Capítulo 8

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     Marcela  não havia respondido a mensagem, até chegar em seu apartamento, que ficava a poucos quarteirões da estação de metrô  Vila Mariana. Respirava fundo, estava apreensiva. Não que ela não quisesse ter contato com Gizelly, o problema era que sabia onde isso poderia dar. Sempre era assim. Ela sempre planejava manter o controle até que o controle simplesmente deixava de existir, e quando ela percebia, já estava totalmente entregue e puxando Gizelly junto com ela. Era como saltar em um abismo onde elas sempre se jogavam sem proteção. Tinha sido uma verdadeira vitória particular ficar esses três últimos anos sem nenhum tipo de contato, sem nenhuma troca de mensagens.

        Mas a sua amiga precisava dela. E ela não conseguia dizer não. Nenhuma vez. 


Gizelly (17:43): Eu preciso tanto da minha amiga agora.
Gizelly (17:45): Na verdade, eu não sei se quero conversar sobre isso... Acho que eu só to sentindo a sua falta mesmo. 
Gizelly (17:45): como amiga.
Marcela (18:06): Eu também sinto saudades de você, Gi.
Gizelly (18:07): Eu tenho muito medo de abrir essa porta. 
Marcela (18:10): A gente não tem que abrir nada. Eu posso ser só a Marcela, você pode desabafar comigo... É sério... Eu sei que você não tem ninguém para falar e sei que isso tá te sufocando.
Gizelly (18:11) : Eu to passando agora pela estação Ana Rosa, você ainda mora por aqui? 
Marcela (18:11): Não, eu arranjei um apartamento na Vila Mariana. 
Gizelly (18:11): Então eu já vou passar por aí daqui a pouco rs.... Meu apartamento fica na Saúde.

     Gizelly ergueu os olhos para a luz crescente do Metrô no final do túnel. Na verdade, ela tinha pulado na estação Ana Rosa logo após Marcela responder sua mensagem, ela achou que pudesse ser um sinal. Mas agora ela já não sabia se era uma boa ideia. Marcela, do outro lado da tela, mordeu seu lábio inferior. Lutando contra o desejo de enviar a localização de  sua casa. 

Gizelly (18:12): Posso ir aí? 

     Gizelly respondeu enquanto entrava no metrô  que ia sentindo Jabaquara. Tinha decidido ir para sua casa, mas se Marcela enviasse a localização...
 
Marcela (18:13): Você lembra quando íamos na casa do Samuel, naquelas festas que ele dava? Meu apartamento é dois prédios depois do dele... O prédio roxinho que você achava charmoso porque lembrava aqueles prédios dos anos 30... só que agora ele é amarelo. 

Próxima estação, Vila Mariana, desembarque pelo lado direito do trem

      A voz ecoou pelo vagão do trem, e as pessoas que desceriam naquela estação se movimentaram até a porta para o desembarque. Gizelly permaneceu congelada enquanto segurava a barra de ferro, para não cair. Tentando decidir o que fazer. 

Gizelly (18:14):
 Putz, acabei não descendo. 

     
Gizelly escreveu ao ver a porta do metrô se abrir, fixando o olhar na placa azul escrita em branca "Vila Mariana", enquanto algumas pessoas saiam do vagão e outras entravam. 

Gizelly (18:14):
 Vamos combinar uma outra hora? 

     Marcela sentiu alivio ao ler a mensagem de Gizelly. Ficar com Gizelly, sozinha em seu apartamento, enquanto estivesse a consolando, era arriscado demais. Por experiência, sabia onde aquilo poderia levar.  Seguiram conversando como se não houvesse sido um grande "panic alert" de ambas as partes. Gizelly contou para Marcela sobre a conversa com Rafaella e como as coisas tinham caminhado, sobre seus medos da situação toda, sobre como se sentia, sobre como tinha reagido com Rafaella. Ela simplesmente falava as coisas como se Marcela nunca tivesse se afastado, como se nunca houvesse tido nada entre elas. Como se Marcela tivesse estado sempre ali. Conversaram durante a noite, durante o dia seguinte e no próximo dia. Marcela contou a Gizelly sobre seus planos de ficar em São Paulo, sobre ter reencontrado com Thelma, sobre o projeto de ambas. Gizelly se prontificou a ajuda-las com qualquer coisa que precisassem. Era bom ter isso de volta, Gizelly nunca se sentiu confortável em conversar sobre ela mesma e seus sentimentos com ninguém, nem mesmo na terapia. Ela tinha um dificuldade imensa em se abrir com qualquer ser humano, menos com Marcela. Era mais fácil, ela sabia tudo, até mesmo o que Gizelly não falava. Ela quase nunca precisava perguntar o que Gizelly estava pensando, ela simplesmente sabia. Sabia sobre seu pai, esteve ao lado dela quando ela resolveu ir atrás do pai no Espirito Santo e estava ao lado dela quando Gizelly desistiu, depois de ver o pai  de longe com uma mulher, um pouco  mais velha que ela, e uma criança de uns dois anos. Sabia sobre como a mãe tinha reagido mal ao saber das duas e como Marcela e Josie enfrentaram dona Márcia em um almoço em familia. Sabia como Gizelly tinha se sentido quando Márcia esfriou e se afastou de Gizelly, sabia que Marcia nem mesmo tinha avisado que ia se mudar de Presidente Prudente. Juntou suas coisas e se foi. Era assim que Márcia agia com os problemas que a  feriam demais, ela ia embora. Sabia que elas ainda se falavam vez ou outra, mas nunca mais tinha sido como era antes. Sabia o quanto Gizelly se sentia sozinha e renegada. Primeiro por seu pai, depois por sua mãe e depois por Marcela. 

        Estava além da capacidade de Marcela consertar os problemas com o pai ou a mãe de Gizelly. Não havia nada o que pudesse fazer quanto a isso, além de ser o apoio emocional e escutar o que Gizelly precisasse falar. A única coisa que Marcela poderia tentar resolver eram seus próprios  erros com Gizelly. Erros  que tinha cometido tentando fazer o certo. Mas esse era o problema sobre o "certo", ele é sempre relativo, sempre depende de uma série de circunstâncias, nada é preto e branco, tudo oscila em tons de cinza. E o que era cinza claro para Marcela, podia ser absurdamente escuro para Gizelly.

       Mas ela tinha tomado uma decisão nesses últimos três dias. Depois de escutar Gizelly falar sobre Rafa - por mais que achasse que era uma loucura para ela se envolver com Rafaella, por mais que tivesse a certeza de que Gizelly iria se machucar no final dessa história -, talvez ela estivesse errada. Talvez Rafaella percebesse, talvez enfrentasse seus próprios medos e tudo ficasse bem, talvez Gizelly ficasse bem. E era isso que ela queria, certo? Então era isso que faria. Ficaria ao lado de Gizelly, a ajudando sem deixar que suas opiniões aparecessem, se não fosse requisitada. E faria o máximo para contribuir que aquele relacionamento desse certo, para que Gizelly fosse feliz e pudesse montar seu porto seguro em alguém que não fosse a "bagunça emocional" que Gizelly achava que Marcela era. Ela tinha noção disso, tinha noção que parecia isso para qualquer um que não sentia como ela sentia o mundo, para qualquer um que não valorizasse o que ela valorizava. Nem mesmo sua familia compreendiam. Ela sabia o quanto ela parecia instável e confusa, mas não era falta de amor, não era falta de certeza. Não era que Gizelly não bastasse para ela, era só que ela priorizava outros modos de amar, outros modos de sentir. Tons de cinza sobre o tal do amor também. Gizelly era a melhor parte da vida de Marcela, mas não era a única. Gizelly era a constante na vida de Marcela, e poderiam passar sete, vinte e sete ou setenta anos,  ela ainda ia se sentir da mesma forma que sempre se sentia quando estavam juntas. Gizelly poderia se casar com Rafaella, com outra mulher ou com um homem, poderia ter a familia que sempre sonhou, ter filhos, apartamento e um sítio. Marcela poderia estar do outro lado do mundo, conhecendo as doze pessoas mais interessantes do mundo, poderia estar saindo com o Gael Garcia Bernal ou com Scarlett Johansson, com os dois ao mesmo tempo, mas ainda assim, se perguntassem, ela jamais hesitaria em dizer que o grande amor da sua vida era Gizelly. Porque era verdade. Ela só não entendia o amor como uma forma de ter, mas sim ser. Gizelly sempre seria o significado de "amor" para Marcela. 


       No sábado de manhã, Rafaella finalmente procurou por Gizelly. Elas estavam fazendo uma guerra fria a semana inteira, esperando que uma tomasse as rédeas primeiro, sem ter coragem de falar qualquer coisa. Gizelly era terrível em pedir desculpas e Rafaella também. Quando o celular de Gizelly tocou e a foto de Rafaella apareceu na tela, Gizelly tomou um susto, mas atendeu ao telefone com um "oi" tímido. Rafaella usou o mesmo tom ao responder, tudo que conseguiu dizer foi que estava com saudades e que queria conversar. Gizelly aceitou e disse que em uma hora poderia estar no apartamento de Rafaella. 

      Assim que Rafa abriu a porta, Gizelly a encarou com o olhar de um cachorro perdido. Rafa deu um sorriso de lado e a puxou para um abraço. Elas não falaram nada, ficaram assim por um tempo. Sentindo o calor uma da outra. Nenhuma das duas sabe quem começou, mas de alguma forma, quando notaram, já estavam com seus lábios colados com a urgência de quem não tem muito tempo, apertando seus corpos uma contra a outra, como se fosse a última vez que estariam juntas. Não demorou muito para que Rafaella e Gizelly migrassem do hall de entrada do apartamento para o quarto de Rafaella, intercalando beijos, apertos e deixando suas roupas pelo caminho. Caíram na cama, uma por cima da outra sem quebrar o beijo. As mãos de Gizelly passeavam o pelo corpo de Rafaella, como se ela quisesse registrar cada centímetro da pele que ela já conhecia bem. Rafaella se posicionou por cima de Gizelly, enquanto se roçava contra a coxa da namorada. Gizelly desceu com as duas mãos para a bunda de Rafaella, apertando as nádegas com vontade, fazendo com que Rafa colocasse mais pressão  entre o encontro de seus corpos. Rafa distribuia beijos e passeava com a língua pelo rosto de Gizelly, indo em direção ao pescoço, onde começou a mordiscar colocando um pouco de força demais. Gizelly soltou um gemido baixo enquanto subia com as mãos pelas costas de Rafaella. Uma das suas mãos chegou até a nuca, agarrando os cabelos de Rafa com um pouco de força. Uma pequena vingancinha pelas mordidas mais fortes. Rafa sorriu, gostava de um pouco de violência, nada demais. O sexo daquele final de manhã foi um pouco mais bruto do que o de costume, mas não de uma forma violenta. Uma mistura de raiva pelo que aconteceu, pelas coisas mal ditas e não ditas e saudade. Ao mesmo tempo que os toques ficavam mais agressivos, também se tornavam mais leves. A raiva, a saudade e o tesão disputavam espaço entre elas. 

        O erro das duas foi fingir que a discussão e a briga anteriores nunca existiram. Gizelly sentia que já tinha tirado aquele sentimento dela ao conversar com Marcela.  E Rafaella estava com medo de voltarem a brigar. Por isso, decidiram sem decidir, colocar uma pedra sobre o assunto. E tudo ficaria bem. 

Pelo menos é o que elas achavam. 

     O resto da semana, elas se falaram e se viram com muito mais frequência do que antes. Pelo menos a cada dois ou três dias Rafaella convidava Gizelly para vir para o seu apartamento depois do trabalho. Tudo estava mais do que perfeito, aos olhos de Gizelly. Mas ela nunca chegou a comentar com Rafaella que tinha voltado a conversar com Marcela e que elas se falavam praticamente o dia inteiro, apesar de Marcela dizer que aquela era uma péssima idéia, Gizelly resolveu ignorar com a desculpa de que "nunca surgiu uma oportunidade de comentar", mas na verdade tinha medo da reação de Rafaella, tinha medo de que Rafa desse algum tipo de ultimado que ela não saberia lidar.  


     Faltavam quinze dias para o natal e Gizelly estava feliz no trabalho por ter conseguido uma liminar para que Rubinho pudesse sair do presídio para passar o feriado de natal com a mãe. Aquilo tinha dado um gás ainda maior em Gizelly. Cada vez mais ela ia reunindo provas e anexando no processo para libertar o menino, que era claramente inocente. Mas só poderia dar entrada no processo depois do dia 7 de janeiro. Estava reunindo material para entrar com um processo contra o estado, sabia que era um movimento arriscado, mas era necessário o processo todo foi muito injusto e Gizelly lutaria com toda a força que pudesse, levasse o tempo que fosse, mas ganharia.

       Ainda não sabia qual seriam os planos dela e de Rafa para o natal, ou se elas passariam juntas. Ainda não tinha contado para Rafa que havia recebido um convite para passar o natal com os McGowan, como sempre tinha feito cinco anos antes. O convite era também para o amigo secreto da familia, que ela preferiu rejeitar, mas deixou em aberto sobre a sua presença no natal. 

     Era domingo de manhã e Gizelly dormia tranquilamente na cama ao lado de Rafa, quando elas escutaram o interfone tocar. Rafaella acordou reclamando, mas se levantou da cama e desceu as escadas em direção a cozinha, para atender o interfone. Gizelly fechou os olhos para voltar a dormir, mas ouviu os passos largos de Rafaella subindo as escadas em um a velocidade monstruosa invadindo o quarto, se abaixando para reunir as roupas de Gizelly  que estavam espalhadas. 

    - Gizelly, amor, preciso que você levante a vá para o quarto de visitas.... - Rafaella dizia rápido e Gizelly levantou a cabeça completamente confusa. Rafa olhou para ela desesperada. - Eu esqueci que minha mãe vinha para São Paulo, para as compras de natal, como todo ano.... - Rafaella dizia rápido enquanto Gizelly levantava devagar, ainda sem entender completamente o que estava acontecendo. Rafaella saiu do quarto e entrou no quarto de visitas, deixando as roupas de Gizelly por lá e puxando os lençóis de cama feita que Gizelly nunca dormiu antes, mas teria que fingir que sim. Rafa Voltou para o quarto, pegou o primeiro pijama que viu, vestindo-o. - AGORA. - Deu um pequeno gritinho ao ouvir a campainha tocar. - Por favor, Gi - Rafa disse saindo do quarto. Gizelly ouviu gritinhos de felicidade vindos do andar inferior, enquanto se movia para o quarto de visitar. "Que bela maneira que conhecer a sogra. Fingindo que sou visita.." Gizelly pensou ao fechar a porta do quarto, sentindo uma vontade gigantesca de ligar para Marcela. 

 

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