Um mal nunca vem só

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"Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas limita-se a existir."

                           Oscar Wild


Oiço murmurar e abro os olhos. Sinto uma dor forte no lado direito do peito e gemo ao tentar levantar-me.

         -   Nem penses princesa. - as mãos dele seguram-me firmemente os ombros e obrigam-me a encostar a cabeça na almofada novamente.

        -   Preciso tratar de tudo. Não posso ficar aqui deitada, sabendo que o meu pai... o meu pai... está sozinho...

Já não consigo engolir mais o nó preso e deixo que rebente na garganta. As lágrimas explodem nos olhos e convulsões de choro fazem-me dobrar ao meio. Sinto que me falta o ar. Não consigo respirar e as lágrimas correm soltas, junto com os soluços. Toda eu sou dor. Sinto-me tremer e tento controlar mas só piora. Sinto-me dentro de uma arca frigorífica.

        -   Oh princesa... - abraça-me, sentando-se na cama e senta-me no colo como se fosse uma criança. - quem me dera poder apagar essa dor.

Esfrega-me os braços com as mãos e sinto-me aquecer ligeiramente mas o frio cá dentro alastrou-se como um cancro. Sinto-me morta por dentro e a tempestade leva-me cada vez mais fundo, para o negro que tenho cá dentro, até não ver sequer uma ponta de luz.

       -   Sabes princesa, essa dor vai passar. - baloiça-me numa cadência ritmada que não serve para me acalmar - podes não acreditar, mas passa.

Não consigo registar o que diz. O som da sua voz reconforta-me mas neste momento só quero deixar sair esta dor. Quero esvaziar-me e desaparecer. Quero que todos os momentos que passei com ele fiquem presos em mim para sempre. Quero que todos os momentos que não tive com ele... passou tanto tempo sozinho... deixei-o só... morreu só... e perceber isto traz nova tempestade. Camadas e camadas de dor, escondidas na escuridão, vêm agora à tona com uma força avassaladora e eu não a consigo conter mais. As comportas abriram, não é possível voltar ao que era antes. Estou orfã... e nem sequer me pude despedir...


******

         -  Deixa-a dormir até eu voltar. Passou por muito nos últimos dias.

        -   Ok... queres que te avise quando acordar?

       -   Avisa-me só se houver alguma novidade ou se ela tentar sair de casa.

       -  Sou prisioneira é?

Dou um suspiro de alívio e começo a respirar normalmente outra vez.

        - Princesa, estás a dormir há dois dias. Já estava a pensar raptar um médico para te vir ver.

       -  Dois dias? Como é que... - fecha os olhos em desespero e expira ruidosamente - devia ter-me acordado. Preciso tratar do funeral...

      -  Falei com o Hospital... - não sei muito bem como ter esta conversa mas, se alguém consegue enfrentar isto sou eu - tratei de todos os preparativos que podia sem ti princesa. Preciso saber se preferes que ele seja cremado ou...

      -  Não Bones! - tenta levantar-se de um salto e eu impeço-a sentando-a no meu colo na cama. - isto ninguém pode fazer por mim - olha-me com os olhos rasos de lágrimas e a voz trémula - ninguém...

Vejo-a desabar novamente e sinto, mais uma vez,  vontade de enfiar os punhos numa parede.

       -  Princesa, deixa-me fazer isto por ti...

Uma vida a tintaOnde histórias criam vida. Descubra agora