-Onde é que estiveste?-ouvi a Sr. Lurdes reclamar. Era portuguesa como eu. Ela e o marido mudaram-se para aqui e construíram o próprio restaurante. É bom poder falar português pelo menos no trabalho. É claro que com a Ev temos de falar inglês, mas quando é entre nós, eles preferem em português, até porque sentem que têm mais respeito.
-Fui pôr gasolina.-respondi enquanto pegava no avental apressadamente.
-Estás atrasada.-disse ela colocando as mãos nas ancas.
-Sim, peço desculpa.-respondi.
-Eu devia era despedir-te.-disse levantando o dedo com aquelas enormes unhas vermelhas.-Se fosses mais empenhada...-e vai começar...
-Deixa a rapariga, Lurdes!-exclamou o Sr. Carlos saindo da cozinha.
-Ela chegou atrasada.-disse colocando as mãos nas ancas novamente.
-Deixa, ela nunca chega atrasada!-exclamou ele.
-Claro que a tinhas de defender! Ai, homem, será que não aprendes que temos de ter um pessoal decente?-disse ela ajeitando o cabelo.
-Ao menos é de confiança! E não tenho nada a queixar-me, não comeces mulher!-exclamou ele.
-Claro agora a culpa é minha!-exclamou amuando.
Fazem sempre isto. Ela arranja sempre um motivo para discutir e ele nunca concorda. Depois de todos os berros aparecem perfeitamente pacíficos, uma hora depois de sons vindos do apartamento deles, por cima do restaurante. Enquanto lavo os pratos tenho de estar a ouvir aquilo...
-Não interessa, vai abrir a porta!-exclamou ela para mim. Acentei e dirigi-me à porta. Abri-a, prendendo-a dos dois lados e virei a placa para "aberto".
Ao fim de um tempo as pessoas começaram a chegar. Clientes habituais, visitantes e turistas. Sempre o mesmo. É um trabalho de rotina. As coisas acabam por ficar realmente secantes. De vez em quando o meu dia acaba por melhorar com uma gorjeta maior que o normal, mas não passa disso. Tenho de aguentar, o Keith não consegue sustentar a casa sozinho, mas também não me posso queixar. Até nem me importo de trabalhar aqui, tenho uns patrões que só mesmo portugueses e estou com a Ev.
-Já viste aqueles?-disse a Ev aparecendo com uma garrafa de vinho na mão. Olhava fixamente para uma mesa onde estava um casal com um filho mais novo.- O puto ainda não parou quieto e cada vez que lá vou grita a pedir mais comida e os pais não dizem nada e ainda refilam comigo por não fazer o que ele diz!-exclamou irritada.
-Queres que vá lá?-perguntei rindo-me.
-Não, o miúdo já vai ver quem é que manda...-murmurou olhando o rapaz furiosamente.
-Ev, vê lá o que é que fazes...-murmurei agarrando-lhe o braço.
-Eu sei, não te preocupes, vou só responder ao pedido.-respondeu com um sorriso traquina.
-Ainda és despedida!-exclamei enquanto ela se afastava. Só consigo rir ao pensar no que ela está a dizer ao rapaz neste momento.
Senti o bolso do avental vibrar. Era o meu telemóvel. Atendi atrás do cacifo.
-Vans?-exclamei.
-Sim, estás a trabalhar?-perguntou.
-O que é que achas?-perguntei.-O que é que queres?
-Queria saber se me podias vir buscar ao shopping.-respondeu. O que é que se passa?
-Como é que foste para aí?-perguntei.
-A mãe da Kelly trouxe-nos.-respondeu.
-E não te podia levar a casa?-perguntei.
-Não, elas iam para um jantar.-respondeu.
-Não podias ter perguntado se te podiam levar a casa?-pergunte irritada. Nunca planeia nada.
-Sim, Vals, esqueci-me ok?-exclamou. Passa-se qualquer coisa.
-Ok, eu não posso ir agora, podes esperar?-perguntei.
-Quanto tempo?-perguntou impaciente.
-Não me respondas assim!-exclamei.
-Ok, desculpa!-exclamou.-Só quero saber o tempo que tenho de esperar.
-Eu saio às quatro.-respondi.
-Ok, avisa quando chegares.-disse ela desligando. Não está nada bem, passa-se qualquer coisa.
-Não devias estar a servir aquela mesa?-perguntou-me a Ev passando por mim.
-Ah sim, estava só a descansar.-respondi.
-Vê lá...ainda és despedida...-disse com a mesma entoação que eu, há minutos atrás.
-Que piada!-exclamei saindo para servir as mesas.-Hey, Ev, posso-te pedir um favor?-perguntei enquanto lavávamos os pratos.
-O que é que queres?-perguntou.
-É que são bués pratos e já percebi que não vamos sair daqui à quatro e tenho de ir buscar a minha irmã...-olhei-lhe expectante.
-Ok...está bem não faz mal, assim ficamos quites.-respondeu.
-Ah sim, essa foi muito boa. Continuo a achar que devias dizer à tua mãe que trabalhas aqui.-disse pegando num prato. Estávamos ambas em frente ao grande lavatório cheio de pratos para lavar. Nunca mais mandam arranjar a máquina de lavar loiça. Se fossem eles que tivessem de lavar todos os pratos já tinham a máquina arranjada.
-Não posso. O que é que achas que ela ia dizer? Depois da Kate ter arranjado trabalho no tribunal eu chegava lá e dizia que trabalho num restaurante?-perguntou olhando-me desiludida.-Ela tinha um ataque, sei lá!
-Estás a exagerar! Até porque não vais fazer disto a tua vida! Estás a tirar medicina! E se lhe disseres que trabalhas aqui ela percebe porque és tu quem paga maior parte das propinas.-respondi.
-Mesmo assim, é vergonhoso ter uma filha a lavar pratos.-respondeu com aquela voz que normalmente faz quando quer imitar a mãe.
-Tu lá sabes, mas dessa vez ela ia-te apanhando.-respondi.
-Oh, mas não apanhou, e já não deve cá voltar outra vez!-exclamou com um tom de quem quer mudar de assunto.
-Ok.-respondi rindo-me.-Vais fazer o turno do jantar?-perguntei.
-Tenho de fazer.-respondeu tirando os cabelos da cara.- Tu própria disseste, tenho de pagar as propinas.-respondeu.
-Mas matas-te a trabalhar!-exclamei.
-E mesmo assim não chega...-respondi.
-Onde nós estamos...-murmurei.
-Pois...-murmurou. Ligou a água e começou a passar uns pratos por de baixo da torneira-Ah, é verdade...-disse num tom provocador.-O que é que foi aquilo ontem?-perguntou.-Com o Matt?
-Hum, pois...pensava que não tinham visto...-respondi.
-Sim, claro, eu não estava assim tão mal.-respondeu. Olhou-me provocadoramente antes que pudesse dizer o contrário.
-Ok, está bem! Eu e ele não temos nada, foi só para provar o meu ponto.-respondi.
-Ou seja, que gostas dele?-perguntou.
-Não, que eu gosto dele mas eu prefiro assim como está.-respondi.
-Isso é estúpido.-respondeu.
-Também queres culpar o Will?-perguntei.
-Não, mesmo que seja culpa dele, também é tua.-respondeu. Não estava à espera. -Sim, Vals, tens culpa em não conseguires ultrapassar isso.-disse insensivelmente. Eu prefiro assim do que esconder o que realmente quer dizer.- A esta altura já devias ter passado à frente. É o que uma adolescente normal faz quando acaba com o namorado.
-Pois, mas sabes que não foi só uma separação em que se desculpa e se esquece e acabam amigos.-respondi.
-Mas podes esquecer. Só depende de ti...-respondeu.
-E se eu não quiser?-perguntei olhando para ela.
-Ah, vês! Tu admitiste, nem fui eu que disse!-exclamou.
-Ok, ok! Olha eu vou-me embora que já são quatro.-disse tirando o avental.
-Ok, até amanhã!-exclamou da cozinha.
-Até amanhã!-exclamei pegando na minha mala e saindo.