no outro caí na real, voltei para o celular e tirei Danny da chamada em espera.
— Você tem mesmo que fazer nossa tarde de filmes parecer uma operação tática?
Ouço alguém batendo na minha porta, uma, duas, três, quatro vezes. Impaciente.
— Tem alguém na porta.
— Aposto que é a Sra. Jacobs atrás do gato de novo. Aliás, como é mesmo o nome dele?
Mais algumas batidas na porta. Enfiei o walkie-talkie no bolso e fui até lá.
— Vê se pausa o filme!
— Tá booooom. Mas não demora ou eu vou ver sozinho!
— Te ligo em um minuto.
Mas eu não liguei.
— Oi, Steve.
— Rachel?! O que você faz aqui?
— Acho que o Charlie pode estar em perigo!
Não percebi na hora, mas Rachel disse as palavras mágicas para conseguir que eu fizesse qualquer coisa que ela mandasse.
...
— Do que você está falando? Cadê o Charlie?
— Deixei ele num acampamento da escola ontem. O ônibus deveria ter voltado às 09h. Fiquei na porta da escola com os outros pais até agora a pouco.
— Rachel, são quase uma da tarde! Eles não contactaram o motorista ou... deve ter algum professor acompanhando os alunos, certo?
— Sim, mas não conseguiram contato com eles. E o Charlie também não atende o celular. Eu não sei mais o que fazer. Estou com medo, Steve.
Ela se joga em meus braços como uma criança assustada. Como sempre, tem algo em torno de Rachel que me incomoda. Como anéis em volta de Saturno, mas os dela parecem sombrios.
Mantenho uma mão em seu ombro e penso.
— Você já falou com o Danny?
— Não! O Danny vai surtar. Você sabe como ele é.
Me afasto e tento não demonstrar todo meu descontentamento.
— Tudo bem... nós podemos contar juntos pra ele. Vai ficar tudo bem.
No momento certo meu celular chama. Danny.
— Não, Steve!
Rachel cobre meu celular com as mãos, com certa e inédita rispidez.
— Rachel? — Por um segundo não a reconheço.
— Me desculpa. — Sua voz suavizou, como se fosse começar a chorar. — É que... da última vez que isso aconteceu, a Grace estava numa vala. E o Danny... você não viu, mas ele gritou comigo no hospital! Não aguento isso outra vez...
Agora ela está de fato chorando.
— Rach... olha só, nós vamos encontrar o Charlie, mas eu não vou mentir pro D-
— Ai meu Deus, é da escola. — Ela retira seu celular do bolso. — Alô?
Meu celular vibra no mesmo momento, e Rachel de algum modo, percebe.
Ela desliga o celular com um semblante assustado.
— Querem que eu vá até a escola. Por favor, vamos até lá. Talvez eu só esteja exagerando e tudo esteja bem. Não vamos preocupar o Danny à toa. Se tiver mesmo um problema, então você fala com ele.
— Vamos logo até a escola.
Pego meu coldre sobre a mesa e finco o distintivo. Meu celular vibra.
Cadê você, hein? A propósito o nome era Ringo.
...
Rachel estava nervosa demais, então a coloquei no banco do carona do meu Silverado. Aquilo tinha tudo para dar errado, porque sei que Danny vai ficar preocupado com meu sumiço repentino. Ele pode dirigir até minha casa e encontrar o carro da Rachel. Não quero que ele passe por isso. Embora também não quero ver seus olhos daquele jeito de novo, o medo estampado, o desamparo. Talvez Rachel tenha razão. Talvez seja melhor ter certeza.
Quando viro a esquina para entrar na rua da escola de Charlie, tenho certeza. São carros e mais carros se acumulando na garagem. Curiosos se aproximam como quem não quer nada. E finalmente, vejo as sirenes. Um rosto conhecido.
— Hey, Duke! — Salto para fora do carro. — O que sabemos?
— Uma das turmas saiu para um acampamento ontem e não voltou. Não há nenhuma notícia sobre o paradeiro deles. Não conseguimos rastrear o GPS.
— Me deixem passar! Eu trabalho aqui!
Uma mulher gritava contra a barricada de policiais. Eu me lembrava dela, Charlie costumava dizer que é distraída, está sempre derramando café na roupa ou tropeçando nos degraus da escada.
— Hey! Deixem-na passar!
— Você não é um dos pais... do Charlie?
— Tio. — Disse, sem jeito. — Tem ideia do que está acontecendo aqui?
— É tudo culpa minha. — Ela começa a chorar.
Meu coração aperta. Charlie...
— O quê? O que você fez? Cadê o meu filho?! — Rachel se aproxima com os olhos ferventes. Tenho a impressão de que ela poderia esganar a mulher.
— Rachel, se acalma. Não precisamos disso agora. Entre, Sra. Patterson e nos diga tudo o que sabe.
Finjo que estou no auge do meu controle e sensatez. Enquanto desabo internamente no caminho até a primeira sala vazia que encontramos.
— Eu estava escalada para esse acampamento. Mas descobri que estou grávida e a política da escola não permitiria que eu fosse. Então vim até aqui ontem para desejar um bom passeio para as crianças. Quando o ônibus chegou, eu vi que não era o Sr. Fitz, o motorista de sempre. Perguntei imediatamente onde estava o Sr. Fitz. O homem respondeu que a empresa o chamou para substituí-lo, pois ele não estava se sentindo bem. Ele estava uniformizado, tinha um crachá e a rota num mapa sobre o painel do carro. Na hora não me pareceu nada demais, mas agora... eu devia ter confirmado as informações dele.
Ela cobre o rosto com as mãos e posso ouvir seu choro engasgado.
— Qual o primeiro nome do Sr. Fitz?
— George. Eu também fiz algumas fotos do ônibus partindo. Realmente queria ter ido com eles...
Vejo o rosto de Rachel petrificado, duro em direção à Sra. Patterson.
Pego o meu telefone e isso chama a atenção dela instantaneamente.
— Lou. Preciso de você. Na verdade, preciso de toda a equipe. Vou mandar o endereço por mensagem, e Lou... — Rachel me encara. — por favor, deixa que eu chamo o Danny.
...
— Steve, Tani falando. Junior está comigo na sede. Acabei de processar as imagens que você nos enviou e temos um nome. Turner Diaz. É fichado e perdi a conta de quantas prisões. Roubo, lavagem de dinheiro e... suspeitas de envolvimento com tráfico de drogas.
Desgraçado. Se ele tocar um dedo no Charlie...
— Chefe, tudo bem? — Ouvi a voz preocupada de Junior.
— Prestem atenção, estamos lidando com o possível sequestro de uma turma de crianças... a turma do Charlie. — Ouvi os lamentos do outro lado da linha. — Pedi a Jerry para fazer uma lista com todos os pais das crianças da turma. Tani, preciso que investigue uma possível ligação entre eles e Turner Diaz. E Junior, quem deveria dirigir aquele ônibus é George Fitz, preciso que entre em contato e descubra se ele está bem e o que sabe. Sejam rápidos.
Não cheguei a guardar o celular no bolso, porque sabia que faltava alguma coisa. Ou alguém. As mensagens de Danny já se acumulavam em minha tela.
— Oi! — Disse uma nova voz, feminina e apavorada. Eu a conhecia. Era a diretora da escola. — Você não é um dos pais do Charlie? E não é da polícia?
— Ele é o tio. Eu sou a mãe do Charlie.
— Você está tremendo. O que aconteceu com você?
— E-Eu recebi uma ligação... dos sequestradores.
...
Era oficial. Um sequestro. Charlie havia sido sequestrado. Pensar nisso fazia meu estômago revirar. Sinto que uma parte da minha alma acabou de morrer. Mas sabia que eu precisava ficar firme e trazê-lo de volta pro colo de Danny.
— Duke, preciso que organize buscas. Já fazem muitas horas, mas alguém vai notar um ônibus escolar no lugar ou na hora errada. Quero que fiquem de olho ao redor do prédio e também precisamos de bloqueios nas estradas.
— Vou providenciar.
Me certifico de que estou com tudo no lugar. Arma, distintivo, celular, chave do carro.
— Steve! — Rachel se levanta. — Você não vai sair, vai?
— Eu preciso, Rachel.
— Mas a diretora disse que os sequestradores vão ligar a qualquer momento. Você precisa ficar aqui para falar com eles. Precisamos de você!
— Rachel. Esse é o Capitão Lou Grover e ele é meu homem de confiança por trás do telefone. Vai segurar os sequestradores na linha até eu voltar. Com o Danny.
Lou respirou fundo. Sei que estava pedindo demais. Ele tem um histórico difícil com negociações que envolvem crianças. Mas agora, eu sabia que ele era minha melhor opção. E não era porque Kono estava viajando com Adam, ou porque Chin aproveitou para tirar férias curtas com Abby e Sarah. É porque Lou tinha minha confiança, e nesse momento isso significava muito.
Lou assentiu com a cabeça. Era tudo o que eu precisava, pelo menos como policial.
— Steve, espere que liguem. O Danny vai surtar, só vai piorar as coisas...
— Já chega, Rachel. Você toma decisões por seus filhos, mas isso é um caso policial e eu comando minha equipe. — Devia ter parado por aí, mas as palavras saíram como se alguém tivesse me coisas um tapa nas costas. — Pode achar que Danny é um cara chato porque ele se preocupa, mas ele é um pai maravilhoso, um homem incrível e um exímio policial, com um instinto único e eu preciso dele aqui do meu lado!
Quando percebi já havia dito tudo aquilo, as palavras só explodiram. Todos me olhavam. E Rachel parecia que podia explodir também a qualquer momento. Mas numa rapidez inimaginável, ela engoliu sua expressão enfurecida e me abriu um sorriso leve e sombrio. Como se esquecesse que o filho estava em perigo.
— Eu... só queria proteger o Danny...
— E o Charlie. Queremos o melhor pro Charlie. E o Danny faz parte disso.
Tudo sobre aquela discursão era ridículo. Eu não tinha que convencer Rachel de que Danny precisava saber, não era algo como oi Danny, sei que isso é mega chato, mas preciso te contar que sua série preferida será cancelada, era mais do que “precisamos dele”, era um direito dele. Um direito de pai, mas afinal, de quem eu estava falando? Da mulher que acidentalmente esqueceu de mencionar por três anos que o filho era dele?! Decidi apenas me abster, como sempre fazia. Seus olhos me acompanharam até a porta. Assenti para Lou, que me seguiu.
— Steve, sou pai. Sei bem como se sente. Vai ficar tudo bem, cara.
Enxugo a única lágrima que me escapou. E sigo em frente.
— Steve. — Rachel me chama e diz, impassível. — Vou com você.
...
O Camaro está na garagem. Em seu preto resplandecente de sempre, como se tudo estivesse bem. Assim como toda a casa, tudo aparentemente normal. E sei que Danny se sente da mesma forma. Manso. Como apenas mais um dia.
Bato na porta com os nós nos dedos já pálidos. Como posso fazer isso?
— Oi! — Ele abre a porta com um sorriso terno no rosto. Está sereno e lindo. E eu sou o monstro que vai arrancar cada ruguinha do sorriso dele. — Me deixe adivinhar, veio terminar o filme no meu sofá e esqueceu o celular? Trouxe camarões ou... ah fala sério, tá cheio de comida escondida no carro, certo?
É quando ele olha pro carro. E sei que vê Rachel, porque sua expressão se enrijece na mesma hora. Sabe que algo ruim aconteceu. Ele se volta pra mim. E lá estão os olhos desesperados, dedos trêmulos e os cantos da boca pro chão.
— É o Charlie. Pegaram a turma dele... durante um acampamento. Levaram eles, toda a turma. Todos estão trabalhando nisso, Danny. Ele vai ficar bem...
Vejo Danny cambalear e se apoiar na esquadria da porta. Agora não sei se fiz a coisa certa em vir aqui e despejar tudo sobre ele assim. A única forma que vi de fazer isso era arrancando como um band-aid, mas agora percebo que talvez eu só tivesse tão desesperado que precisasse desses olhinhos azuis por perto.
— O Charlie? Como... assim? Quem o levou? Entraram em contato?
Seguro Danny pelos ombros.
— Ainda não sabemos. Descobrimos a identidade do motorista, ele é fichado por roubo e lavagem de dinheiro. Contactaram a diretora, vão ligar de novo a qualquer momento. Provavelmente pra combinar um resgate.
Enchi Danny de informações que não ajudavam em nada agora, enquanto ele tentava digerir minhas primeiras palavras. Acho que acreditei que quanto mais termos policias colocasse pra fora, as coisas se tornariam um pouco mais fáceis. Como se fosse apenas mais um caso muito difícil, e não algo pessoal e tétrico.
— Levaram o Charlie... — Danny passa as mãos sobre o rosto. Está pensando em que pesadelo horrível se meteu. Se deve ter caído no sono e isso não está de fato acontecendo. Sei disso porque foi exatamente o que pensei.
— Vamos trazer ele de volta, Danny.
Os olhos azuis que tanto amo, estão frios e vazios. Parecem adesivos florescente , durante a luz do dia. Incapazes de se ascender. Ilegíveis até pra mim. Não existe no mundo sensação pior, tenho vontade de transferir a dor que ele sente para dentro de mim. Mas não posso. Essa dor é dele. Seu rosto pálido se levanta até o carro. Danny junta algumas peças. É claro que juntaria.
— Que acampamento? Ele deveria estar com a Rachel hoje.
Então Danny não sabia sobre o acampamento. Isso explica muita coisa.
Ele caminha até ela. Penso em lhes dar privacidade, pegar as coisas de Danny enquanto eles conversam. São os pais, afinal. E então poderemos voltar para a escola. Mas Rachel está de cabeça baixa, como se Danny fosse uma espécie de agressor. Ela começa a chorar e dizer que não foi sua culpa.
— Que acampamento é esse, Rachel? Por que não me contou?
Ela abre a porta do carro, e sai. Penso que vai abraçar Danny, mas não.
— Porque eu sabia que você ficaria exatamente assim. Eu te disse, Steve.
Percebo que Rachel cavou essa reação com cuidado. Minuciosamente. Não com pás grosseiras, mas com a ponta dos dedos e pincéis macios. Ela queria mesmo fazer com que Danny parecesse o agressor e ela a vítima. E eu colaborei, assim como Danny faz agora tudo o que ela já havia previsto.
— Acha que estou assim por causa de um acampamento? Meu Deus, como você pode não ver? Como só se importa em ficar limpando sua barra? Eu só estou assim porque ele foi levado, foi sequestrado! Sequestrado...
As palavras de Danny o puxam para baixo. Corro em sua direção.
— Hey, eu estou aqui. Sou eu, e te prometo que vou trazer o Charlie de volta pra você. Vai ficar tudo bem. — O abraço. Sinto o cheiro do seu shampoo e acaricio seu cabelo, suas lágrimas molham minha camisa e não me importo com isso, quero continuar assim. Quero trazer toda a paz que Danny puder sentir. E ele sente algum tipo de conforto em minha pele, pois sua respiração se alinha.
— Vamos voltar logo pra escola. — Diz Rachel, num tom seco.
É quando percebo. Ela ainda está lá. De pé. Nos olhando de um jeito... novo.
...
— Ligaram. — Diz Lou, assim que entramos pela sala. — Queriam falar com quem está no comando. Não conseguimos rastrear. Disseram que as crianças estão bem, pedi uma prova, falaram que vão ligar em... dez minutos.
— O que querem? — Pergunta Danny, andando de um lado ao outro.
— Tudo que você pensar. Vinte milhões de dólares, dois carros novos, um monte de pizzas e um avião particular.
— Quando ligaram pra você. — Danny se volta para a diretora. — Mencionaram pra não entrar em contato com a polícia?
— Não. Não tocaram no assunto.
— O que está pensando? — Me aproximo de Danny. Sei que ele tem uma teoria.
— Sequestradores que não criam pânico sobre o envolvimento da polícia?
— Tem razão. Querem a gente aqui, por alguma razão. E duvido que se importem com pizzas, são distrações. Alguma dessas coisas é o objetivo real.
— Algo que querem tanto que vale a segurança de um monte de crianças...
O telefone toca.
— Diz que tem alguma coisa pra mim, Tani.
— E tenho. Turner Diaz foi um dos operários da reforma da casa de John Foster, pai do Mike, colega de classe do Charlie.
— É amigo do Charlie. — Danny completa.
— Tani, preciso que rastreie o celular do John Foster agora.
— Já fiz isso. Ele está no trabalho, mas a esposa está aí no prédio agora mesmo.
Danny começa a andar até a porta na mesma hora.
...
— Sra. Foster. Conhece esse homem?
— Não me é totalmente estranho...
— O nome é Diaz. Turner Diaz. Ele trabalhou na sua casa-
— Um dos operários! Agora me lembro. Ele é bom com crianças. O Mike adorava conversar e perguntar pra que servia cada ferramenta que eles usavam. Esse Sr. Diaz era o único que conversava até o Mike se cansar.
— Sabe se conversavam sobre mais alguma coisa?
— Não exatamente. Mas eu ficava muito ocupada, então permitia que o Sr. Diaz brincasse com o Mike, ele parecia realmente inofensivo e... atencioso. O que o desaparecimento das crianças tem a ver com ele?
— Turner Diaz dirigia o ônibus que levou as crianças. Precisamos saber o motivo. — Diz Danny, de uma única vez.
— Se lembrar de mais alguma coisa, nos ligue imediatamente. Vamos conversar com seu marido também.
Coloco um de nossos cartões nas mãos dela. Ela o encara intrigada.
— Tudo bem, Sra. Foster?
— Vocês são os pais do Charlie, não são?
— Sim. — Danny concorda, sem maiores explicações. O momento é péssimo, mas confesso que sinto uma pontada de orgulho cada vez que pensam que nós dois somos os pais do Charlie. Que eu sou um dos pais dele. Parece um sonho rápido em meio a um monte de pesadelos.
— Ai meu Deus... houve um “dia da profissão” há uns dois meses. Charlie falou sobre vocês dois. Disse que queria ser como vocês quando crescesse. Mike ficou tão empolgado por saber que era amigo do filho de vocês que... contava isso pra todo mundo. Me lembro dele falar sobre isso com o Diaz.
Danny me olha com um turbilhão de palavras estampadas em sua retina.
...
O telefone da escola volta a chamar. O identificador de chamadas avisa ser um número desconhecido. Pego o telefone entre os dedos, meu corpo gela.
— Steve McGarrett. Com quem eu falo?
— Olá. É bom ouvir uma voz nova do outro lado.
Sinto um calafrio percorrer minha nuca. A voz foi alterada para uma frequência vários tons mais graves. Tani está trabalhando para rastreá-los.
— Como devo chamar você? Talvez Turner Diaz?
— Não se preocupe com isso, Comandante. Eu chamo você.
Meu olhar busca Danny, ele percebeu o mesmo que eu. Seus olhos dizem.
— Tudo bem. Você dá as regras. Mas preciso saber se as crianças estão seguras.
— Elas estão.
— Sabe que eu preciso de uma prova.
— Sei sim. — A ligação fica distante. Ouço passos duros e algum farfalhar como cascalhos se esparramando enquanto ele caminha. — Diz oi pro papai.
— Danno? É você?
...
É a voz de Charlie e meu coração se quebra como vidro fino e débil. As sobrancelhas de Danny pesam, as lágrimas escorrem por seus cílios.
— Seu pai está vindo, amor.
— Tio Steve!
— Oi, filho. O Danno te ama, okay? — Danny assume o telefone.
— Eu também te amo, Danno.
— Campeão, quero que fique forte. Nós vamos pegar você e seus amigos. Vai ficar tudo bem!
— Tá bom, tio Ste-
— Que comovente! Agora vamos falar sobre o resgate.
Vejo Danny cerrar os punhos e Lou lhe da tapinhas leves nas costas.
— Onde querem que façamos a entrega?
— Esteja pronto. Em uma hora eu volto com o endereço. Até lá.
...
— Chamou ele de Turner, e ele te chamou de Comandante.
— Sabem quem somos, Danny. Por isso estamos aqui.
— Mas por que levar toda a turma? E não apenas o Charlie?
Danny tem razão. Como sempre. Mesmo com lágrimas pelas bochechas.
— Junior. Novidades?
— Sim. George Fitz foi apunhalado na cabeça. Ele apanhou muito e deixaram ele sangrando no chão. Provavelmente não quiseram desperdiçar uma bala à toa.
— Ele está vivo?
— Por pouco. Estou no hospital, aguardando pra falar com ele se possível.
— Só temos uma hora, Junior.
— Vou fazer o meu melhor.
...
— Me diz que a governadora nos deu um sim?
— Parcial. — Respondo à Danny. — Disse que o avião vai levar umas horas.
— Eu consigo. — Rachel surge na sala.
— Como assim? — Pergunta Danny.
— Posso conseguir o avião. Eu falei com o Stan.
Rachel sorri como se tudo estivesse resolvido. Stan é o super-herói agora.
— Enquanto falava com o Stan, falamos com o Charlie. — Diz Danny.
— O quê? Ele está bem?
— Sim. — Respondo. Danny está nervoso, a ponto de quebrar alguma coisa.
— Não temos nada, Steve.
Detesto ver que ele está começando a se desesperar.
— Nós temos a recompensa. Tudo dará certo. — Diz Rachel, como se pudéssemos realmente colocar uma fita crepe na falha de uma placa tectônica. Não é algo que possamos controlar.
— Não é bem assim que funciona, Rachel. As pessoas mentem. Você deveria saber disso.
— E você, Daniel, deveria agradecer ao Stan por trazer nosso filho de volta!
Não sei se peço calma à Danny ou se eu mesmo perto o controle com ela.
— Você não mudou nada, não é? Continua achando que dinheiro resolve tudo, que tapa qualquer buraco. É o Charlie, Rachel. O Charlie, e não uma dívida de banco, ou a hipoteca de uma casa! É o Charlie que tá em jogo...
Ao invés de explodir, Danny se desmancha em lágrimas. Ouço um soluço agudo de puro desespero e pouco importa o que a Rachel vai pensar.
— Hey, babe, não perca o controle. Preciso de você aqui inteiro. Pra gente buscar o Charlie, tudo bem? — Seguro seu rosto pelas mãos, e enxugo suas lágrimas com meus polegares.
— Como apenas mais um sábado?
Sorrio dolorosamente porque é esse pensamento que acomoda o coração de Danny. Pensar que é apenas mais um sábado em que vou com ele buscar Charlie e saímos para comer pizza ou ver filmes e jogar videogames.
— Como apenas mais um sábado.
...
— George Fitz está tão preocupado com os alunos que isso o manteve vivo. Vai entrar em cirurgia, mas antes de ser anestesiado, consegui falar com ele. Disse que os homens que invadiram sua casa usavam capuz, mas que repetiram o mesmo nome depois de deixarem ele no chão. Rick Lamaki.
Levo as mãos até o rosto.
— O que foi? Steve? Quem é esse cara?
— Um desertor. Ele foi um Seal, até passar por outro lado. É escorregadio, envolvido até o pescoço com tráfico internacional. Ele é um profissional. E foi parar na mira da Interpol. Ele quer o avião. Não tem outra forma de fugir. Por isso estamos aqui, ele sabia que só a Five-0 conseguiria esse tipo de recurso.
— Se ele quer o avião, vamos dar o avião a ele.
...
Finalmente temos um plano. Temos o dinheiro, os carros, o avião do Stan e até as pizzas. Tani e Junior estão a caminho. E Jerry procura incessantemente por qualquer deslize que Rick Lamaki possa ter deixado pelo caminho. Qualquer propriedade em que tenha sido visto, qualquer comparsa que esteja preso, qualquer pedaço de papel que tenha tocado e jogado numa lixeira.
Mas tudo depende do endereço. E precisamos aguardar a ligação. A sala onde estamos é uma sala para professores, o que significa muitas cadeiras e vários cantinhos para conversas simultâneas com um pouco de privacidade.
A Sra. Patterson conversa com a diretora num sofá ao canto. Um policial fica de guarda abaixo da janela com um binóculo de longo alcance, pois sabemos que podemos estar sendo vigiados. Lou está servindo um copo de água para Danny e aproveitando para se aproximar, isso me dá um toque de tranquilidade. Lou passou por situação semelhante e sei que pode ajudar Danny.
Meus olhos repousam sobre Danny, enquanto a cafeteira processa o meu café. Ele apoia os cotovelos nas coxas e seus dedos não conseguem sossegar, então ficam se entrelaçando, se apertando e se soltando o tempo todo. Seu rosto corroído pela tristeza, parece magro e mais velho, torturado por pensamentos ruins que vem sem ser convidados. Volta e meia o vejo, piscando com força e arremessando esses pensamentos para longe. Porque Danny é forte, ele não foge da luta. Me perco pensando em como tenho orgulho dele.
— Sua namorada deve estar sentindo sua falta... — Diz Rachel de forma muito aleatória pra mim. — Digo porque hoje é sábado, afinal.
— Eu não tenho namorada, Rach.
Faço um esforço tremendo para não voltar a olhar mais para Danny.
— Ah sim... ouvi dizer que terminaram. Me desculpa a indiscrição, mas eu falo demais quando estou nervosa. Acho que ouvi dizer que você tem saído com uma ex-namorada, ou algo assim...
— Catherine. É, ela voltou e saímos uma vez. Não foi nada importante.
Devo ser muito idiota para responder a Rachel com tanta sinceridade, mas por algum motivo não quero que ela pense que estou envolvido com alguém. No fundo queria que ela soubesse o quanto Danny pode ser amado, o quanto eu gostaria de fazê-lo feliz, de ter ele dessa forma em minha vida para sempre.
— Claro. Porque você já deve estar de olho em alguém. — Ela diz num tom tão brando, como se fosse realmente uma amiga. É estranho o modo como Rachel consegue te prender na teia dela e fazer parecer que você escolheu isso. — Já me apaixonei também... afinal, como não se apaixonar? Ele é charmoso, bem arrumado e pronto pra te fazer sorrir. Mas veja só no que deu.
Diz Rachel encarando Danny como um produto exposto numa vitrine. Não sei se estou mais chateado por ver que ela não se desapegou totalmente da ideia de ter Danny, ou por ela estar deixando claro que eu não consigo enganá-la.
Assinto. Se tem algo que sei que devo fazer é manter minha boca fechada.
...
Estávamos prontos, mas não confortáveis o suficiente para dizer que estávamos preparados. Nossas armas estavam carregadas, e os coletes bem colocados contra nossos corpos. Nos olhávamos o tempo todo, como se esperando que algum de nós gritasse “tem algo de errado com essa operação”.
Nenhum de nós disse nada.
O telefone tocou.
— Querem parecer imprudentes e amigáveis. Não fazem ameaças, não criam pânico sobre a polícia. Mas estão blefando. São profissionais, desligaram antes de rastrearmos o local, esperaram que sentíssemos falta das crianças antes de entrarem em contato, assim ganharam muito tempo. — Disse Danny com o olhar alerta. Ele estava à beira de gritar que era sobre seu filho, sobre o nosso Charlie e nenhum fio de cabelo poderia ficar fora do lugar.
O jato era um avião cargueiro. Não é algo que o Stan tenha na garagem de sua mansão, mas algo que se consegue quando se tem muitos dígitos no extrato bancário. Seu gesto era bem-aventurado, e sabia que assim como eu, Danny se sentia grato. Por outro lado, sabia que Rachel não deixaria nada disso sair barato, e não podia deixar de pensar em como alguma parcela do Danny deveria se sentir mal com essa situação. Num momento você é o pai de um bebê, depois deixa de ser porque outro cara se mostra mais capaz financeiramente de cumprir aquele papel, então três anos depois você é repescado porque precisam da única coisa que o dinheiro não pode comprar: seu DNA. E anos mais tarde, Stan recuperaria o título de salvador do Charlie.
Mas o momento era excepcional e cruel, Danny não teria tempo tão cedo para administrar um sentimento de impotência, precisávamos do Charlie bem, e qualquer coisa poderia entrar em negociação pelo bem de sua segurança.
As caixas de pizza foram empoleiradas em bancos no centro do avião, e presas pelos cintos de segurança, e os carros foram bem atados ao fundo. Um piloto que costumava prestar serviços para a polícia foi bem instruído sobre levar o avião ao ponto X, depois caminhar até um segundo ponto de encontro onde outro policial o apanharia e o levaria de volta em segurança.
Agora era só esperar. E nesse momento esperar se tornara mortificante, a própria respiração de Danny saia como um suplício, um pedido de socorro.
— Eu sei que é uma pergunta estúpida, mas como você está?
— Sabe quando alguém te diz que algo vai acontecer possivelmente. E quando falam isso você já sabe a resposta, só não te contaram ela ainda?
— Sei.
— Eu sei que o Charlie vai ser salvo, possivelmente. Mas não suporto a ideia de que... não sei o que isso realmente significa. Só consigo lidar com uma resposta, Steve...
— E essa é a única resposta que você vai precisar lidar. Eu te prometo.
— Eu espero que sim... eu estou com medo... medo de perder meu filho de novo...
— Hey! — Geralmente quando quero segurar as mãos de Danny apenas ignoro esse impulso, mas agora me pareceu adequado. — Você confia em mim?
— É claro que confio.
— Então saiba que não vou parar, até que o Charlie volte pra casa bem.
Danny apertou minha mão contra a sua. E então um breve sorrisinho passou pelo seu rosto, rápido como uma estrela cadente.
— Sabia que o Charlie vê você como uma espécie de herói?
— O quê? Não!
Só percebi que eu estava sorrindo com cara de bobo quando Danny me encarou com os olhos de quem via filhotes de poodle numa vitrine.
— Eu sei, é loucura. — Ele revirou os olhos, me provocando. — Mas vai entender?!
— Ah, você que começou. Agora conta de onde ele tirou isso?
— Bom, eu posso ter uns 20 ou 30% de culpa...
— Ou 80%?
— É que... a Grace só fechava os olhos e começava a roncar, mas o Charlie? Ele demora a pegar no sono. As histórias de dormir já estavam se repetindo, então eu... comecei a ficar criativo.
— E isso quer dizer que...
— Que comecei a criar minhas próprias histórias. Levemente baseadas em nossos casos, onde o herói era sempre um cara bonitão, irritante e que adora calças cargo.
Aquela foi a coisa mais legal que já ouvi na minha vida.
— Quando posso ouvir uma dessas histórias?
— Bom, talvez quando você tiver velho e senil eu lhe conte alguma.
Danny sorriu e depois se fechou. Era um daqueles pensamentos horríveis visitando sua mente de novo.
— Pode começar a bolar uma nova história pra contar hoje à noite.
...
Senti que não estávamos mais planando como um pássaro, mas indo em direção ao chão. Eu via os olhos azuis desesperados me encarando firme através de um freixo de luz. Fomos sacudidos como gelo na preparação de drinks. E então um baque. O chão, numa pancada leve como um soco na cara. Nos movíamos cada vez mais lentos até tudo parar. Ouvi o rangido de uma porta pesada e passos que ficavam cada vez mais difíceis de escutar.
Quase na hora.
Não demorou muito para que chegassem. Tentei contar quantos eram pelos diferentes sons de passos. Talvez três ou quatro, o que era um bom cálculo. Uma luta equilibrada. Falavam baixo, espreitavam, viram as caixas de pizzas e os carros. Ouvi um click e uma voz:
— Chefe. Tudo limpo. Temos tudo o que precisamos. — Disse uma voz robusta.
— Eu tô morrendo de fome. Não faço nada mais antes de comer. — Disse uma segunda voz, bem mais preguiçosa do que a primeira.
Danny assentiu para mim. Respirei fundo. Levantei três dedos e dei início a contagem regressiva. Quando meu punho se fechou totalmente, Danny apertou o botão e os estalos começaram. Pequenas bombas acompanhadas de gás de fumaça, nada que pudesse matar alguém em dois segundos, mas uma boa distração. Saltamos para fora dos porta-malas. Eu e Danny. Tani e Junior. Nos abaixamos atrás dos carros e ouvimos os primeiros tiros em nossa direção.
Atiramos de volta.
Tiros escapavam de nossas armas como gotas de chuva caíam do céu do lado de fora. Tinha destino certo, mas algumas se perdiam como se o vento levasse.
Ouvi quando a asa esquerda foi atingida. Sabia que aquilo não era bom, mas não tinha tempo para pensar em manutenção do avião, Tani estava sem balas e Junior havia acabado de diminuir nosso problema. Um a menos. Um dos sujeitos, talvez o líder deles, atirou contra Danny, uma, duas, três vezes. Coloquei uma bala na sua testa. Tani pegou mais um, que morreu na hora. Só restava um deles, em algum lugar de um avião cargueiro, escondido ou fugindo. Foi quando o combustível que vazava pela asa deu os primeiros sinais, uma explosão, pequena o suficiente para não matar ninguém, mas grande o suficiente para nos derrubar. O homem de barba por fazer caiu, assim como Danny, um ao lado do outro. Agarrei minha arma, Danny se arrastou até a dele, caída no chão. O homem se levantou e tentou socá-lo. Danny desviou do golpe, e o arrebatou com uma coronhada na cabeça. O pegamos. O amarramos.
— Cadê as crianças?
— Ele não vai devolver elas se vocês não darem o avião.
— Resposta errada. — Disse Danny socando o estômago de quem agora havíamos identificado como Turner Diaz.
— Podem bater o quanto quiser. Eu aguento.
— Que bom que avisou.
Danny retirou a arma do coldre e acertou um tiro na perna do Turner, que gritou de dor.
— Seu... louco! Se me matar nunca mais vai ver o seu filho!
Vi os olhos de Danny ficarem negros. O azul desapareceu.
— Então vamos torcer para que o próximo não atinja a artéria femoral.
Eu deveria segurar Danny. Impedi-lo. Mas ele estava a um passo de arrancar a verdade do homem. Ou matá-lo de vez.
— Hey, você é o policial bonzinho?
Segurei o homem pelo colarinho.
— Não. Ele é o policial bonzinho. — Apontei para Danny.
...
Não demorou tanto até Turner nos confessar que só tinha uma ideia de onde as crianças estavam. Um lugar deserto ao sul, um velho depósito onde Rick Lamaki ia quando estava desesperado e sem rumo.
Ninguém conhecia a localização exata, mas já era um começo.
Tani conectou o tablet ao teclado e começou a digitar o mais rápido que pôde. Compartilhou as informações com Jerry, que nos enviou na mesma hora um mapa. A área vermelha mostrava a extensão de onde Rick poderia estar, mas ainda eram haviam quilômetros e mais quilômetros. Me lembrei da ligação. Cascalhos, ouvi alguém chutar cascalhos enquanto caminhava até as crianças. Quase todos os depósitos eram bem azulejados ou cobertos por terra. Jerry conversava sozinho enquanto digitava, dizia uma sequência difícil de ser contada de nãos. Até que uma hora o que ouvimos foi sim.
— Consegui.... meu Deus, eu consegui!
Pela primeira vez naquele dia Danny me olhava com olhos esperançosos. O que sentíamos não era alívio, mas a sensação de que poderíamos sentir alívio em breve. Depois de tanto seguir as ordens de Rick Lamaki, finalmente estávamos um passo à frente dele, sabíamos onde ele e as crianças estavam.
Foi aí que ouvimos um ruído, seguido por uma voz alerta. Onde estão? Pegaram o meu avião? Mais estática. Se não responderem agora, estarão mortos. E mais um pouco de estática. Os olhos de Danny estavam amedrontados de novo. Aquela voz com certeza vinha do chefe dos homens caídos, Rick Lamaki.
Danny pegou o rádio junto da cintura de um dos corpos estendidos pelo avião. Com olhar decidido, estendeu o rádio até a boca do único dos homens que havia sobrevivido. Diaz. Como incentivo colocou a arma na cabeça dele.
— Rick? — Disse o sujeito com sangue nos lábios.
Perguntei se pegaram o meu avião?
O bandido ponderou sobre qual resposta deveria dar. Danny apertou o cano da arma contra o crânio do homem. Ele tomou sua decisão.
— Mataram todos, Rick. Não confie nel-
Ouvimos a pancada. Danny bateu o cano da arma contra a cabeça do sujeito, e ele caiu desmaiado no mesmo instante.
Parece que meu avião veio com alguns tripulantes.
— Rick — Danny assumiu o rádio. Eu não gostava nada daquela ideia. — Só estamos aqui pra seguir o plano... não faça nada de estúpido, seu avião está aqui.
Embora tentasse parecer calmo, a voz de Lamaki tremulou.
Não me importo se mataram esses idiotas, mas me importo com regras que são quebradas. Alguém vai pagar pelo que fizeram.
Mais barulho de pedregulhos sendo chutados e pisados com força.
Oi crianças. Loirinho, diga tchau pro papai.
DANNO?!
Ouvimos o grito de Charlie.
E então o estalo rígido de um tiro cortando o ar. Seguido pelo grito de pavor de várias crianças vivendo o mesmo pesadelo.
Meu coração esmurrava com força meu peito e meu corpo parecia gelado. Não conseguia pensar na ideia de onde o tiro que ouvimos pelo rádio foi parar.
Agarrei o rádio. Não consigo acreditar que Charlie estava ferido. Minha cabeça fica repetindo que Rick Lamaki precisa fugir e não vai conseguir isso se perder a única vantagem que tem. Por outro lado, Rick tem uma dúzia de crianças a seu favor. Mas ainda não consigo acreditar que Charlie está ferido.
— Se quer seu avião, vou levar pra você. Mas se encostar um dedo nas crianças, vai desejar estar morto.
...
Os estragos no avião foram piores do que pensei. Pouco combustível era só o problema mais evidente, a cabine de comando havia sido cenário de um tiroteio e alguns dos visores agora não passava de vidro quebrado e ponteiros parados.
Mas o avião ainda era nossa única vantagem, por isso ajeitamos superficialmente a asa, o que não surtiu efeito quase nenhum. Junior me ajudou a tirá-lo do chão, sempre fazendo e refazendo cálculos sobre quanto combustível tínhamos e quanto tempo teríamos até ter de desistir e fazer um pouso forçado. Mas eu não podia desistir. Acho que nem Tani tinha mais assunto para puxar enquanto tentava em vão se comunicar com Danny. Desde o tiro, eu não tinha ouvido o som de sua voz.
Tinha que dar tudo certo. Ou Charlie não era o único que não voltaria para casa.
Levantamos voo e fizemos o caminho mais curto até o depósito. Quando vi aquele retângulo amarelo envelhecido achei que estava sonhando. O ônibus. Danny foi o primeiro a descer, Tani e Junior deram cobertura, corri logo atrás quando percebi que ele não conseguiu que eu abandonasse a cabine de comando.
— Charlie? Charlie!
Danny abriu a porta do ônibus e ouvi o farfalhar de várias crianças falando ao mesmo tempo. Você é o pai do Charlie? Estamos salvos? O Charlie não está aqui.
Não havia sinal de Rick Lamaki também.
— Tani, Junior! Temos um professor ferido aqui! — Gritou Danny.
Os dois foram imediatamente até o ônibus, e Danny saltou para fora.
— Contei todas as crianças menos o Charlie. O Rick pegou ele, Steve.
— O depósito, Danny.
Tomei a frente e Danny me deu cobertura. Minhas pernas não queriam dar nem mais um passo, mas eu repetia dentro da minha cabeça que se não fosse o mais rápido possível, Danny passaria por mim e iria sozinho. Era melhor eu colocar meus olhos e pés do lado de dentro desse depósito antes de Danny.
Elevamos a porta do depósito que cedeu com facilidade. Dei um passo para dentro, minha visão levou alguns segundos pra se acostumar com a falta de luz. Com as retinas ardendo, vi o cabelinho loiro há uns dez passos de mim.
— Charlie?! — Danny perguntou com a voz falha.
— Danno!
Uma onda de alívio correu da minha cabeça até meus dedos dos pés. Solto o ar e sinto que ele estava ali preso há horas. Charlie estava vivo e parecia não ter ferimento algum. Provavelmente, o tiro que ouvimos acertou o professor.
Danny se debulhando em lágrimas, dá alguns passos até Charlie, mas uma sombra surgiu atrás dele, interrompendo Danny de se aproximar. Rick Lamaki com um semblante pavorosamente calmo, enquanto segura Charlie contra sua arma.
Rick tinha Charlie. Eu e Danny, um avião. A equação era essa.
A única coisa que eu podia chamar de plano agora era deixar Rick Lamaki decolar e torcer pra que ele caísse em alguma área remota, onde caso sobrevivesse, nós poderíamos prendê-lo. Sabia que o avião não iria muito longe. Mas Rick Lamaki não gostava de planos simples, onde ele acabaria morto ou preso.
— Quer o seu filho de volta? Vamos renegociar.
O único que sabia as reais condições do avião, além de mim, era Junior. Que agora estava dentro de um ônibus escolar com uma dúzia de crianças em polvorosa e um professor de ensino fundamental, que acordou ontem acreditando estar se metendo num acampamento e acabou com um tiro no corpo, porque nós decidimos agir, ao invés de seguir as instruções do resgate.
— Você já tem o avião, Rick. Pegue e vá embora.
Rick Lamaki me olhou e sorriu como se dissesse bem que você queria.
— Vamos acabar logo com isso. O que você quer? — Perguntou Danny.
Senti um calafrio na espinha quando ouvi o tom condescendente na voz de Danny. Naquele momento, olhando as lágrimas de pânico nos olhos de Charlie, ele toparia qualquer coisa.
— É simples. Eu não sou idiota. Vi vocês chegando nessa lata velha que chamam de avião. Não vou levantar essa coisa sozinho. Se quer seu filho, façamos uma troca. Ele fica a salvo, e você vai comigo. Ser meu co-piloto.
Danny inclinou os lábios para baixo, num biquinho que eu conhecia bem. Ele estava ponderando, levemente impressionado por ser só isso que Rick queria.
— Fechado.
— Não. — Me meti fisicamente entre eles.
— Vocês estão me fazendo perder a paciência. — Resmungou Lamaki.
— Você não vai levar o Danny.
— Steve, não! — Gritou Danny.
— Leve a mim.
— Sei quem você é. O tipo de homem que apontaria uma arma pra mim na primeira oportunidade possível, mesmo estando há mil pés de altura.
— Tecnicamente, eu já fiz isso e pousei o avião em segurança. — Completou Danny. Tentando, inutilmente, me salvar.
— Ele deu sorte. Vai precisar de mais do que isso pra colocar aquele avião no ar e não cair logo em seguida. Não tem escolha, precisa de mim.
Os olhos de Lamaki se ergueram até mim. De um jeito diferente agora. Como se eu fosse um diamante raro que ele precisava pendurar no pescoço.
...
Ergui os braços e caminhei devagar na direção de Rick. Dava pra ver ele afrouxando os dedos contra o peito de Charlie. Não tive tempo pra dar o abraço que esperei o dia inteiro, Rick soltou Charlie e me puxou pelo colarinho, alcançou minha arma e celular e os descartou. Agora a arma estava na minha cabeça, mas tudo bem porque meu coração estava no lugar certo. Vi Charlie correr para Danny, que o aparou como um goleiro agarrando um pênalti, e afagou os cabelos loiros deitados contra seu ombro.
Caminhei com Rick preso em mim como uma sombra e de certa forma, aquela imagem era a melhor que eu poderia guardar enquanto caminhava pra morte. Algo para me lembrar de que valia a pena. Já me entreguei por muito menos. Talvez tenha algo de magnânimo em tudo isso, uma grande prova do meu amor platônico por Danny. Um jeito de dizer ao Charlie como ele tinha mais um pai.
Olhei pra trás e além da nuca de Charlie, deitado nos ombros do pai, vi os olhos de Danny em mim. Eram olhos de quem não havia desistido, olhos esgazeados e interrogativos, me cobrando uma solução, me implorando e esperando por uma piscadela suspeita de um olho só, ou um micro gesto em uma das mãos. Nada. Eu não tinha um plano, um blefe, nenhuma carta na manga. Devolvi para Danny meu olhar devidamente apaixonado, que dizia “vai ficar tudo bem" e deixava claro, pelo menos pra mim, um “eu te amo".
Não sei o que Danny conseguiu ler, mas ele derramou lágrimas por mim. Ouvi Tani e Junior me gritarem quando passamos perto do ônibus, mas Danny foi até eles e com certeza os explicou que estava tudo bem.
A situação do avião era crítica, como tentar fazer uma ligação com 4% de carga, ciente de que será interrompido antes de dizer tudo o quer precisa. Meio desnorteado pela falta de informação, graças às falhas do painel, e pela falta de visibilidade que a neblina da chuva me concedia, fiz de tudo para decolar. A única ajuda que Rick me deu foi o belo incentivo da arma engatilhada na minha cabeça, com certeza uma ideia que as líderes de torcida não tiveram, ou já teriam aposentado seus fofos pompons.
Fazer uma massa densa de algumas toneladas flutuar, parece mais quadro de um show de mágica. Partindo desse ponto, minhas mãos não passavam de uma varinha mágica de papelão encapada com papel laminado, o truque de verdade dependia de um monte de cálculos, angulações, e os grandes mágicos; as asas e o motor. O nome do espetáculo: propulsão.
O grande problema é que, meus grandes mágicos estavam bêbados e sonolentos, e eu só podia contar mesmo com minha varinha fajuta. Fui meticuloso, o que é mais fácil quando não se tem o lembrete constante de que você pode morrer antes mesmo de provocar um acidente, já que tem uma arma preparada pra estourar seus miolos exaustos.
Rick sabia, quase tanto quanto eu, que o avião não iria longe. Mas o que nos separava era a intenção. Ele só queria cuidar de si mesmo, fugir, eu estava lá por razões opostas. E se existe algum tipo de sorte, um empurrão tácito do destino ou algo que poupe os de coração sólido e desesperado, algo me viu. Num gesto claro de piedade, as rodas saltaram do chão e o avião decolou.
Senti alívio por uma fração de segundos. Rick ficou tão satisfeito que começou a ficar distraído, com cinco minutos de voo, ele já estava displicente. Precisava de um destino próximo e seguro o suficiente, começou a estudar os mapas em busca de um plano B. A arma escorregou da minha cabeça, e eu não tinha nada mais a perder, só a minha vida, é claro, mas por pouco tempo. Ativei o piloto automático e num giro golpeei o punho que segurava a pistola, ela voou e caiu abaixo dos controles da cabine, Rick se enfureceu, acho que mais com ele por me dar essa oportunidade do que comigo por ser tão previsível. Ele tentou me acertar, mas eu já havia desviado e socado seu rosto. Ele mal caiu no chão, quando num pulo de gato já estava de pé me acertando no olho, bati a cabeça em alguma coisa rígida, talvez só mais um trecho do casco do avião, e vi Rick correr até mim como um gorila pronto pra me esmagar. De novo, Deuses anônimos me davam uma mãozinha, o avião inclinou alguns graus em diagonal, e a breve turbulência levou a arma direto para mim. A agarrei e do chão dei três tiros em Rick Lamaki, que já caiu no piso sem vida.
Fechei os olhos por um segundo e respirei fundo. Não ia morrer com uma bala na cabeça, mas não significava que eu não ia morrer muito em breve. Me levantei, sentei na poltrona, assumi o manche e encarei o painel a minha frente. Parece que eu estava numa sala fechada com uma centena de fumantes. Tudo era branco e cinza, nuvens espessas decididas a tempestuar e uma sólida neblina que cobria tudo, do outro lado do vidro da cabine até o que deveria ser o horizonte.
Como um apito insistente, ouvi o alarme. Era a gasolina que me restava secando no motor. Eu ia morrer antes mesmo de tentar alguma coisa. Precisava pousar, mas como poderia jogar o avião sem saber se estava acima do cume de árvores, do oceano ou de pessoas inocentes? Quantas vidas eu arriscaria apenas pela minha? Mas se não tentasse, ia acabar caindo do mesmo jeito.
Procurei por meu celular, mas no meio do caminho me lembrei que Rick o havia descartado ainda dentro do depósito. Recorri ao rádio do avião, apertei os botões e chamei. Aqui é o Comandante Steve McGarrett, alguém pode me ouvir? Nada. Era inútil insistir quando a metade das funções do painel estavam pifadas. Nem a luz do rádio havia dado sinal de vida, estava quebrado.
Sem qualquer forma de estabelecer comunicação com o mundo do lado de fora, ou de enxerga-lo, desviei de olhos fechados da rota inicial e entreguei o comando ao piloto automático, que sabia que também deixaria de funcionar em breve. Me sentei na cabine de comando e apertei o cinto de segurança, tentei pensar apenas em Danny abraçando Charlie, mas um monte de lembranças veio até mim e embaçou minha visão.
Me lembrei de quando conheci Danny e de cada vez em que ele perguntou o que havia de errado comigo. Olhando para trás, percebi que eu havia feito muita coisa doida dessas que as pessoas querem fazer antes de morrer, como pular de paraquedas ou dirigir acelerado como se não houvesse amanhã. Percebi a poesia que havia em morrer perdido no céu numa máquina potente, mas desgastada e totalmente sem controle. Eu fui aquele avião minha vida toda. Mas pensar em Danny me fazia desejar um conserto, ficar vivo, poder dizer pra Danny que de todas as besteiras que já fiz, não ter contado à ele como eu o amava de forma urgente e exasperada, era a maior de todas.
Fui em segundos da primeira lágrima a um choro compulsivo de saudade e arrependimento por tudo que não pude viver, por cada gota de amor que deixei escorrer entre os meus dedos. Queria ter Danny ao menos uma vez.
“C-câmbio.”
Ouvi a voz dele, a única que queria ouvir, de longe e arrastada.
— Danny?!! Não é possível...
Olhei pro rádio do avião ainda inativo, me lembrei de Rick Lamaki e vasculhei seus bolsos, ele também não havia levado celular, não queria ser rastreado. Mas de onde vinha aquela voz tão vívida para ser da minha cabeça?
“Câmbio. Noah Calhoun, você pode me ouvir?”
Meu coração saltou. Era Danny. O meu Danny. Vasculhei os bolsos médios da calça cargo e lá estava, nosso mini walkie-talkier.
“Câmbio. Noah Calhoun na escuta! É você mesmo?”
“Câmbio. Allie Hamilton em carne, osso e cabelos loiros. Vim levar você pra casa, soldado. A guerra acabou.”
Sorri, mas uma nova turbulência me lembrou que eu não sorriria por muito tempo.
“Danny... preciso que me ouça com atenção. Consegue ouvir?”
“Não quero te dar esse gostinho, mas essa coisa funciona mesmo.”
“Danny... o piloto automático vai parar a qualquer momento, acho que é hora da gente dizer adeus.”
“Escuta, Steve. Eu sinto que tem coisas por aqui que ficaram... mal resolvidas, sabe? Carros inteiros pra você destruir, bandidos para serem e pendurados de prédios, quem mais vai fazer esse trabalho?”
“Acho que vai ver o final do filme sem mim.”
“Tecnicamente eu terminei. Mas acho que podemos fazer o nosso final.”
“Uau... quer dizer que a Allie não fica com o Noah no final?”
“Quer dizer que não vou esperar mais nem um segundo pra te trazer pro chão. Okay, conseguimos te rastrear pelo walkie-talkie! Você precisa mudar a direção do avião ou vai bater em algumas árvores, precisa desviar para... a esquerda. Esquerda, Steve. Agora!”
Ouvi quando a asa direita do avião se debateu contra o farfalhar de folhas e galhos. Continuamos planando, então a asa ainda fazia o seu precário papel.
“Preciso pousar, Danny.”
“Eu sei, eu sei... Vou guiar você pro mesmo local onde pousou com Júnior mais cedo, tenta se lembrar de como era. Mas você já está perto. Que barulho é esse?”
“É o avião dizendo que não vai aguentar muito tempo, Danny...”
“Steve? Não desiste agora, consigo te ver. Precisa inclinar um pouco pra direita e então pode começar a se preparar para pousar.”
“Tá bom... Danny, eu preciso te dizer que-”
Tudo ficou escuro. Achei que estava morto, mas o avião é que estava. Apertei o botão do piloto automático um zilhão de vezes, sem resposta.
“STEVE? Você tá descendo muito rápido!”
“Eu não tô pousando, Danny. Tô caindo.”
Senti o vento repuxando meu cabelo, minhas roupas, acho que até a pele do meu rosto. Meu estômago parecia estar subindo pela minha garganta, e o avião começou a se debater contra o que eu achava ser o pico de várias árvores. Senti o impacto com força e então tudo apagou de vez.
...
— Steve? Steve? Por favor... acorda... Steve?
Quando abri os olhos, vi os olhos azuis colados nos meus, enquanto Danny me estapeava no rosto.
— Ai! — Resmunguei.
— Nunca mais faça isso! — Ele gritou com o indicador na minha cara.
Depois se jogou contra meu corpo e me abraçou, só então percebi que eu já não estava no avião, mas sentado no chão com as costas no ônibus escolar.
— Tio Steve!
— Charlie!
O menino pulou em meu ombro e Danny teve que se encaixar sobre ele, porque aparentemente, ainda não estava pronto para me largar. Bom, eu, com certeza, não ia reclamar.
Ouvi a sirene da polícia e abri os olhos para ver as viaturas se aproximarem. De uma delas, Rachel apareceu com seus anéis desalumiados. Vi quando ela encarou Charlie e respirou aliviada, mas também vi aquele segundo de hesitação, ao nos ver todos juntos, seu rosto ficou nebuloso por alguns segundos, e como sempre, ela voltou ao normal.
De alguma forma eu sabia que não tinha acabado ali.
...
Já passava das nove da noite quando Charlie pegou no sono. Eu me apoiava sentado na escrivaninha ao lado da cama de Danny, que deixava o braço servir de travesseiro pro filho repousar depois de tudo o que passou.
— Obrigado por ficar. Já pode ir. — Danny sussurrou pra mim.
— Quero ter certeza de que você vai conseguir dormir.
— Eu com certeza não vou... e não quero estragar sua noite.
Aquela foi uma das cenas mais difíceis de encarar. Danny tentando sorrir, mas seu rosto não conseguia.
— Acho que o Eddie vai entender.
— Rachel me disse. — Disse Danny, como quem tocava num assunto delicado. — Do seu encontro com a Catherine. Não quero que se atrase.
— Do meu... o quê?
— Tudo bem. Eu sabia que era só questão de tempo agora que ela voltou. E o Charlie tá bem aqui... vai se divertir.
— Meu encontro...
Só que eu não tinha encontro nenhum marcado com a Catherine. E estava prestes a dizer isso, mas como fazer Danny terminar um dia tão difícil, descobrindo que a mãe dos seus filhos inventou uma mentira tão baixa? Não queria causar mais nenhum tipo de sofrimento, não podia fazer isso com ele.
— Rachel disse mais uma coisa.
— O que ela disse? — Perguntei preocupado, naquela altura do campeonato o que saia da boca de Rachel havia se tornado imprevisível.
— Acho que ela não planejou dizer, só... saiu sabe?
— O que saiu, Danny?
Rachel seria louca o suficiente de dizer que pensou que eu estava apaixonado por ele? Que eu era gay? Mas e o falso encontro com Catherine?
— Ela disse que... — Danny conferiu se Charlie continuava em sono profundo. — Que por isso ela fez o que fez... por isso ela escolheu o Stan.
Aquilo era inúmeras vezes pior do que contar para Danny que eu sou gay. Tentei não olhar pra Danny com a expressão que dizia “por que se casou com essa mulher? Por que? POR QUE?”.
— Danny... não é como se fosse uma decisão. Ele... é seu e ponto final. Foi um dia difícil, todos perdemos um pouco o controle.
Só que a Rachel havia perdido 200% do seu controle.
— Eu sei, eu sei... o que você ia me dizer quando o avião caiu?
Acordei de um transe profundo. Danny não havia se esquecido daquilo, da mesma forma que não conseguia deixar de se sentir culpado pelo sequestro.
— Que... amo você.
Seu sorriso foi devidamente devolvido pro seu lugar de direito.
— Amo você também. — Disse Danny antes de fechar os olhos e dormir.
...
Voltei pra casa, tomei uma ducha quente e nem por um segundo consegui esquecer de nada do que Danny me disse. De meu encontro fictício com Catherine até “amo você também”. Achei que tinha pego no sono e começado a ter um pesadelo quando ouvi baterem de novo na minha porta.
— Rachel?
— Duas vezes em um só dia. Quais as chances? — Ela foi entrando.
— Não pensou que eu estaria no meu encontro com a Catherine?
— Eu vi as luzes acesas. — Ela engoliu em seco. — Desmarcaram?
— Não chegamos a marcar, Rachel.
— Oh... eu devo ter entendido errado. Me desculpa, Steve? Minha cabeça tá martelando até agora.
— Foi um dia difícil. E longo.
Só queria que ela fosse logo embora. Mas ela só estava preparando o bote.
— E revelador. Eu... não pude deixar de perceber como você e Danny estão próximos.
Me sentei e fiquei imóvel. É assim que uma presa se sente antes do bote?
— Somos parceiros há dez anos, Rach. E melhores amigos, como sabe.
— Eu sei, mas vou direto ao ponto, Steve. Eu vi como você olhava pra ele.
Um lobo reconhece outro lobo. Minha cabeça ficava repetindo isso.
Qual é? Eu estava disposto a esconder aquilo, mas daí a negar? Mentir?
— O que você quer, Rachel?
— Proteger o meu filho. O Charlie é um garoto menor que a maioria, puxou a genética do pai. E ele prefere o videogame do que outra criança. É uma combinação perigosa pro mundo em que vivemos, Steve.
— Sei que o Charlie sofreu bullying na escola e acredite, sei como isso é duro, mas a situação foi resolvida. E o Charlie é forte.
— Forte o suficiente pra ser sequestrado? Pra colocarem uma arma na cabeça dele?
— Eu não disse isso, Rachel.
— Sabemos porque a turma do Charlie foi levada. Ele é só uma criança, não merece ficar pagando pelas escolhas do Danny.
Escolhas do Danny? Pensei. Que escolhas do Danny? Escolher ser um policial agora é o mesmo que colocar o filho a prêmio para os bandidos? Ou não era sobre ser policial que ela estava realmente falando?
— Não, ele não merece.
— Sabia que ia concordar comigo, você é como um pai pra ele. Por isso vim até aqui. Quero que você e Danny sejam felizes, sei que já passaram por muita coisa. Mas não quero desenhar mais um alvo nas costas do Charlie.
Chateado e ultrajado de tantas formas, tentei prosseguir com aquela conversa como se eu não tivesse um vazio tão grande no meu estômago que provavelmente levava ao centro da Terra.
— Só pra ficar claro, Rachel. Entendo o que você pensou sobre mim e Danny. Mas ele tem uma namorada, Melissa.
— Qual é, Steve? Aquela garotinha não significa nada pra ele.
Não sabia o que dizer. Talvez ela estivesse um pouco certa, mas de toda forma, tudo estava errado e aquilo não era da minha conta ou de Rachel.
— O que você quer realmente?
— Deixar o caminho livre. Não é sobre mim. Estou falando do Charlie. Acho que foi um erro afastar ele da irmã dessa forma, ela sempre foi uma espécie de protetora na vida dele. Posso conseguir uma transferência para uma boa escola em Jersey. Charlie vai se adaptar rápido e vocês... não precisarão se preocupar em gerar problemas pra ele.
Gerar problemas pra ele? Aquilo estava mesmo acontecendo?
— Você quer levar o Charlie para Nova Jersey? É isso que está dizendo?
— A versão curta, sim. Mas é para o bem de todos.
Só que eu sabia que não era.
— Rachel, não acha que isso vai se configurar como uma fuga na cabeça dele? Ele passou por um trauma com sua turma, vai ajudar superar isso em grupo ao lado dos colegas, e não fugir como se ele tivesse do que se envergonhar.
— Como você disse, Steve. Eu tomo as decisões pelos meus filhos. Não acho que seja saudável pro Charlie ser exposto a... olha só, eu não quero parecer antiquada, só estou dizendo que o Charlie precisa de... normalidade.
Quão idiota eu seria se levasse mais um segundo pra entender que estava sendo chantageado?!
— Não vai ser necessário.
— É claro que vai. Já disse, eu apoio vocês. Merecem ser felizes.
Revirei os olhos e tentei conter toda a raiva que borbulhava dentro de mim. Mordi os lábios a ponto de sentir o gosto amargo de sangue e me decidi. Eu não estava pronto para perder Danny, não totalmente.
— Como você sabe... eu estou saindo com a... Catherine e... as coisas estão ficando sérias. Nos conhecemos... bem. Então você não tem com que se preocupar. Você só... teve um dia estressante, e confundiu as coisas.
— Acha que ela vai se mudar pra cá? Essa casa precisa mesmo de um toque feminino.
— Se mudar pra cá? Bom... é um pouco cedo e ainda não falamos nisso...
— Acho que ela deveria se mudar. Talvez oficializar um pouco as coisas...
— Se isso acontecer... o Charlie pode ficar? O Danny não vai saber nada sobre essa conversa?
— É claro que não. Pra que preocupá-lo com bobagens da minha cabeça, afinal?!
— Entendi.
— Desculpa te incomodar a essa hora e ser tão pertinente, mas é o meu filho, não consigo não me preocupar.
— Eu entendo.
— Ah, só mais uma coisa. Alianças. Mulheres sempre preferem as mais caras. Pedras que chamam a atenção e ela com certeza te dirá sim.
— Você... está falando bem sério sobre oficializar as coisas, não é?
— Com o Charlie aqui, ele pode até levar as alianças ao altar.
...
Levou menos de um mês. Passei todos os fins de semana nesse intervalo com Catherine e algumas noites de quarta ou quinta também. Parecia mesmo que eu estava tentando recuperar o tempo perdido, reatando nossos laços com pressa, tudo para justificar o dia quando eu a pedisse em casamento.
Marquei um jantar sob a desculpa de recepcionar Kono, Adam, Chin, Abby e Sarah. Disse para Catherine que seria uma noite importante e decisiva, queria que ela já ficasse desconfiada o suficiente para não me responder “não”, embora para minha parte reprimida, aquela fosse a melhor resposta.
Rachel apareceu, sem ser convidada. Acho que ela queria ter certeza de que eu não havia desistido do plano. Não tinha amarelado. E eu não tinha. Ela me deu um presente que nunca abri, pelo peso e formato tenho certeza de que é algum tipo de eletrodoméstico, o primeiro presente de casamento, ela disse.
Quando fiz o pedido, todos ficaram calados e sérios, como se eu tivesse anunciado que alguém muito jovem e saudável tivesse acabado de morrer. Não pareciam felizes, mas surpresos e extremamente confusos. Nunca vou esquecer a expressão no rosto de Danny, sua coluna se dobrando ao meio, a mão na barriga, como se eu tivesse lhe dado um belo soco no estômago. Catherine disse sim instantaneamente, mas não menos surpresa, então convidei Danny para ser meu padrinho, queria ele por perto, talvez um lembrete bem egoísta do porquê eu estava juntando trapos com Catherine.
Ele não conseguiu responder. Ficou subitamente cansado e foi embora. Mal esqueceu Melissa fechar a porta do carro quando arrancou. Fiquei sabendo através de Chin que houve um pequeno acidente no caminho, parece que o Camaro derrapou em algum sinal e bateu sem força num tronco de árvore. Danny não achou importante me avisar que chegou em casa num Uber.
Mas não consigo dormir sem ouvir a voz dele, sem saber se está tudo o mais próximo de bem, depois da bomba do jantar e depois de bater o carro num acidente juvenil.
Ele atende no terceiro toque. Estava acordado, mas se faz de difícil.
— Como está o nosso carro?
Pergunto, porque a conversa tinha de começar em algum lugar.
— Meu carro, Steve. E aliás, quem te contou?
— Chin. Pelo menos ele se deu ao trabalho de me contar.
— Ah, não é como se você me contasse tudo também.
Fiquei calado. Eu meio que merecia aquilo, pelo menos na cabeça dele.
— E como está? — Tossi, me recompondo. — O carro.
— Passou por muita coisa. Mas vai sobreviver.
Não tinha mais tanta certeza se falávamos sobre um automóvel.
— Acho bom mesmo, porque ainda vou precisar muito dele.
— Wow... — Ele diz, sarcástico. — Pensei que de agora em diante só dirigisse um conversível azul!
Essa doeu.
— Não, não... eu... amo aquele Camaro. Não trocaria ele por nenhum outro... carro.
Uma pausa dramática me manteve confuso sobre o que Danny estava pensando.
— Sabe, Steve... você não tem uma garagem tão grande assim. Boa noite.
— Boa noite, Danny... espero mesmo que o carro fique bom logo.
— Ah, deixando o carro de lado... parabéns pelo noivado.
...
Fico com o som da linha desligada e a vontade de poder ligar de novo. Acho que de agora em diante, tenho que me acostumar a ter Danny assim. Vou dormir decidido a postergar e não pensar em casamentos, mal sabendo que vou acordar amanhã com o caso de uma jovem assassinada com véu e grinalda.

***

mas o gosto da sua boca ...Where stories live. Discover now