XXVII - A saudade e a ciência em diálogo

8 0 0
                                    

Dois meses depois de fechado o parlamento, D. Teodora Figueiroa, farta de escrever cartas, e de esperar respostas que lhe iam à razão de uma por dez, mandou chamar aquele Brás Lobato, professor de instrução primária, e, com os olhos vermelhos de chorar, abriu do peito opresso estas palavras:

— Que me diz vossemecê Sr. Brás, à demora do meu homem?

— Eu estou passado, fidalga! — disse o mestre-escola empunhando e sacudindo o queixo inferior. — Seu marido, a minha opinião é que ficou por lá embeiçado nalguma mulher. Lisboa é uma Babilónia, fidalga. Quem para lá vai com um bocado de temor de Deus, perde-o; e quem não tiver muito lume no olho, e alguns anos de tarimba e experiência do mundo, como eu, pode contar que em lá chegando fica reduzido à expressão mais simples.

— E que é ficar reduzido à... quê? Como disse vossemecê? — perguntou D. Teodora.

— Quero dizer que dá com as canastras n'água. Foi o que sucedeu ao fidalgo, futura-se-me isto! Sábio era ele, mas faltava-lhe a prática do mundo. Foi uma asneira mandá-lo a cortes; eu bem não queria... mas enfim... tanto me azoinaram os abades e os lavradores, que eu deixei-me ir com os outros... (O impostor que tinha votado em si!) E que diz ele nas cartas a Vossa Excelência?

— Lá por milagre recebo alguma... Aqui tem vossemecê a que veio aqui há dias atrás. Ora leia lá isso.

Brás montou os óculos de cobre, e leu:

Prima Teodora. Cessa de ter cuidado com a minha saúde: eu passo sofrivelmente. Não me pude ainda desembaraçar dos negócios do Estado, que me não deixam tomar fôlego. À vista te contarei o que tenho feito a favor da Nação. Tem tu saúde, e descansa da vida trabalhosa que tens. Há-de ir aí um sujeito de Bragança para lhe entregares oitocentos mil réis. Vende o grão todo que houver, e diz aos lavradores que por lá têm dinheiro a juro que eu preciso recolher essas quantias para negócio de mais interesse. Teu primo e afectuoso marido Calisto.

— Aí tem vossemecê! — continuou a esposa atribulada, com os braços em cruz e as mãos nos sovacos. — O dinheiro, que há sete meses tem saído desta casa, é um louvar a Deus! Ainda o dinheiro vá que o leve a breca! Mas andar-me por lá o marido, o meu homem, que dantes, se ficava uma noite fora de casa, era lá uma vez de ano a ano, e dizia ele que não estava bem senão à beira de sua mulher!... Que me diz a isto Sr. Brás? Então vossemecê é de parecer que ele está por lá embeiçado? Pois o meu Calisto seria capaz disso?!

— Olhe, fidalga — respondeu o professor de instrução primária fazendo com os beiços um bico e logo um arco, trejeitos meditabundos com que ele usava solenizar os dizeres graves. — Um homem cá nas aldeias é uma coisa, e nas cidades é outra. Eu corri mundo, e sei o que fui. As mulheres das cidades têm umas artes e manhas, que, se um homem se não precata, às duas por três, não sabe de que freguesia é. Ainda que a gente não queira, aqueles demónios tais esparrelas armam, que não há remédio senão cair em fragilidades próprias da frágil natureza humana, como o outro que diz. O senhor morgado já não é rapaz; mas também não é velho. Aquilo, congemino eu, e oxalá que eu me engane, deu por lá com alguma menina que o embruxou...

— Sabe vossemecê que mais? — interrompeu com abrupta resolução D. Teodora. — Pego em mim, meto-me numa liteira, e vou por aí abaixo até à capital. É o que eu faço!

— Essa ideia precisa de ser pensada com prudência — observou o mestre-escola, erguendo-se, e dando alguns passeios na eira, onde estavam dialogando. — Se a fidalga for, esta casa fica sem dono, entregue à criadagem, e o senhor morgado pode zangar-se. De mais a mais, ora suponhamos nós que o senhor seu esposo está, como ele diz na sua, ocupado em negócios do Estado; a ida de Vossa Excelência vai atrapalhá-lo, porque ele não a há-de deixar sozinha na estalagem. Depois a fidalga vai, palavra puxa palavra, um diz uma coisa, outro diz outra, e afinal desavêm-se, e começam a viver de esguelha. A minha opinião é que Vossa Excelência se deixe estar em sua casa, e espere a ver para onde correm os ventos. Se ele por lá anda com a cabeça a juros, deixá-lo pagar o tributo, que ele cairá em si. Antes isso que quebrar uma perna. Lá o dinheiro isso é o menos. A casa dá para tudo, graças a Deus. A fidalga não sabe o que tem de seu. Lá quanto ao marido, uma extravagância não lhe dá nem tira. Salomão foi o mais sábio dos homens e teve trezentas mulheres e setecentas concubinas, e mais acho que foi santo. David, também era santo, e caiu também na fraqueza de amar a mulher de um capitão, general, ou uma coisa assim. As sagradas escrituras contam muitos casos destes... Pois enfim, a fidalga não esteja aí a chorar. Seu marido há-de voltar são e salvo. O mais que eu posso fazer-lhe é ir por aí abaixo ter com ele, e desenganar-me por meus próprios olhos.

— Isso é que era bom, Sr. Brás! — exclamou Teodora, limpando as lágrimas ao avental de chita.

— Eu estou ainda com a ideia ferrada do hábito de Cristo. É cá uma birra com o boticário, que disse ao cirurgião que eu havia de ser cavaleiro do hábito quando ele fosse papa. O senhor morgado não me responde às cartas: é um ingrato daquela casta; mas, enfim, os favores que lhe fiz na eleição não me arrependo de lhos fazer... Enfim, fidalga, se Vossa Excelência quer, eu vou ter-me com o senhor morgado, e pode ser que venha com ele para cima e com o hábito.

— Está dito! — clamou Teodora. — Vossemecê vai, e eu faço-lhe as despesas.

— Isso lá como Vossa Excelência quiser... Eu, a falar verdade, não estou muito endinheirado, e alguns vinténs que tenho todos me hão-de ser precisos para pagar os direitos da mercê.

Aí vem Brás Lobato, caminho de Lisboa.

A Queda dum Anjo (1865)Onde histórias criam vida. Descubra agora