Estava em casa. Na casa onde eu morava com minha mãe, antes da tragédia acontecer. Eu podia vê-la cozinhando. O pouco espaço que a casa tinha, proporcionava a visão de tudo, eu estava vendo-a enquanto eu me afundava cada vez mais no sofá.
Me sentia estranhamente em casa. Apesar de saber que algo não estava certo, eu não conseguia decifrar o que era. Talvez o conforto da casa me deixasse imune a essas sensações insólitas, me privando de reconhecer sua origem.
E então, escutei a voz da mamãe me chamando para jantar, mas a voz dela parecia diferente do habitual, soava cansada e abatida. Com a preocupação em mente, me levantei e me dirigi para a cozinha, sentando-me na cadeira em sua frente.
Quando ela colocou o prato diante de mim, reconheci sua tão familiar sopa de legumes. E rapidamente comecei a comer, com uma fome que eu nem sabia que estava presente. Mamãe se sentou e também começou a comer sua sopa. O silêncio predominou por minutos, até que ela resolveu falar.
- Como foi seu dia hoje, querida? - ela perguntou com pouco entusiasmo.
- Foi bom. Depois que a escola acabou, fui para casa de Tina para fazermos o trabalho de artes.
Quando mamãe não comentou mais nada, senti que havia algo que ela tentava esconder com muito pesar.
- O que houve, mãe? Não está se sentindo bem? Mais sintomas coletareis da quimioterapia? - estiquei a mão sobre a mesa, para segurar a mão dela.
Ela segurou minha mão com fraqueza e a afagou carinhosamente.
- Acho que você não vai gostar muito do que eu tenho para te falar- ela franziu o cenho encarando seu prato de sopa. Esperei pacientemente até que ela voltou a falar - Está ficando cada vez mais difícil cuidar de você e eu tenho tido um pensamento que talvez ajude...
- Mãe, não se preocupe comigo - a impedi de completar a frase.
- Me escute, meu bem. Seu pai se casou recentemente e agora ele tem uma vida estabilizada e têm condições para...
- Para que? Para cuidar de mim? - eu comecei a ficar brava só com uma possibilidade de morar com meu pai - E você? Quem cuidaria de você?
- Eu vou morar com a minha mãe, querida. E eu sei que você não gosta do interior, mas eu já não tenho mais tempo restante e quero aproveitar o resto no lugar onde eu nasci. Não quero que você vá comigo, sei que odeia ficar lá.
Me levantei da cadeira com raiva.
Naquele momento eu podia escutar uma chuva caindo lá fora, na mesma intensidade que nós gritávamos.
- Não podemos ficar aqui? Estamos bem assim! Não há necessidade de provocar mudanças bruscas como essa.
- Eu quero aproveitar o restante da vida no lugar onde eu nasci, Alice! Será que você não pode entender isso? - ela se levantou também indo atrás de mim enquanto eu andava freneticamente até a sala.
Mas será que ela não me entendia? Não entendia como era terrível ter seus últimos momentos longe de mim?
- Não é justo você me deixar com ele para poder voltar para a casa da vovó! - eu gritei.
- Você sequer vai mudar de escola, continuará vendo seus amigos e o seu namorado. Não estou te privando de nada disso, Alice. Sabe o que é injusto? Você querer que eu fique aqui realizando seus caprichos, simplesmente porque odeia o seu pai! - a voz da mamãe também ficou alterada pela irritação que ela claramente sentia naquele momento - Eu sei que não dei um bom exemplo pra você, mas eu era esposa dele, você é filha. Não é um laço que deva ser cortado.
- Eu não quero ir morar com ele e sua nova família perfeita. Você deveria entender o porquê disso, não foi ele que te traiu? Que acabou com o casamento de vocês? Como pode me mandar morar com ele depois de tudo? - naquele momento eu sabia que tinha sido golpe baixo mencionar a ruptura deles, mas que escolha eu tinha? - Odeio você!
Eu vi em seus olhos quando a dor lampejou neles e eu sabia que tinha magoado os sentimentos dela, mas não pude me dar ao luxo de me preocupar naquele momento. Não quando ela queria me mandar morar com alguém que eu odiava.
- Não estou sendo bem clara com você. Não estou lhe dando opções, estou te avisando previamente do que acontecerá - sua voz soava severa e se caso eu não estivesse furiosa o suficiente, eu teria me calado naquele instante.
- Vou deixar bem claro pra você também, mamãe. Eu só irei por cima do meu cadáver. E mais...
Enquanto eu continuava gritando as palavras, mamãe já sentia falta de ar e quando eu finalmente me calei, esperando por mais uma palavra sua, eu só escutava o barulho da chuva batendo forte e insistente nas vidraças e então escutei o baque e apenas me virei para olhá-la caída sobre o nosso tapete. Já não havia nada que eu pudesse fazer.
E então eu abri os olhos, acordando do pesadelo atordoada e com lágrimas nos olhos. Meu coração pulsava fortemente no peito que chegava a doer. Lágrimas escorriam dos meus olhos causando-me uma onda de desconforto, a certa altura até chorar doía. Era como se uma pedra estivesse presa dentro de mim. Me impedindo de chorar, me impedindo de respirar. Em tal caso o desespero começava a dar o seu sinal de boas-vindas e a dor no peito ia aumentando gradativamente junto com a culpa que eu sentia.
As lágrimas já caiam desenfreadas e eu já não me importava mais em soluçar alto, tendo ciência de que todos na casa já se acostumaram com o choro alto. Me sentei com dificuldade na cama, abrindo a gaveta da mesa de cabeceira, tirando de lá o único consolo e decerto a única coisa que me pendia entre estar viva e morrer com a culpa irremediável que habitava dentro de mim.
Assim que acendi a luz do abajur, abri cuidadosamente o papel nas minhas mãos e li o seu conteúdo.
"Querida, Alice
Se você está lendo essa carta, provavelmente eu já estou longe de você e pelo que conheço de você, deve estar me odiando a certa altura. Sinto muito por colocá-la sob essas circunstâncias tão incômodas, mas continuo fielmente acreditando que fiz o certo por você. De forma alguma quis magoar ou entristecê-la, mas dada as poucas possibilidades que eu tinha nas mãos, achei mais prudente que você começasse a se adaptar a sua nova etapa de vida com seu pai. Não é nenhuma novidade que o meu tempo de vida fica mais escasso a todas as horas que o relógio marca. Quis poupá-la de ter que me ver desfalecer em seus braços. Eu espero de coração que essa minha decisão tenha sido a correta e me perdoe se caso, eu fui de algum jeito rude ou insensível. Eu te amo muito, minha menina. Me perdoe por abandoná-la desse jeito, se eu pudesse de alguma forma ficar te protegendo pra sempre, não iria me importar com o preço, eu pagaria de bom grado e feliz.
Com amor, mamãe"
As coisas seriam diferentes se eu tivesse apenas concordado com ela naquela noite? Se eu estivesse obedecido e dissesse que eu faria o melhor pra ela?
Eu levei a carta ao meu peito, abraçando a última parte que eu tinha da minha mãe.
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Imersa
RomanceAlice teve um clássico romance com um bad boy da escola, do jeito que as histórias clichês contam. Todavia, depois de alguns anos a relação dela vai se desbotando, a colocando em um dilema: continuar com o seu romance ou dar um fim na história do ca...