Brás Lobato, antigo sargento de milícias, e antigo borra de frades franciscanos, era legítimo homem para farejar Calisto em Lisboa. Cuidou ele que encontraria o marido de D. Teodora de Figueiroa nos lugares mais celebrados e admirados da capital, segundo é fama nas províncias. Como o não encontrasse na Memória do Terreiro do Paço, foi procurá-lo ao Aqueduto das Águas Livres. Depois de baldadas estas pesquisas, outro qualquer sujeito desanimaria; Brás Lobato, porém, resolveu ir ao Paço das Necessidades em busca do seu patrício, porque, no seu modo de julgar as correlações dos altos poderes do Estado, Calisto Elói devia frequentar regularmente a casa real.
Perguntou o mestre-escola afoitamente à sentinela do paço se o representante nacional, morgado da Agra, estava em palácio. A sentinela mandou-o entrar, e que perguntasse ao comandante da guarda. O comandante mandou-o a um fidalgo que vinha descendo, e o fidalgo interrogado mandou-o à fava.
Com o que, Brás Lobato saiu à rua, e perguntou a um aguadeiro se ali não morava o rei. E, como soubesse que a família real estava em Sintra, conjecturou que os deputados, e particularmente Calisto, deviam estar em Sintra para de lá governarem a monarquia.
Chegou o mestre-escola a Sintra, e descavalgou do jumento portador, à porta do palácio. Fez as suas perguntas à sentinela com aquele ar marcial que lhe ficou das milícias. Esperou a vinda de um camarista, velho fidalgo atencioso, que sorriu da suposição do provinciano, e lhe disse que o deputado Calisto Elói residia no hotel do Vítor.
Chegado ao hotel, à hora mais de passeio, por fim da tarde, não encontrou Calisto, e foi demandá-lo nos lugares mais frequentados. Abeirou-se de um grupo de sujeitos, que inculcavam gente grave, e perguntou por Calisto Elói de Silos Benevides de Barbuda.
Esta pergunta coincidiu com o caso de estarem aqueles indivíduos aventando hipóteses sobre a formosa solitária, cujo ninho de folhas e flores apenas Calisto de Barbuda frequentava.
O ar provinciano de Brás fez crer aos curiosos que o homem, sendo patrício de Calisto, poderia esclarecê-los acerca da criatura misteriosa.
— Donde conhece vossemecê o Sr. Barbuda? — perguntou um.
— Conheço-o desde menino, que é da minha terra, e eu sou o professor de instrução primária lá do concelho do senhor morgado da Agra de Freimas.
— Então — volveu outro — há-de saber se a senhora que está com ele em Sintra é parenta dele, ou mulher ou amante.
— A mulher do senhor morgado ficou em casa; parenta não me consta que ele tenha cá nenhuma. Isso há-de ser negócio de contrabando, penso eu. Fazem favor Vossas Senhorias de me ensinarem o caminho da casa onde ele está?
Conduzido à espessa cancela de ferro, que estremava o jardim do caminho público, Brás Lobato puxou a campainha. Falou-lhe um criado de libré, o qual, perguntado se o senhor morgado estava em casa, respondeu que naquela casa morava a viúva do general Ponce de Leão.
Dada a resposta, o criado rodou solenemente nos calcanhares, e deixou o mestre-escola com o nariz num orifício da grade, e os olhos noutros orifícios, espreitando os maciços de murtas, que escondiam a fachada da casa.
Daí a pouco lobrigou ele entre os arbustos um galhardo homem com uma senhora pelo braço, atravessando vagarosamente para um bosque de aveleiras.
Fitou-se nele; mas não viu coisa que lhe desse lembranças do fidalgo da Agra. Cuidou que o tinham enganado os lisboetas, e desandou para a hospedaria.
Novamente informado, resolveu esperar que o morgado entrasse às dez horas, consoante o costume.
Sentou-se à porta do pátio.
Viu entrar um empavesado sujeito retorcendo as guias do bigode, com os olhos postos na Lua através de uma luneta. Levou urbanamente a mão ao chapéu. Calisto, divertido pela acção civil do sujeito, ia corresponder, quando reconheceu o mestre-escola.
— Você aqui, Brás! — disse ele.
O professor arregaçou as pálpebras, e exclamou:
— Que vejo! A voz é a do fidalgo!
— Sou eu, não tenha dúvida nenhuma.
Brás levou a mão à testa, e da testa ao peito, e de um ombro ao outro, murmurando:
— Em nome do Padre, e do Filho, e do Espírito Santo! Coisa assim nunca os meus olhos esperaram ver!... Vossa Excelência é outro homem!... Eu estarei a dormir! — e esfregava os olhos, desconfiando seriamente que estava dormindo.
— Entre cá dentro — disse o morgado.
Entrados à sala, perguntou o fidalgo com um ar seco:
— Que novidade o traz aqui?
— Vim por aí abaixo, a fim de ver Vossa Excelência, e ao mesmo tempo...
— Bem sei no que quer falar. O hábito de Cristo, sim?
— Não sendo coisa muito de costa acima...
— Há-de arranjar-se. E que mais?
— E que mais?...
Brás Lobato sentia-se como esmagado pelo tom ríspido e sobranceria do fidalgo. A concisão e rapidez das perguntas enleavam-no a ponto de o engasgarem nas respostas.
— Como ficou minha prima? — disse Calisto.
— Está muito contristada, senhor.
— Porquê?
— São saudades. Ainda na véspera da minha vinda esteve a chorar na eira... O melhor seria que Vossa Excelência viesse comigo para casa... Mas como o fidalgo está mudado!... Então Vossa Excelência, pelos modos, era o mesmo que eu vi, ao fim da tarde, naquela casa que tem porta de ferro! Bem me diziam que Vossa Excelência estava lá com uma madama, e eu não o conheci.
— Aonde? — atalhou desabrido o morgado.
— Naquela casa que tem muitas flores.
— Quem o mandou lá?
— Uns fidalgos a quem eu perguntei por Vossa Excelência.
— E quem o manda perguntar por mim?! Quem lhe disse que eu estava em Sintra?
— Foi no palácio do rei que...
— Então foi-me procurar ao palácio do rei! O Sr. Brás é parvo!... Bem. Eu preciso recolher-me. Quer mais alguma coisa?
— Não, senhor fidalgo... E Vossa Excelência não quer nada lá para a terra? — volveu logo o antigo sargento com o nariz rubro de cólera.
— Não quero nada.
— Pois eu para cá vou. Passe muito bem por cá, e até lá.
Não pôde ter mão de si o professor: voltou ao limiar da porta, que se fechava, e disse:
— Senhor morgado...
— Que é?
— Eu, para a outra vez, elegerei deputado que me arranje o hábito de Cristo. Faça favor de se não incomodar.
— É asno! — murmurou Calisto batendo a porta com ímpeto.