Capítulo 3

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— Engraçado como não notam a nossa falta, não é? — Mina comenta enquanto mastiga um pedaço de carne que mais parece um compensado de madeira.

— Há tempos aboliram a contagem de operários por aqui. Era um esforço inútil. — responde Diana.

— Apenas os capatazes ficaram da estrutura original. Creio que concluíram que é o suficiente para nos controlar.

— Sim, mas também é relevante o fato que, durante anos, ninguém tentou sair daqui, ninguém falta ao trabalho... Todos seguem felizes com a possibilidade de ascensão que o bom comportamento pode proporcionar.

— Essa ascensão de mentira que vendem aqui me revolta...

— Revolta todos nós, querida. Por isso que vamos derrubar essa estrutura por completo.

Estão em meio a um grande grupo de operários que seguem em direção à Igreja. Hoje é domingo, o único dia de descanso em Distopx e é obrigatório o comparecimento à missa. Mina segue com os óculos escuros, protegendo sua áurea azulada dos olhares indiscretos dos outros habitantes, mas sua expressão não esconde o descontentamento com o compromisso involuntário.

Mesmo antes de se infiltrar em Heterotopx, Mina jamais tolerou os sermões compulsórios ao qual, todo domingo, os cidadãos de Distopx estão obrigados a comparecer, mas a passagem pelo mundo estéril de Heterotopx apenas confirmou suas convicções ateístas. A vida na cidade média segue normalmente, com todos os problemas e alegrias comuns de qualquer lugar, mesmo sem nenhuma obrigação litúrgica.

O Padre Pietro celebra a missa burocraticamente até o momento do sermão, onde, costumeiramente se perde em elucubrações sinceras, porém vagas, sobre a dignidade do trabalho frente à santidade do altíssimo e a volta do messias em sua nave celestial. Mina alterna bocejos com os olhos escorrendo ainda de cansaço e sono decorrente de suas noites mal dormidas, conhece de cor as mitologias que cercam a religião em Distopx. O Messias que virá do espaço para salvá-los, que toda o planeta se torne uma grande e bela Utopx.

A seu lado, reconhece a presença de Ossobuco e sua família, não consegue lembrar seu nome verdadeiro, somente o infame apelido que lhe restou a partir de um evento constrangedor da juventude de ambos, onde quebrou dois dentes da frente ao morder um osso, acreditando ser um grande pedaço de vorco.

— Olá... — diz-lhe em um cumprimento evasivo, em uma das poucas pausas do padre. — Imagino que você não se lembre mais de mim...

— Olá... — o homem encara Mina firmemente e, imediatamente, ela percebe que ele não se lembra dela. — Me desculpe moça, mas não lembro mesmo...

— Devo ter confundido o senhor com outra pessoa também. Peço desculpas por isso. Qual o seu nome?

— É Jorge. A senhora realmente não me é estranha...

— As pessoas aqui acabam se parecendo muito no fim das contas — Mina desvia do assunto. — Falta muito para terminar o culto?

— Mais meia hora pelo menos. O Padre Pietro sempre se empolga em seus sermões...

— É verdade... Imagino que ele pretenda colocar as palavras na nossa cabeça por repetição.

O homem sorri e Mina retribui acenando para a pequena filha de Ossobuco, ou Jorge, como acabara de ser lembrada. A menina sorri envergonhada e Mina é tomada pelo, sempre presente, embrulho de injustiça que desce pela sua garganta ao pensar que a vida da pobre menina será, em breve, alterada para sempre, quando chegar à idade na qual possa torcer um parafuso, para nunca mais parar de trabalhar.

O isocrônico sermão termina e a Igreja começa sua cantoria indicando o término da liturgia, é o momento em que as pessoas podem iniciar o processo de esvaziamento da nave central da Igreja, rumo ao pátio externo, onde é permitido que haja alguma socialização, uma das poucas oportunidades em que, operários de blocos distintos podem conversar um pouco uns com os outros.

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