XXXI - Vence o demónio! Choram os anjos!

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Para distrair-se do suplício de alguns dias, Calisto Elói, sem consultar a esposa, entretinha-se a ajuntar os cabedais, espalhados por mão de lavradores, e a remir alguns foros, que somaram considerável quantia.

Teodora presenciava com sufocada ira as diligências do marido, e acautelava o saco das peças de duas caras, que trouxera de casa de seu pai, tesouro antigo na família de Travanca, trazido por seu bisavô, governador do Brasil. Era um dos soberanos gozos de Teodora adicionar mais uma peça de D. Maria e D. Pedro III às mil e duzentas que seu bisavô reunira. Bem que o marido respeitasse sempre aquele pecúlio, Teodora receava muito que os respeitos doutro tempo não pudessem nada agora com ele, e dispôs-se a resistir a todo transe ao sacrilégio.

Não carecia o morgado de lançar mão de alguma verba do património de sua mulher: tinha muito que explorar no propriamente seu, antes de alienar alguma das quintas; no entanto, quando a consorte abespinhada lhe disse que as peças eram dela, e não cuidasse ele que as havia de levar, Calisto encarou na mulher com tal enchente de ódio, e logo desprezo, que lhe voltou as costas para lhe não redarguir.

Daí em diante, nas quarenta e oito horas que o morgado se deteve em Caçarelhos, baldaram-se as tentativas conciliatórias de Teodora. Fechado no seu quarto, que ele desde a chegada fizera propriedade sua exclusiva, ou encerrado na biblioteca, onde escrevia monólogos saturados de lágrimas, em vão a esposa o espreitava pelos orifícios das fechaduras, e lhe assoprava suspiros dignos de mais humano marido.

No dia da partida, a despedaçada senhora experimentou um ataque de eloquência. Entrou com o almoço no gabinete do marido, e bradou:

— Então que é isto? Entendamo-nos.

— Isto quê?

— Sempre vais para a vida perdida?

— Vou hoje para Lisboa — respondeu serenamente Calisto Elói, dobrando em maços os títulos de sua casa.

— E então da tua mulher não queres saber mais nada?

— Minha mulher fica em sua casa, e eu vou cumprir os meus deveres como deputado.

— Mas eu não quero saber disso.

— Então que queres tu saber, prima Teodora?

— Quero saber a lei em que hei-de viver.

— Vive na lei de Deus.

— E tu na do diabo, ein?

— Berra pouco.

— Hei-de berrar o que eu quiser.

— Pois berra, que eu não te hei-de ouvir muito tempo.

— Se isto é assim, quero separar-me.

— Separa-te.

— Vou para o meu morgadio de Travanca.

— Pois vai.

— Cada qual fique com o que é seu.

— Pois sim. Leva daqui o que for teu.

A desesperação de Teodora aumentava à medida que a fleuma do marido lhe cravava o dardo do desengano no coração ainda fiel. Começou a pobre mulher a saltar no pavimento, sem proferir sons articulados. Expedia uns grunhidos roucos, que fizeram pavor a Calisto. Este feiíssimo trejeitar desfechou num insulto nervoso, com sintomas epilépticos.

A comiseração feriu as estragadas entranhas do morgado. Foi apanhar a mulher do chão, reteve-lhe os braços que escabujavam, e levou-a dali para um leito, onde a deixou entregue às criadas e ao primo Lopo de Gamboa, que vinha entrando.

Passada a crise, Teodora ardia em febre, e dava pouco tino das pessoas que a rodeavam. Pareceu-lhe, porém, sentir um beijo nas costas da mão esquerda; e, olhando apressada na suposição de que era o marido, viu o rosto lastimoso do primo Lopo, que lhe disse a meia voz:

— Esquece o ingrato, prima!... Guarda a tua vida para quem te ama!...

Calou-se, porque entrava uma criada com um chá de cidreira e macela. Tomou ele das mãos da criada a chávena, e ministrou o xarope a Teodora, que o foi bebendo com muitos vágados da cabeça desfalecida para sobre a espádua de Lopo, que se ajeitara para ampará-la.

À hora final Calisto entrou ao quarto, e não se comoveu. Disse algumas breves e secas palavras de despedida, acrescentando que, fechado o segundo ano da sua legislatura, viria para casa.

Teodora ainda balbuciou:

— E deixas-me assim doente, homem?

— Esse incómodo é passageiro, prima. Logo que tu reflexiones um pouco, levantas-te curada. Mal da pátria, se os deputados casados obedecessem aos caprichos das mulheres, que lhes impedem irem onde o dever os chama. Pensas assim, porque foste educada rusticamente. Era minha tenção tirar-te daqui, levar-te para terra de gente, dar-te alguma educação, para depois te poder levar comigo para qualquer terra culta; vejo, porém, que desatinas e te fazes criança numa idade imprópria de ciúmes.

— Olha que não és mais novo que eu! — bradou ela. — Tens quarenta e quatro e eu quarenta.

— Está bom, está bom — obviou ele —, não discutamos idades. O que se segue é que ambos envelhecemos: razão de mais para justificar a toleima dos teus zelos e desconfianças... Não posso demorar-me, que já aí está a liteira, e a jornada de hoje é muito grande. Adeus. Primo Lopo, olha tu se dás juízo a tua prima, e manda-me no que quiseres em Lisboa.

— Parece-me que me não pões mais os olhos, Calisto! — clamou ela com profunda angústia.

— Adeus, adeus, minha tola; não penses em tal.

E saiu alegre como o encarcerado da prisão de longos anos. As asas cândidas de Ifigénia sacudiam-lhe do espírito saudades e remorsos.

A Queda dum Anjo (1865)Onde histórias criam vida. Descubra agora