Uma vida a tinta

Crisálida

"É melhor ser leão por um dia que uma ovelha a vida toda."

                                       Elizabeth Kenny

        -   Princesa... queres que vá comprar almoço?

Acena negativamente e deixa-se ficar encolhida no canto do sofá. Só quer ficar sozinha em silêncio e parece que quer desaparecer do mundo.

      -   Tens de te alimentar princesa. Jurei a mim mesmo que te ia proteger. Depois daquele merdas do teu ex-marido me mandar expulsar do escritório dele e de eu quase desfazer os tomates do namoradinho no apartamento dele e eu ter percebido o que ele e a tua mãe te fizeram... jurei que ia proteger-te de tudo!

Não me parece estar a registar nada do que eu digo. Começo a andar de um lado para o outro da sala. Não sei o que fazer e tenho de fazer alguma coisa senão dou em doido... mas não posso deixá-la sozinha. Nunca mais a deixo sozinha.

      -   Russo... sim, preciso que vão buscar dois menus ao Augusto e mos tragam aqui. Já te envio a morada por mensagem. Sim, é pra trazer aqui e depressa. Tragam uma garrafa de vinho das que temos na adega. Não, não, esses são para usar no bar. Tragam dos melhores. Ok, sejam rápidos e digam ao Augusto que é pra caprichar.

Desligo o telemóvel e olho para o sofá, mas ela já não está lá encolhida. Talvez haja esperança, afinal.

     -  E se eu também tiver aquela doença?

Olho para onde vem a voz e lá está ela, do lado de fora da varanda virada para o rio. Não tinha reparado na mesa redonda de jardim e a cadeira de ferro onde ela está sentada.

     -  Se eu esquecer tudo? Se eu esquecer tudo o que amei. Se eu esquecer...

     -   Não penses nisso princesa...

     -  Nunca me achei bonita ou interessante... tudo o que sempre tive foi o meu amor pelo conhecimento, a Arte, a História, a Literatura... apreciar o que o Homem sempre teve de melhor - suspira de olhos fixados no rio - se eu perco isso...

     -  Princesa - aproximo-me dela e ponho-me de cócoras ao lado dela, pegando-lhe nas mãos para que ela olhe para mim, mas ela continua a olhar para o rio - não posso acreditar que não te aches bonita... mas até compreendo, tendo em conta o teu ex-marido... eu acho que és a mulher mais sexy e charmosa que já conheci... e não te valeres da tua beleza... isso dá-me tesão!

Ela olha para mim, finalmente e eu ganho confiança para continuar.

     -  Não sabia o que fazer quando fui à tua procura e já não estavas no Edifício. Tiveram de me expulsar para se ver livres de mim e mesmo assim não desisti. Tinha de saber de ti, tinha de te ver. Seguimos o teu ex... fui atrás dele para saber porquê? O que tinha feito contigo?

Tem os olhos cheios de água e só quero matar aquele animal por lhe ter causado tanta dor.

      -  Não sei o que te fez casar com ele, aceitar um casamento de fachada... - olho para ela tentando ver se me mostra alguma emoção, mas a expressão está vazia.

      -  Talvez isso seja tudo o que está reservado para mim - a voz sem emoção - talvez não mereça mais do que isso - olha outra vez para o rio.

     -  Princesa... se acreditasses mesmo nisso - levanto-me e coloco-me na frente dela - se acreditasses mesmo nisso não estavas preocupada com as tuas memórias. Princesa, não sei quais foram os teus motivos, nem te vou perguntar... mas tu sabes e estás com medo. Tens medo de perder isso que está aí dentro de ti. - ela olha apenas para a mão que pus no peito dela, sem expressão.