VII - Figura, vestido, e outras coisas do homem

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Assim que os personagens dos romances começam a ganhar a estima ou aversão de quem lê, vem logo ao leitor a vontade de compor a fisionomia do personagem plasticamente. Se o narrador lhe dá o bosquejo, a imaginativa do leitor aperfeiçoa o que sai muito em sombra e confuso no informe debuxo do romancista. Porém, se o descuido ou propósito deixa ao alvedrio de quem lê imaginar as qualidades corporais de um sujeito importante como Calisto Elói, bem pode ser que a intuição engenhosa do leitor adivinhe mais depressa e ao certo a figura do homem, que se lha descrevessem com abundância de relevos e rara habilidade no estampá-los na fantasia estranha.

Não devo ater-me à imaginação do leitor neste grave caso. Calisto Elói não é a figura que pensam. Estou a adivinhar que o enquadraram já em molde grotesco, e lhe deram a idade que costuma autorizar, mormente no congresso dos legisladores, os desconcertos do espírito, exemplificados pelo deputado por Miranda. Dei eu azo à falsa apreciação, por não antecipar o esboço do personagem. Acudo pelos créditos do morgado.

Calisto Elói, naquele tempo, orçava por quarenta e quatro anos. Não era desajeitado de sua pessoa. Tinha poucas carnes, e compleição, como dizem, afidalgada. A sensível e dissimétrica saliência do abdómen devia-se ao uso destemperado da carne de porco e outros alimentos intumescentes. Pés e mãos justificavam a raça que as gerações vieram adelgaçando de carnes. Tinha o nariz algum tanto estragado das invasões do rapé e torceduras do lenço de algodão vermelho. A dilatação das ventas e o escarlate das cartilagens não eram assim mesmo coisa de repulsão. Estes narizes, se não se prestam à poesia lírica, inculcam a seriedade de seus donos, o que é melhor. Eram assim os narizes de José Liberato Freire de Carvalho e de Silvestre Pinheiro. Quase todos os estadistas de 1820 se condecoravam com a rubidez nasal. Não sei que há nisto indicativo de estudo, gravidade e meditação; mas há o quer que seja.

As restantes feições de Calisto Elói de Silos eram regulares, a não querermos encarecer a alta e brunida fronte, que poderia servir de rótulo a um talento abalizado, se o inimigo da Lucrécia Bórgia não fosse, a meu ver, capacidade eminente, viciada pela educação e tradições de família. Excedia a estatura meã, e era direito de pernas. No tronco havia tal qual inclinação, que denunciava o arqueamento da espinha por efeito da incansável leitura, e minguado exercício.

O que certamente o desairava era o traje. Calisto Elói vestia de briche da Golegã, e dos alfaiates de Miranda. A gola e portinholas da casaca eram sérias demais para estes tempos em que um homem se veste hoje à moda, e daqui a um mês corre o perigo de sair ridiculamente entrajado. Não se sabe a razão por que o morgado da Agra se afeiçoara às calças rematando em polainas abotoadas de madrepérola. Vestira assim umas pantalonas em 1833, quando se matrimoniou com D. Teodora. Ou porque a esposa gostasse do feitio das calças, ou porque a moda se conservasse, mantida pelo fidalgo, na comarca de Miranda, o certo é que desde aquela época todas as pantalonas de Calisto foram talhadas pelas primeiras, e a abotoadura sempre aproveitada.

Ora, isto em Lisboa fez uma razoável impressão, especialmente no espírito observador dos gaiatos. Um destes desbragados ousou chamar gebo ao legislador; e outro levou a gandaíce ao extremo de planear-lhe um assalto ao chapéu.

Fartas vezes o advertira o abade de Estevães da necessidade de reformar o vestido, e entrajar-se conforme o costume. Calisto respondia que não tinha que entender em costumes, que não fossem, em lusitaníssima frase, ruins costumes. Quanto a vestiduras, dizia que o estofo das suas era português como ele, e o feitio delas era o que mais se aproximava das usanças dos seus maiores, os quais andavam mais apontados no trajar do espírito que nas galanices do corpo. Salvo o abade, ninguém se atrevia a contrariá-lo, desde que a um jovem deputado, que lhe observou o arcaísmo do traje, perguntou se ele era o alfaiate da câmara, ou se as modas tinham fiscal subsidiado no parlamento.

A Queda dum Anjo (1865)Onde histórias criam vida. Descubra agora