Minha Mocinha

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Gizelly Bicalho

Antes das 18:00hrs, Mari se despediu de mim, alegando ter que buscar Diego na escola, pois Bianca ainda estava no escritório e não sairia de lá tão cedo por estar cheio de processos. Ela sim seguiu a carreira que seus pais tanto queriam, mas segundo Mari, ela gosta disso. Ela me contou que Marcela não quis ser advogada, seus pais não ficaram muito felizes e ela decidiu seguir seu sonho sem se importar com eles. Mari não quis entrar em detalhes, ou seja: eu teria que perguntar a Marcela sobre isso.

Por falar nela...

Estou ainda na sala, procurando os canais em busca de algum programa que me chame à atenção, mas todos eles parecem sem graça. A conversa e as revelações que tive de Mari na parte da tarde ainda martelam em minha mente. Ainda me sinto péssima.

A porta da frente é aberta, tento resistir à tentação de olhar, porém é mais forte que eu. Olho por cima do encosto do sofá e sorrio ao ver a cena.

Marcela está com Júlia sentada em seu ombro esquerdo, as duas riem e cantam alguma música. Nem me preocupo em prestar atenção na letra, estou mais empenhada em observa-las. Elas se dão tão bem.

Me pergunto se em outros tempos, quando minha memória estava boa, se eu me levantaria do sofá e correria para as duas.

— Mamãe!

Júlia grita ao finalmente me notar no sofá, Marcela sussurra algo em seu ouvido antes de tirá-la de seu ombro e colocá-la no chão. Eu abro meus braços apenas esperando o contato que teria com aquela pequena fofa.

— Oi meu amor.

A cumprimento assim que seu corpo colide com o meu, Ju agarra meu pescoço e enche meu rosto de beijos, provocando-me uma alta gargalhada. Ela é tão carinhosa.

Eu gosto disso.

— Eu senti muita saudade.

Ela revela assim que nos soltamos, sorrio para ela e bagunço seus cabelos.

— Eu também senti.

Falo com sinceridade, eu realmente senti. A casa sem ela fica vazia, e eu me sinto bem com sua presença. Júlia sorri com a língua entre os dentes e eu me inclino para beijar sua testa.

— Princesa, vai lavar suas mãos e tomar um banho, vai querer sanduíche de que?

Marcela tira os tênis que estava calçada e ajeita a mochila lilás da nossa filha em seu ombro, a  pequenina se afasta de mim e começa a arrancar suas roupas e antes de subir as escadas ela pede o mesmo sanduíche que eu escolheria. Mas eu não pedi sanduíche algum. Tímida, eu olho para Marcela, ela desvia o olhar e abaixa a cabeça. Faça contato visual comigo, idiota.

— Eu...

— ... Frango com tomate e molho especial? – pergunta de repente me interrompendo, ela levanta a cabeça e esboça um pequeno sorriso, mas seus olhos são tristes. — Costumava ser seu favorito.

Diz e passa por mim indo em direção à cozinha, acompanho seus passos com o olhar e suspiro, Marcela não parece a fim de conversar, nem me olhar nos olhos direito ela quis. Nem sorrir ela sorriu ainda, e nesses dois dias, desde que tudo aquilo aconteceu, independente das minhas grosserias, ela sempre tentava sorrir.

Acho que noite passada eu peguei pesado demais.

E se ela nunca mais falar comigo direito?

[...]

— Mamãe!

Jú me chama e levanta a cabeça, retirando-a de cima do meu colo. Acaricio seus cabelos e noto o quão receosa ela parece estar. Depois do lanche da tarde, que foi regado a muitas risadas e conversas aleatórias – a maioria entre Júlia e Marcela, eu passei boa parte do tempo apenas observando as duas – tiveram horas que eu senti como se estivesse completa, mesmo que somente por alguns minutos, eu as vi como uma família, mesmo que eu continuasse não gostando de Marcela, mas eu sinto que de alguma forma sua presença não me incomoda tanto. Não tanto quanto antes.

Quem sabe com o passar dos dias eu me acostume com isso.

— Fiz o carinho do jeito errado?

Pergunto brincalhona para deixá-la relaxada, estou curiosa para saber o que ela quer falar.

— Não. – ela nega com a cabeça. — É que... Eu queria perguntar uma coisa.

Abaixa a cabeça tímida, arqueio as sobrancelhas. Okay, o que há de errado? Ela parece nervosa.

— Pode perguntar, pequena.

Eu asseguro e Júlia suspira, levanta a cabeça e me olha da mesma forma que Marcela olha quando está nervosa. Incrível como ela nasceu de mim, mas se parece tanto com ela.

— Mamãe, a senhora e a mama brigaram noite passada?

Seus olhinhos brilham em lágrimas, meu coração aperta. Será que ela ouviu alguma coisa? Mas Marcela e eu não brigamos noite passada, quer dizer, não exatamente.

Talvez ela tenha ouvido Marcela bater à porta com força noite passada.

— Juju, nós não-

—... Foi por que eu sentei errado no sofá ontem? Eu prometo que não vou mais ficar daquele jeito.

Ela parece afobada e fala sem parar, gesticulando da mesma forma que eu faço quando estou tentando desesperadamente me explicar. Não posso evitar notar o quanto ela se parece comigo.

—... E eu prometo nunca mais deixar a toalha molhada na cama. Mas por favor, mamãe, não briga com a mama, eu não gosto de ver ela triste.

Agarra minha cintura e começa a implorar, me sinto péssima, se eu não tivesse sido estúpida noite passada, talvez Marcela não tivesse ficado mal como parece que ficou e agora eu não estaria me remoendo de culpa. Mas é tão difícil, eu simplesmente faço e quando percebo o que fiz já é tarde. Ouço minha filha fungar algumas vezes, ela está chorando?

— Pequena, você está chorando?

Ela nega com a cabeça e murmura contra minha barriga algo que não consegui identificar, eu sorrio, meus olhos estão úmidos, pois sei que ela está chorando. Me dói vê-la assim.

— Mamãe promete pra mim que você e mama não vão discutir mais? – ela me solta e fica sentada, me olha nos olhos. Os olhos castanhos me fitam como se ela estivesse implorando, e ela estava. — Eu não gosto de ver a mama chorar, dói muito aqui, ó. 

Ela leva a mão direita até o lado esquerdo de seu peito, bem no coração. Ao ouvir isso e ver nos olhos dela o quão triste ela está, uma lágrima rola por minha bochecha esquerda. Eu tento segurar o soluço que quer sair, mas é impossível. Júlia ao perceber que estou começando a chorar, sobe em meu colo e puxa minha cabeça para deitar em seu colo, sinto a mesma acariciar meus cabelos como se dissesse que estava ali, que tudo ficaria bem.

Essa menina tem só cinco anos de idade mesmo?

Não sei explicar, mas saber que Marcela chorou noite passada conseguiu me deixar incrivelmente para baixo. Senti como se machucar ela, me machucasse muito mais. Nós duas temos algum tipo de ligação estranha.

— Mamãe, eu também não gosto de ver a senhora chorar. – sua voz saiu abafada entre as mechas do meu cabelo, eu fungo uma vez. — Mama sempre disse que era para eu te dar colo caso você chorasse e ela não estivesse aqui. Porque eu sou a mulher da casa e tenho que cuidar de você quando ela não estiver. 

Foi impossível não sorrir, eu ainda chorava, mas dessa vez tinha um pouco de felicidade no motivo. Júlia é uma garotinha absurdamente inteligente, obediente e aparentemente sua memória é excelente. Marcela parece ser mesmo uma boa mãe, ela a transformou em uma mini mocinha. 

E eu que achava que quando ela tivesse filhos/as eles seriam mini trombadinhas psicóticos. 

— Você é uma mocinha. – levanto a cabeça e a pego no colo, encho seu rosto de beijos, ela gargalha e eu sinto meu peito inflar. Eu consegui fazê-la rir, estou absurdamente feliz. — Minha mocinha.

Sussurro em seu ouvido e sorrio.

Minha mocinha... Minha filha.


Amnésia | GicelaOnde histórias criam vida. Descubra agora