Perdas

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"Nunca saberemos o valor de um momento, até que se torne uma memória."

                              Dr. Seuss

-    Está-me a dizer que ele pediu para falar comigo? Lembrou-se de mim?

-   Pediu expressamente para falar com a filha Teresa, sim. É senhora, certo?

-    Sim, sou eu... mas o meu pai tem Alzheimer e...

-   Sim, sabemos da condição do seu pai. Ele acordou e pediu para falar com a filha. O Dr. Ramos disse que a filha tinha pedido para falar com ele...

-   Sim... oh sim... - mal consigo disfarçar as lágrimas na voz e para piorar tudo tenho o Bones colado a mim e a cada gesto que faço!

-   Só tenho de a avisar que o seu pai está entubado e talvez perceba pouco do que ele diz... tente não o cansar.

-   Sim... claro que não...

-   Sr. Gama Lobos, a sua filha quer falar consigo. Lembra-se que pediu para falar com a sua filha Teresa?

-   Enfermeira, desculpe...

-   Huhh, eu sou a médica dos Cuidados Intensivos. Estamos com pouco pessoal...

Explica, tentando sorrir por trás da máscara que lhe esconde metade do rosto e abafa a voz.

-   Desculpe... doutora. Se ele não estiver em condições, talvez eu possa falar com ele mais tarde?

-   Teresa... posso chamá-la assim?

Afirmo com a cabeça.

-   Fizemos a ligação agora porque mais tarde... - baixa o olhar e suspira - mais tarde o seu pai pode estar inconsciente ou...

Não termina a frase mas o silêncio diz tudo o que há a dizer.

-   Vamos lá? - os olhos têm um sorriso triste mas confiante e eu respondo que sim com a cabeça, tentando parecer confiante. - Sr. Gama Lobos, a sua filha quer falar consigo.

-   Teresa? É a menina?

Ouvir a voz dele provoca-me um soluço e o Bones abraça-me, encostando a cabeça à minha, logo em seguida beijando o alto da minha cabeça. As lágrimas são um caudal que não consigo controlar.

-   Pai? Conhece-me?

-   Teresinha... - um tom carinhoso que não ouvia há tanto tempo. Vejo o reconhecimento nos olhos dele. A emoção das lágrimas por chorar que vejo no olhar dele faz-me chorar as minhas. - não chore minha querida. Não chore por mim...

-   Oh pai... se não for por si, choro por quem?

-   Por si... por tudo o que perdeu minha querida...

-   Pai... - não consigo controlar os soluços e sinto o abraço de Bones mais forte e os seus beijos na minha cabeça.

-   Ouça com atenção minha querida, não quero que esqueça nunca como é importante. Como é amada, como foi sempre a minha alegria mesmo que... a minha menina...

-   Ainda sou a sua menina pai - a voz sai entrecortada por soluços.

-   Não deixe que a convençam que não é uma verdadeira Gama Lobos, ouviu? A Teresa é Gama Lobos até à medula!

Sinto a voz vacilar-lhe e, apesar de sentir estranheza nas suas palavras, desligo os sons de alarme na minha cabeça.

-   Lembre-se sempre Teresa, guarde as melhores memórias. São o nosso tesouro...

-   Não se canse pai, por favor. Quero que me diga tudo isso quando estiver bom, quando lhe puder dar um abraço.

-   Lembre-se sempre minha querida...

-   Sr. Gama Lobos, é melhor descansar agora.

-   Espere doutora, por favor. Não posso deixar nada por dizer à minha menina...

-   Pai, ouça a doutora... precisa estar bem para me dizer tudo... para eu o poder abraçar.

-   Teresa... - a voz é tão débil que quase não se consegue ouvir e a médica aproxima o tablet do rosto dele para se ouvir melhor - a menina foi sempre o meu... o meu... orgulho...

É demasiado esforço para ele e deixa-se cair nas almofadas. A médica afasta o tablet e fala comigo num compasso de espera até que ele retome a chamada. Explica-me que não tem sido fácil mantê-lo consciente e que tinham considerado colocá-lo em coma induzido durante a noite para poderem tratar o organismo melhor. 

-   Onde estou?

-   Sr. Gama Lobos? Quer dizer mais alguma coisa à sua filha?

-   Filha? Onde estou?

-   Está no hospital, lembra-se? Estava a falar com a sua filha Teresa...

-   Estou no hospital?

Vejo o mesmo olhar confuso que lhe tinha visto no Lar há uma semana e meia e sei que o perdi... solto o soluço que me estava preso no peito e deixo que as lágrimas voltem a cair descontroladas.

-   Sra. Gama Lobos... - a médica olha-me com tristeza - se ele tiver outro momento de lucidez, fazemos nova chamada. Está bem assim?

Aceno que sim e despeço-me sem palavras. Não consigo falar. Tudo em mim dói. Tudo em mim é perda. Ele ainda está connosco e eu já o perdi...

Uma vida a tintaOnde histórias criam vida. Descubra agora