Capítulo 20

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Malévola

Eu havia resolvido passear pelo jardim,sem a menor desconfiança de que iria passar mal.Na verdade,só queria espairecer a minha cabeça,ter contato com a natureza outra vez,que me faz uma tremenda falta,mesmo que só faça dois dias que saí de Moors.Esse castelo me sufoca e às vezes me pergunto como os seres humanos conseguem passar tanto tempo entocados dentro disso.É como ficar numa prisão,só que sendo livre.

Enquanto eu observava as flores,senti uma pontada no abdome,mas ignorei.Geralmente sempre desconsidero qualquer dor que me venha e ou elas desaparecem,ou pioram.Desta vez,iria acontecer a segunda opção.

Em sequência,minha cabeça começou a girar e minha visão ficou embaçada.Já estava percebendo que não iria melhorar.Me apoiei numa bancada de mármore cinzento pois meu corpo começou a rejeitar o ato de ficar de pé.Uma serva do palácio me viu e perguntou-me se eu estava bem,e mesmo demonstrando todos os sinais de fraqueza,disse que sim,eu estava.Meu repúdio por humanos e orgulho me atrapalharam e muito nessa hora.Eu não queria conversar com aquela mulher.Aliás, não queria conversa com humano nenhum.

Depois,simplesmente ficou tudo escuro.Não me lembro de mais nada.Exceto um vulto de um homem velho me dando uma coisa estranha para tomar e Aurora encostada em meu torso segurando minha mão.Acho que até a ouvi chorar.Nada mais.Foram coisas bem rápidas.Não sei se falei,se fiquei calada,só sei que isso é o único que me recordo depois de desmaiar.

Ao acordar,só ouvi o barulho de Diaval crunindo aos meus pés.Claro,eu havia o deixado como corvo.Resolvi transformá-lo em humano,pois parecia necessário fazê-lo,mas quando liberei faíscas verdes por entre meus dedos da mão,senti um aperto horrendo no peito,como se tivesse sido encravada uma faca de ferro ali.Doeu e não foi pouco.

Sério,estou parecendo a Aurora com essa fragilidade toda,e eu detesto isso.

Diaval iniciou um diálogo comigo ao passo que me sentei na cama.Quem quer que tivesse me posto ali,ignorou completamente o fato de que tenho asas que não me permitem ficar de barriga para cima.Comecei a me sentir melhor com as bobagens que o corvo humano me dizia.Aquela dor foi passando,mesmo que eu continuasse tossindo um pouco e minha cabeça insistisse em latejar,mas a presença dele estava me fazendo bem de alguma maneira.Aquele tolo conseguia me fazer rir,me alegrar,mesmo nos momentos mais complicados.

Só me preocupo agora porque estraguei tudo.O batizado de Andrew é amanhã e como que Aurora vai ficar bem me vendo dessa forma?Eu tinha que melhorar logo,nem que tivesse de fingir.Não vou atrapalhar um dos eventos mais importantes da minha vida,que por um acaso,já tem muita chance de dar errado pelo simples fato de que ainda terei que resolver minhas questões pessoais com as fadas das trevas.Se eu fosse um pouco mais pessimista,diria que esta festa está com tudo para ser errônea.

Mas eu estou confiante de que não será.Bem,assim espero.

Minha conversa com Diaval foi agradável,até ele me chamar de "Malévola".Claro,esse é meu nome,só que nunca meu fiel amigo havia se dirigido para mim de outra forma que não fosse "senhora",mas eu gostei disso.Ele não era mais meu servo para me chamar assim.

Sua expressão foi cômica quando eu disse que tudo bem.Se a vida permitisse voltar no tempo,eu voltaria essa cena milhões de vezes,só para rever a cara que ele fez.Acredito que esperava uma reação ruim de mim.Até eu mesma esperava isso,mas me surpreendi.Diaval estava mesmo se tornando mais especial e isso me intriga.

-Acho que vou avisar a Aurora que você acordou -Diaval diz ainda sentado no chão.Era bizarro como ele insistia em mostrar que me respeitava.-Ela vai gostar de saber.

-Eu vou com você -respondo um pouco animada, pondo os pés para fora da cama.

-Não,você fica! -Diaval me impede estendendo ambas as mãos -Tem que descansar.

- Eu estou bem,não me importune. -me levanto em ato de teimosia.Sim,isso é um defeito meu,mas Diaval não pode me dizer o que tenho de fazer só porque acha que temos mais intimidade agora.Aurora me vendo de pé vai ficar menos receosa com meu estado.Mas assim que me levanto,as dores voltam.Minha vista fica escura e meu estômago começa a doer mais uma vez.Errei em ter me precipitado.Agora,eu tinha vontade de gritar,de tão intensa que foi esta tortura no meu corpo,mas não podia demonstrar isso,não devia.Eu não vou estragar o batizado de Andrew.

Eu pisco os olhos lentamente tentando melhorar e me seguro para não por a mão no estômago.Diaval não podia perceber.

-A senhora tá bem? -ele pergunta preocupado.Certo,não sei disfarçar.

-Estou bem,se me perguntar isso de novo eu te estrangulo,entendeu? -respondo irritada,mas era mentira.Eu sentia uma vontade estranha que nunca senti antes,como se meu corpo estivesse querendo pôr algo para fora,não sei bem,mas o que quer que fosse,eu iria ignorar.No fundo,tinha vontade de dizer a verdade a Diaval,mas não o faria.

O corvo humano se assusta com minha resposta e não é para menos.Praticamente engoli ele com os olhos.Fui mais ríspida que o meu normal.O silêncio se instala.

Saímos do quarto e aquela sensação estranha só aumentava.Começo a me arrepender de ter insistido que estava bem,porque não,eu não estou.Meu medo é apenas desmaiar outra vez.Não quero que isso aconteça.É horrível.Os momentos de minha vida que tive essa experiência foram péssimos.O outro fora no dia que aquela humana estranha atirou uma bala de ferro em mim,quando saí apressada do jantar de Ingrith.A dor que eu estava sentindo agora era similar a que senti com o ferro em minhas entranhas,por incrível que pareça.

No caminho,ando devagar,não sei se pela tontura,ou pela falta de meu cajado.Não faço a menor ideia de onde puseram ele.Na verdade,nem sei porque ainda uso aquilo,eu não preciso mais de apoio.Virou hábito.

A falta de palavras e sons foi quebrada.

-Senho...Malévola,pode me matar,me estrangular ou o que for,mas eu insisto em dizer que você não está bem -Diaval para no meio de nossa caminhada,me fazendo parar também. -Por que tem que ser tão teimosa?

Seu tom de voz parecia bravo.Ele praticamente havia gritado comigo.

Espera,ninguém altera a voz para mim.

-Você sabe o que estou sentindo por acaso? -grito sentindo minhas amídalas doerem.Eu não podia fazer isso,mas pouco me valia.Quem ele pensa que é para falar assim comigo?

-Senhora,eu só quero te ver bem,me escute...

-Eu não tenho que escutar ninguém! -me irrito ainda mais.Meus olhos começam a arder.Sim,era a transição de cor.Provavelmente estavam verdes agora,ou até vermelhos.Minhas íris são ligadas ao meu estado emocional e quando elas mudam,quase sempre eu passo o pique de minhas raivas.Não podia controlar.

-Malévola,calma,se estressar só vai te fazer ficar pior.

Errado ele não estava,mas eu era orgulhosa demais para admitir.Minha cabeça estava latejando mais forte e minha respiração começou a falhar.Sou submetida a uma tosse constante.

-Malévola! -Diaval diz tenso e envolve seu braço por minha cintura.Se ele não o fizesse,eu ia cair.Fico enlaçada com o mesmo e minhas asas cobrem a nós dois,como se ele estivesse me abraçando.Perco as forças nas pernas e meus olhos se cerram.De novo.

Até onde vou com essa teimosia?Será possível que serei como meus pais?Eles perderam a vida,e eu,estou negligenciando a minha.




FEELINGS-MALÉVOLA E DIAVALOnde histórias criam vida. Descubra agora