Ratatouille e Dupla

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Acordei as 09:00 da manhã de domingo já sabendo que estaria sozinha dentro de casa. Conseguia ouvir algum bipe do meu celular, mas eu não sabia onde ele estava, então eu o deixei tocar e fingir que estava dormindo, para poder realmente dormir, só que o barulho infernal continuou mesmo assim e eu tive que me levantar para ir procurar esse alarme-tira-sono.
Encontrei o meu celular em cima da mesa de centro na sala, o peguei e atendi na hora.
- Alô? Iabella?
- Mãe? O que aconteceu?
- Ah... Nada. Eu só queria saber como você estava. Sua tia me disse que você andou triste...
É tão engraçado a minha mãe ligar nunca pra mim, em horas que eu mais preciso dela e as vezes ela me liga do nada. Só por que a minha tia deve ter dado um de seus sermões para a minha mãe ontem a noite.
Argh.
- Estou bem mãe.
- Estava dormindo? - porque ela tenta puxar assunto?
- Estava... Mas eu deveria ter acordado mesmo assim... Como está o... Meu pai?
É tão estranho falar "meu pai" considerando que eu mal falo com ele, mal toco no seu nome, as vezes, quando eu era um pouco mais nova, o chamava pelo nome mesmo.
Minha mãe passa um bom tempo em
silêncio, quando eu acho que a ligação deve ter caído, ela retorna a falar:
- Seu pai e eu nós separamos Iabella. - ela diz, com uma tristeza na voz.
Mas como assim? Eu jurava que os dois se gostavam a beça e eles pareciam tão bem um com outro, algo bastante grave deve ter rolado entre os dois para ter separação.
- Eu sinto muito Paula.
- Você nem parece surpresa. - ela diz com um certo desdém, uma certa amargura.
O que ela desejava que eu falasse? Que eu sinto muitíssimo? Que eu vou chorar por conta disso? Não. Eu não vou fazer isso, porque os meus pais não fazem tanto parte da minha vida como eu gostaria.
- Eu estou.
- Você é uma péssima mentirosa Iabella.
Eu não mereço ficar aturando o mau humor dela uma hora dessas da manhã, ainda mais agora que eu estou me recuperando da minha crise de choro.
- Olha aqui Paula, eu preciso... Varrer a casa, ela está cheia de poeira, eu ainda tenho que fazer o meu café da manhã.
- Você esta sozinha? - como se ela se importasse.
- Estou. Preciso ir.
- Não sei porque é tão fria comigo, eu sou a sua mãe.
Suspiro. Não me venha se fazer de vítima, pelo amor de Deus.
- Eu não preciso ter mais uma conversa sobre isso, preciso? É, mãe, eu agradeço a tudo que você e o meu pai fizeram por mim esses anos todos, vocês pagaram escolas e também me deram o essencial, eu agradeço, mas vamos combinar que a nossa relação nunca foi uma das melhores, não é mesmo? Eu não posso simplesmente amar vocês dois de uma hora para outra.
- É só porque eu deixava você na casa dos seus avós e viajava com o seu pai? Era só por causa disso? Meu Deus Iabella, como você é infantil...
- Não é só por causa disso mãe, existem tantas outras coisas, eu acho que você deveria pensar um pouco sobre elas, sobre as coisas que você fez como mãe, porque vamos entrar em um consenso: você nunca foi uma boa mãe, agora de me der licença, eu preciso desligar. Bom dia.
Assim que desligo o meu celular, a porta da frente é aberta.
- Tia? Pensava que você estava trabalhando.
- E estava. - ela fala, com varias sacolas na mão.
A ajudo a carregar até a cozinha, pelo menos umas quatro sacolas enormes e cheias.
O que deu nela?
Parece que comprou todo o estoque de comida da cidade.
- Pra que tanta comida...
- Para comer...? - ela fala o obvio. - na verdade, eu vou fazer um jantar na terça para alguns amigos. O melhor de todos. - ela diz - queria que você estivesse aqui Iabella, mas você não pode vir e também são adultos, você não entenderia o que estamos falando.
A olho como se fosse uma retardada, ok, vamos fingir que ela não disse isso porque... Até parece que eu não estou "por dentro" das coisas que essas pessoas falam. Vamos apenas fingir que eu não sei.
- Sem problemas tia.
- Queria ficar mais um tempo com você. - ela sorri abrindo as sacolas - vou preparar um almoço maravilhoso para a minha sobrinha.
- A senhora está tentando me engordar? - brinco.
- Com certeza. Música?
Ah sim, música. Sei, vamos para a música, me pergunto onde a minha tia pôs a sua playlist ela deve ter apagado sem querer ou se cansou das musicas.
- Música.
Ligo o meu celular ao cabo USB do som e coloco para repetir o CD todo de U2 Songs Of Innocence.
- Espero que goste.
Tia Enie me chama para ajudá-la na cozinha, ela me mostra as diferentes tipos de facas, são tantas cores, nunca pensei que a sua cozinha seria de uma forma divertida, na parede o centro, ao lado da geladeira, há um cartaz enormes com uma frase em francês, uma mulher está na capa e ela leva a colher a boca.
Minha tia retira vários temperos diversos de cima da prateleira, são tantos que eu fico até perdida. Ela me mostra o alho frito, que se parece com pequenas batatas de Sensações.
O ruim de tudo, é que eu preciso fica perguntando o tempo todo o que é isso o que é aquilo, já que eu não sei cozinhar absolutamente nada, mas graças a minha tia, eu poderei aprender receitas deliciosas.
Ela me manda fazer coisas bobas, mas que para mim são divertidas.
- Corte os três tomates em rodelas.
- Quero que corte a berinjela em rodelas.
É tão ágil, ela corta tudo, prepara tudo de uma maneira tão simples, tão rápida.
- O que nós estamos fazendo tia?
- Já ouviu falar em Ratatouille?
- Ah sim. É uma comida de origem francesa, não?
- Sim sim...
- Mas eu nunca comi.
- Pois prepare-se porque você vai provar pela primeira vez hoje! - fala animada. - a receita é simples e também é uma delícia, os ingredientes são: 6 cebolas, 6 tomates, 6 abobrinhas italiana, 1 berinjela, 1 pimentão verde e 1 vermelho, 2 dentes de algo, sal e pimenta a gosto, uma folha de louro, manjericão e azeite de oliva.
Sinceramente? Eu não entendi uma palavra que ela disse, mas mesmo assim, eu assento como se entendesse tudo.
Depois de mais ou menos uma hora, a comida estava pronta e cheirando muito bem.
Aproveitei enquanto a comida esfriava um pouco e fui tomar banho, lavei o cabelo e vestir um pijama enorme que eu ganhei da Rebeca e nunca tinha usado. Ele é de vaca e muito largo, porém é muito confortável. Não sei porque demorei tanto tempo para usá-lo se eu soubesse que era tão bom e tão fofo de usar esse pijama, eu já teria usada a muito tempo.
- Mas que roupa linda Iabella! - tia Enie me surpreende, ela pega na minha roupa e sorri. - é muito fofo.
- Você acha? Minha melhor amiga me deu. Ela tem um igual.
Rebeca sempre quis que eu fosse na sua casa para ter uma noite do pijama, ela comprou os mesmos pijamas só para isso, me lembro como se fosse hoje ela dizendo animadamente site fazermos a festa.
- Podemos usar os mesmos pijamas! Isso não seria demais? Iabella... Você não está entendendo! Muitas pessoas fazem isso, passaremos a noite toda comendo e conversando, usando a mesma roupa. Quero que você prometa Iabella.
- Eu prometo Rebeca. - revirei os olhos quando ela saiu de perto de mim.
Não sabia que isso seria tão importante, também não sabia que sentiria tanto a sua falta. Por onde anda a minha amiga Rebeca? Ela ainda continua namorando com aquele tosco? E será que está cuidando bem do meu gato? Espero que sim, pois mesmo eu não gostando muito dele, ele ainda é um ser vivo.
Tenho uma ideia boba, porém divertida. Pego o meu celular e bafo uma foto com o pijama, mando para a Rebeca. Talvez ela goste de ver a sua melhor amiga usando a mesma roupa.
Tia Enie preparou a mesa e ela está muito linda e bastante decorada. A jarra é uma grande maçã de plástico, os copos e talheres são coloridos de um verde néon.
Ela não só preparou o Ratatouille, como também fez batatas fritas e um molho especial para colocar em cima da nossa comida.
Ela é uma verdadeira chef.
- Tia, isso daqui esta muito maneiro. Tá foda.
- Aw. Você achou? Obrigada, estou entrando nesse rumo de decoração agora. Rafael sabe tudo sobre decorar.
- Eu amo decorações, se quiser, eu posso ajudar. - proponho me sentando a mesa - você mandou super bem.
Tia Enie fica um pouco envergonhada e ruboriza, ela coça as orelhas vermelhas e se senta ao meu lado na mesa.
Que é grande demais para duas pessoas. A mesa possui lugar para ocupar oito pessoas, somos só nós duas.
Para a nossa alegria - ou não - começa a chover forte.
Talvez seja a época de chuva na cidade, para falar a verdade eu nunca sei qual é a época de verão, inverno, primavera e outono, porque... Aqui no Brasil não temos isso, não é mesmo?!
- O que achou? - pergunta entusiasmada.
- Eu não sou fã de vegetais, mas isso daqui... É muito bom!
- Sabia que ia gostar querida.
- Nossa... Eu não consigo parar de comer - encho a minha boca com uma quantidade absurda de comida, é tão bom. O gosto é uma delícia, a batata assada bem lisa, descendo na minha boca.
Paro de por a comida na boca quando sinto meus olhos lacrimejarem e a minha mente pedir chega.
Agora sim eu sinto o gosto da pimenta, da próxima vez, eu não devo comer tão apressadamente.
Tia Enie fica um pouco chateada com os meus costumes á mesa, ela nunca me viu comer de uma forma tão feroz. Pena que não sabe que eu como assim sempre, quer dizer, desde que cheguei na Instituição. Eu posso me servir da quantidade que der, mas geralmente eu como pouco com as minhas amigas.
Shaila e Elena não medem esforços para encher os seus pratos, que ficam cada dia maior.
- Eles não dão comida a vocês? - pergunta a tia, com uma certa cara feia.
- Dão. A comida é bem gostosa, sabe... Mas - não resisto a pressão e acabo arrotando á mesa, o que faz a minha tia soltar um grito de susto. - eu estou comendo bastante esses dias.
- Pelo amor de Deus Iabella. Isso foi um arroto ou foi um grito? Nunca vi você de uma forma tão mau educada...
- Ah, deixa de besteira tia! - raspo o prato. Está sendo meio que divertido tirar a minha tia do serio, avise-me quando a barra ficar suja.
- Iabella... Eu sei que não somos pessoas ricas, mas todos nós temos que ter bons modos. - diz, rispidamente, ela tenta relaxar, mas até um cego sabe que esta tensa.
- Eu tenho bons modos! Mas eu estou aqui, em casa! Você não disse que essa era também a minha casa?
- E é, mas isso não significa que você deva fazer isso Iabella. É tão feio uma moça como você... - minha tia pega o guardanapo de pano e limpa a minha boca.
Franzo o cenho. Eu posso fazer isso tia, não tenho mais cinco anos, obrigada.
Não sabia que a minha tia era uma pessoa tão rigorosa em forma de educação. Quer dizer... É estranho a gente arrotar assim na frente das pessoas, mas quando a gente está em casa... Eu não vejo motivos de não fazer.
- Acho que eu vou ter que ensinar boas maneiras a minha sobrinha. Não sabia que ela era uma porquinha! - sorri, apertado o meu nariz e fazendo o som de porco - ou será uma vaquinha? - ela olha para o meu pijama de vaca e sorrir.
Não resisto a tentação, ela pode ser estranha, mas em um momento como esses, é bom a gente liberar o astral então eu caio na gargalhada.
Quando acabamos de almoçar, eu fui lavar a louca como sempre, tia Enie foi limpar outras coisas, como a mesa e o chão.
Ela me ajudou a secar os pratos e panelas e guardamos tudo no devido lugar.
Tia Enie deve ser a pessoa mais organizada do mundo, talvez eu tenha puxado isso dela, já que dos meus pais não foram pois eles só sabem bagunçar e não adianta bagunçar a nossa casa, tem que ser o meu quarto também.
É estranho eu não sentir falta da minha casa. Para falar a verdade, eu nunca senti que aquele era o meu lar. Que aquele era o meu cantinho. Achava que estava em um lugar estranho, onde nunca pisará antes, onde eu só fosse uma visita qualquer.
Porém aqui, na casa da minha tia, eu sinto um pouco de lar. Fazia anos que eu não pisava nesse chão e não recordo de nada da ultima vez em que vim aqui.
Tia Enie se senta no sofá e pede para eu me sentar ao seu lado, ela começa a massajar os meus cabelos, apoio a minha cabeça em suas pernas.
- Vou mudar alguns móveis dessa casa. - fala.
- Pensava que gostaria de ter uma lembrança dos seus pais. - falo, sonolenta.
- Eu tenho varias recordações deles, eu tenho fotos e também tenho alguns objetos de decorar. Eu gosto onde eu moro, mas eu gostaria de mudar para o meu jeito. Sabe, eu esperei anos e anos depois da morte dos meus pais para pensar em reformar a casa e agora que eu criei coragem, vou fazer logo.
- Estarei aqui para ajudar.
- Mas é claro que sim! Você acha que eu iria me virar sozinha? - minha tia alisa os meus cabelos com os dedos, a sensação é tão boa, que a qualquer momento eu vou desmaiar de sono.
- Ninguém, ou quase ninguém acredita que aquele saco de drogas estava na minha bolsa por o acaso. Você acredita em mim?
Não sei o que deu em mim para falar nesse assunto, mas é por causa dele que estou aqui. Eu não gosto de falar isso com ninguém, mas a minha tia não é ninguém.
- Eu não vou ficar com raiva se você disse que não. - completo.
Ela não diz nada, e parou de mexer no meu cabelo.
- As pessoas mentem o tempo todo Iabella. - fala, não sei onde quer chegar. Então ela não acredita em mim - eu minto, seus professores mentem, seus amigos mentem e até você mente. Quando amamos alguém, a gente tem essa mania de botar toda a confiança nela e achar que ela não é capaz de mentir. Esse é o problema.
Pela segunda vez, eu não sei onde a minha tia quer chegar.
- É claro que eu acredito em você Iabella. Você pode ser mau educada. - ela puxa o meu cabelo - mas você não seria capaz de fazer isso. Nunca.
- Gostaria que os meus pais acreditassem em mim também. - falo.
- Eles acreditam.
- Não acreditam não tia. Eles apenas não se importam. Acho que aquela frase esta certa.
- Que frase?
- Aquela que diz que há males que trazem o bem. Vamos supor que você foi o meu bem. Se eu não tivesse sido vítima disso tudo, eu não teria entrado naquela escola, eu não estaria aqui morando nessa casa, eu não estaria com a cabeça apoiada no seu colo.
Ela recomeça a passar as mãos nos meus fios, mas sem puxa-los, com mais carinho. Tia Enie cheira os meus fios.
- Essa é a parte boa. Não é mesmo? Você foi o maior presente que Deus pôde me dar.
- Desculpe por ter brigado com você naquele dia. Eu fui uma idiota. - murmuro, sonolenta.
- Nós duas fomos idiotas. Mas as coisas são assim mesmo.
- Eu estou com tanto sono...
- Pois durma meu bem, estarei aqui.

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