III - O demónio parlamentar descobre o anjo

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Fermentou na mente dos principais lavradores e párocos das freguesias do círculo eleitoral a ideia de levar ao Parlamento o morgado da Agra de Freimas.

Os deputados eleitos até àquele ano no círculo de Calisto Elói, eram coisas que os constituintes realmente não tinham enviado ao congresso legislativo. Pela maior parte, os representantes dos mirandenses tinham sido uns rapazes bem-falantes, areopagitas do café Marrare, gente conhecida pela figura desde o botequim até S. Carlos, e afeita a beber na Castália, quando, para encher a veia, não preferia antes beber da garrafeira do Mata, ou outro que tal ecónomo dos apolíneos dons.

Em geral, aquela mocidade esperançosa, eleita por Miranda e outros sertões lusitanos, não sabia topograficamente em que parte demoravam os povos seus comitentes, nem entendia que os aborígenes das serranias tivessem mais necessidades que fazerem-se representar, obrigados pelo regímen da constituição. Se algum influente eleitoral, prelibando as delícias do hábito de Cristo, obrigara a urna e o senso comum a gemer nos apertos do doloroso parto do paralta lisboeta, o tal influente considerava-se idóneo para escrever ao deputado incumbindo-lhe trabalhar na nomeação dum vigário chamorro, ou outra coisa, que foi denominação de bando político, em tempo que a política não sabia sequer dar-se nomes decentes. Pois o deputado não respondia à carta do influente, nem o requerente sabia onde procurá-lo, fora do Marrare.

Por muitos factos desta natureza conspiraram os influentes do círculo de Miranda contra os delegados do Governo; e a ideia de eleger o morgado foi recebida entusiasticamente por todos aqueles que o ouviram falar no adro da igreja, e por quantos houveram notícias da sua parlenda.

O partido, que o mestre-escola ganhara de eloquente assalto, cedeu ao império das razoáveis conveniências, e conglobou-se na maioria. A verbosidade, porém, do professor não ficou despremiada, sendo nomeado secretário da junta de paróquia.

Resistiu Calisto de Barbuda tenazmente às solicitações dos lavradores, que o procuraram com o mestre-escola à frente, facto que muito honra este desinteresseiro e reportado funcionário. Neste encontro, o professor excedeu o juízo avantajado que ele propriamente fazia de sua vocação oratória. Mostrou as fauces do abismo escancaradas para tragarem Portugal, se os sábios e virtuosos não acudissem a salvar a pátria moribunda. Calisto Elói, enternecido até às lágrimas pela sorte da terra de D. João I, voltou-se para a esposa, e disse, como o agricultor Cincinato:

— Aceito o jugo! Assaz receio, mulher, que os nossos campos sejam mal cultivados este ano...

Estavam próximas as eleições.

A autoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu o Governo da inutilidade da luta. Não obstante, o ministro do Reino redobrou instâncias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escrito revistas de espectáculos, e recitava versos dele ao piano, cuja falta ou demasia de sílabas a bulha dos sonoros martelos disfarçava. Redarguiu o administrador do concelho ao governador civil, que pedia sua demissão para não sofrer a inevitável e desairosa derrota.

Quis assim mesmo o Governo aliciar no círculo algum proprietário, que contraminasse a influência do candidato legitimista, fazendo-se eleger. Alguns lavradores, menos aferrados à candidatura de Calisto, lembraram à autoridade o professor de instrução primária, estropeando frases dos discursos dele, proferidos na botica. O administrador riu-se, e mandou-os bugiar, como parvoinhos que eram.

Por derradeiro, o governador civil fez saber ao ministério que os povos de Vimioso, Alcanissas e Miranda se haviam levantado com selvagem independência e tinham fugido com a urna para os desfiladeiros das suas serras. Pelo conseguinte, não pôde ser proposto o poeta, que beliscado na sua vaidade assanhou-se contra o Governo, escrevendo umas feras objurgatórias, as quais, se tivessem gramática à proporção do fel, o Governo havia de pôr as mãos na cabeça e demitir-se.

À excepção de uma lista, o morgado da Agra de Freimas teve-as todas. A que não tinha o nome simpático aos eleitores, votava em Brás Lobato, professor de instrução primária, secretário da junta de paróquia, e ex-sargento das milícias de Mirandela. Parece que votara em si o mestre-escola. Afinal, maculou a alvura do nobilíssimo desprendimento com que perorara em pró da eleição de Calisto! Fragilidade humana!

Principiou, desde logo, o morgado eleito a refrescar a memória com as suas leituras de história grega e romana; era isto entroixar ciência e enfeixar flores para o parlamento. Depois, releu a legislação dos bons tempos de Portugal, a fim de restaurar os costumes desbaratados, fazendo remoçar as leis, que haviam sido o tabernáculo da moral humana guardado pelo temor de Deus. Tosquenejou muitas noites sobre os bacamartes pulvéreos; e, desde que a manhã raiava até horas de almoço, ia à margem do Douro, que lhe lambia a ourela da quinta, declamar, como Demóstenes nas ribas marítimas, ao estridor de um açude e das rodas de duas azenhas. Os moleiros, que o viam bracejar, e lhe ouviam o vozeamento, benziam-se, pensando que o sábio treslera, ou coisa má lhe entrara no corpo. A Sr.a D. Teodora Figueiroa, vendo o marido assim tresnoitado, seguia-o às vezes, de madrugada, espreitava-o de um cabeço sobranceiro ao rio, e benzia-se também, dizendo: «Dão-me com o homem doido!»

Chegou o tempo de partir para a capital.

O deputado mandou adiante por almocreve duas cargas de livros, nenhum dos quais tinha menos de cento e cinquenta anos.

Seguia-se, na conduta dos machos portadores, uma carga de presunto e orelheira, substância quotidiana da alimentação de Calisto Elói.

Depois, outra carga de ancoretas de vinho velho, e na entrecarga uma garrafeira com duas dúzias de garrafas de vinho, que competia antiguidade com a fundação da companhia.

O guarda-roupa do procurador dos povos era modesto, salvo o chapéu armado, calção de tafetá e espadim, com que ele, na qualidade de fidalgo cavaleiro, costumava contribuir para a majestade das procissões de Miranda, pegando ao pálio.

A pessoa de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda foi em liteira, e chegou a Lisboa ao décimo quinto dia de jornada, trabalhada de perigos, superiores à descrição de que somos capazes.

De propósito, saltamos por cima dos pormenores da partida, para não descrever o quadro lastimoso do apartamento de Calisto e Teodora.

O apartamento de Teodora e Calisto era título para dois capítulos de lágrimas.


A Queda dum Anjo (1865)Onde histórias criam vida. Descubra agora