(re)start

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Os olhos da minha mãe sequer marejavam. Eu estava parada em frente a porta, com duas malas nas mãos, uma passagem de ônibus para a cidade vizinha e o peito apertado. Mas ela não parecia se importar. Meu pai muito menos, já que ao menos saiu da cozinha para se despedir. E minha irmã... argh, essa safada mimada ainda tinha um sorrisinho debochado nos lábios. Engoli a raiva, parecia um bolo de espinhos que me arranhava a garganta e me impedia de esbravejar tudo o que sentia.

— Se é isso mesmo que você quer, vá. Você já tem 18 anos, não posso impedi-la. — minha mãe murmurou, o olhar nunca encontrava o meu.

— Poderia ao menos tentar. — esperei por algo. Um passo, um abraço, um simples suspiro. Mas nada. A distância entre nós não parecia grande no olhar, mas era muito maior que isso. Havia um abismo que me impedia de voltar para aquela vida e fingir que estava tudo normal.

Segurei as lágrimas e respirei fundo. Atravessei a porta e a fechei com força atrás de mim.  Era um basta numa vida de expectativas não cumpridas, mágoas guardadas e desapontamentos. E tudo vindo de mim. No caminho da rodoviária, desabei. Não sabia se era um choro de tristeza ou alívio. Acho que um pouco dos dois. Foram 18 anos segurando o choro a cada olhar de decepção, a cada "por que você não é mais parecida com a sua irmã?". Cada decisão minha era julgada: minhas ações, namorados, amizades. Menos aquela. Eu tinha a sensação de que meus pais sempre me quiseram fora de casa, só não tinham coragem de me expulsar.

Mas eu tive coragem de sair. Há alguns meses conversava com Maya, uma garota que conheci pela internet. Ela que me encorajou a sair daquela vida e começar a viver de verdade, e me chamou para morar com ela. Podia ser loucura largar tudo para morar com uma estranha em outra cidade, sem conhecidos e qualquer plano concreto, mas para mim era o primeiro passo para me tornar a pessoa que sempre quis ser. A pessoa que atendia apenas as próprias expectativas e não sentia o peso de ser sempre a decepção de alguém.

Pelo menos por enquanto.

Seis horas de viagem depois cheguei em Portland. Dormi e acordei inúmeras vezes e chorei mais algumas, com certeza minha cara estava horrível. Meu peito ainda estava apertado, lá no fundo isso tudo parecia um sonho distante. Mas percebi que não tinha como ser mais real quando vi Maya ali, me esperando de braços abertos e um sorriso enorme em suas bochechas. Desci do ônibus e corri de encontro com a garota. Era a primeira vez que nos víamos e mesmo assim parecia que eu conhecia aquele abraço de outras vidas. Senti meu coração aquecer aos poucos enquanto meus olhos voltavam a marejar.

— Oi! - depois de alguns instantes exclamei, soltando uma risada.

— Oi, Grimmes! - rimos juntas e nos separamos. Ela era mais alta que eu e ainda mais bonita do que nas fotos e vídeo chamadas. — Quer ir logo pra casa ou comer aquele hambúrguer que falamos há meses?

— Você sabe que eu nunca recusaria um hambúrguer. — lhe dei uma leve cotovelada no braço e peguei uma mala. Ela pegou a outra e seguimos para seu carro, um fusca antigo amarelo.

Já era fim de tarde e o sol se escondia atrás dos morros no caminho. Ainda era estranha a sensação de mudança em tão pouco tempo, outra cidade, outra casa, outra família (espero). Mas tudo parecia certo e eu faria o possível para continuar assim.

Depois de um delicioso hambúrguer com fritas e milkshake, fomos para seu apartamento, melhor dizendo, nosso. Era simples, não muito grande, mas aconchegante. Tinha apenas dois quartos e um banheiro que passaríamos a dividir, uma sala de estar e a cozinha, que era a parte mais decorada e que com certeza recebeu mais a atenção de Maya na hora da reforma. 

Como era dia de semana, ela dormiu cedo. Eu não quis esperar muito, então me aprontei em arrumar e conhecer cada canto do meu quarto. Tinha uma cama de solteiro, uma cômoda para colocar minhas coisas, algumas prateleiras pelas paredes, um espelho colado na parte de trás da porta e a minha parte preferida: uma janela larga com um sofázinho embaixo dela. Eu com certeza passaria a maior parte do tempo ali: lendo, mexendo no celular, chorando e me imaginando num filme e apreciando a bela vista da rua. Não era um quarto grande como o meu antigo, mas era tão aconchegante e convidativo. Só foi necessário espalhar algumas coisas minhas por ele e eu já conseguia chamá-lo de meu. 

Deitada na cama algumas horas mais tarde, desejei que pudesse ser assim com todo o resto. Eu queria fazer amigos, conseguir um trabalho, ter uma vida só minha e que não teria o peso de ser uma decepção para ninguém. Senti o peito apertar e as lágrimas começaram a deslizar pelo meu rosto. Não tinha que ser assim: uma filha não tinha que sair de casa pela pressão de não ser suficiente. Não tinha que largar a família, os amigos, a casa, para tentar ser feliz. Eu não desejaria esse sentimento de insuficiência para ninguém. 

Mas já estava feito. Não tinha como voltar. Eu faria dessa minha segunda chance a melhor. E de preferência a última. 

Uma Segunda Chance (PAUSADA)Onde histórias criam vida. Descubra agora