Capítulo 14

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   No dia 26 de dezembro, algo incomum aconteceu. Gizelly recebeu uma ligação de Rubinho, às oito e trinta da manhã. Ele estava na porta do presídio, mas não estavam deixando ele retornar para a sua cela, pois constava que ele havia recebido um alvará de soltura, em vez da "saidinha" para o natal. Rubinho estava terrivelmente confuso e por mais que seu instinto o instruísse a correr dali, antes que mudassem de ideia, ele também tinha medo de que tivesse sido algum tipo de confusão e ele corresse o risco de ir embora e dar como foragido no sistema.

    Rubinho realmente tinha sido liberado e Gizelly ficou com a pulga atrás da orelha. Aquilo não era normal. Ela tinha pedido revisão do caso para o juiz e a permissão para a saidinha, mas ainda não tinha entrado com o Alvará de soltura, justamente porque era final de ano, tudo tinha parado no "recesso" e só voltaria em janeiro. Ela se certificou de fazer tudo o possível naquela manhã, para não correr o risco de prejudicar o menino por algum tipo de erro. E quando voltasse ao escritório, daria uma atenção especial ao caso, seria a primeira coisa que faria, além de entrar com o pedido de processo contra o estado.

    Dona Sônia e Rubinho estavam radiantes, não se seguravam de tanta alegria. E por muita insistência, Gizelly acabou aceitando o convite deles para almoçar no dia seguinte, na casa deles. 

    Rubinho era o mais velho de três irmãos. Mas todos os seus outros irmãos já tinham falecido. Eram apenas Rubinho e Sônia. O pai de Rubinho tinha sumido no mundo quando ele tinha seis anos. Apesar de serem só os dois, eles eram extremamente queridos na vizinhança em que moravam. A prisão de Rubinho tinha causado uma comoção geral. Gizelly podia ver. A rua da casa de Sônia estava enfeitada com balões, pisca-pisca, bandeirinhas do Brasil - recicladas da copa do mundo - e bandeirinhas de festa junina. Como era uma rua sem saída, os moradores montaram mesas na rua, e cada um levou um prato de comida. As pessoas cantavam, dançavam, crianças corriam e os cachorros ficavam envoltas das mesas, tentando pegar alguma comida. Volta e meia alguém dava um tapa no focinho de um cachorro que tentava subir na mesa, buscando por um pedaço de carne. Todos vinham agradecer e elogiar Gizelly, queriam saber quem ela era, contavam histórias sobre Rubinho e Sônia, falavam sobre o bem que ela tinha feito. E a elogiavam como se ela fosse o ser mais especial da terra. Gizelly estava se sentindo uma rainha, sentada na melhor cadeira que arranjaram, bem ao centro da rua, junto com Sônia. Uma senhora de cabelos brancos e um olhar penetrante observava Gizelly com muita atenção, acompanhando todos os seus passos, volta e meia inclinava sua cabeça para o nada, como se alguém estivesse sussurrando em seu ouvido e depois voltava a olhar fixamente para Gizelly, balançando a cabeça em uma afirmação discreta.

    - A Dona Lourdes não tira o olho de você, vai vir um recado do tinhoso aí... - Matilde disse rindo, em tom de deboche, batendo no braço da Gizelly. - Ta amarrado...

   - O que? - Ela respondeu confusa.

   - Deixa de besteira Matilde... - Sônia disse acendendo um cigarro.

   - A dona Lourdes me assusta... ela mexe com coisa que não é de Deus, Sangue de Jesus.... - Matilde sussurrou e Sônia a repreendeu com o olhar.

   - Não escuta essa crentona. Se a Dona Lourdes falar, eu te aconselho a ouvir... não precisa ter medo- Sônia disse séria. - Ela que me disse para procurar seu escritório... Ela disse que a moça capixaba ia ajudar e que depois ia vir aqui, na festa. - Gizelly gelou.

  - Mas ela errou... - Matilde disse orgulhosa. - Gizelly acabou de falar que veio do interior de São Paulo. - Gizelly observou o sorriso de alguém que quer ter sempre razão que se formou nos lábios carnudos da senhora.

  - Bom, na verdade eu sou capixaba mesmo.. eu vim para São Paulo com uns nove anos. - Gizelly falou meio sem graça. Sônia ergueu as sobrancelhas para Matilde que resmungou algo sobre pegar mais bebida. - Ela falou para você me procurar? - Sônia demorou o olhar em Gizelly.

Ainda sem quererOnde histórias criam vida. Descubra agora